Em 27 de fevereiro de 1987 era iniciada uma operação policial na capital paulista que tinha como objetivo eliminar das ruas as ameaças à "família tradicional brasileira" e higienizar a cidade de tudo aquilo que a tornava "suja". Ela foi batizada de "Operação Tarântula".
O alvo era claro: pessoas trans e travestis que trabalhavam nas ruas de São Paulo. Completando 35 anos nesta segunda-feira (27), a operação policial violenta deixou marcas para quem presenciou o momento e ainda reflete na realidade das pessoas trans e travestis no Brasil.
A Tarântula não foi a única operação com o mesmo propósito. Arrastão, Cidade, Sapatão, Limpeza (todas em São Paulo) e Asa Branca (em Recife), foram alguns outros exemplos, contudo, para Neon Cunha, publicitária, mulher, negra, ameríndia e transgênera, “nessa ordem de importância”, como costuma afirmar, “a mais impressionante foi a [operação] Richetti que envolve, inclusive, o nome do delegado [José Wilson Richetti] que personifica tudo isso.”
A ditadura militar (1964-1985) foi um período de muita repressão para as pessoas LGBT+ , que sofreram censura e invisibilidade, além de perseguições, que se intensificaram no pós-ditadura, com as operações policiais comandadas, especialmente, pelo delegado José Wilson Richetti.
“Tiveram outras [operações] como a Rondão, em referência à ronda que a polícia fazia, colocando as travestis e trans no camburão. A Tarântula leva esse nome em alusão às patas da aranha, porque a operação rondava o eixo centro de São Paulo, abrangendo uma área grande. Ela chegava em Osasco, em Guarulhos e no ABC Paulista”, afirma a ativista, que veio do norte de Minas Gerais para São Paulo ainda criança, quando já se entendia do gênero feminino, processo que ela chama de “pertencimento” e não transição , como é comumente denominado.
Seu contato com outras pessoas trans e travestis ocorreu quando ela começou a frequentar as ruas do Centro de São Paulo, aos 12 anos, na década de 1980. Foi nesse período que ela também vivenciou a truculência das operações do delegado Richetti.
“No Centro de São Paulo, eu fui barrada de entrar nas boates. É aí que eu encontro a rua e as minhas semelhantes: as mulheres trans e travestis. O mais interessante é que o maior apoio que eu recebi para continuar trabalhando e estudando era das meninas na rua. ‘Continua, não desiste. Quer colocar implante, e não tem dinheiro? Vai tomando hormônio, usa roupa larga, mas não abandona os estudos’. Elas me incentivaram a não parar nas ruas”, relembra Neon, que traz, na sequência, um episódio específico de uma das abordagens policiais que presenciou.
“Estávamos na Vila Buarque, na rua General Jardim, em uma praça. Aí veio uma barca [o camburão]. Eles eram tão perversos. Colocavam todas nós contra parede, impulsionavam o cacetete no chão e subiam com força atingindo nossas genitálias. Isso quando não nos batiam em outras partes de nossos corpos. E tínhamos que ficar ali, estáticas”, conta a ativista, que também relembra o quanto a sociedade no período do pós-ditadura era transfóbica.
“Eu atravessava a rua à base de pedrada, de ovo, de tomate. Não podia ir na feira. Não podia levantar para ir até o intervalo e pegar um lanche, já que começavam a me jogar pedra. Eu tinha que ser a última a sair da escola porque eu tinha muito mais medo das pessoas do que do trajeto voltando sozinha.”
“O HIV foi uma garantia de vida”
"Você tem ouvido falar de assassinatos de homossexuais? O que você acha disso", pergunta uma entrevistadora no documentário "Temporada de Caça", de 1988, de Rita Moreira. As respostas das pessoas nas ruas são assustadoras.
"Eu acho que tem mais é que assassinar mesmo"; "Tem que matar"; "Acho que está certo. Homem nasceu para ser homem"; "Tenho muita coisa contra eles. Acho que eles estão poluindo a cidade de São Paulo"; "Acho que não deveria existir homossexual".
Enquanto as operações aconteciam com boa parte da sociedade apática sobre a vida e segurança das pessoas LGBT+, como é mostrado no documentário de Rita Moreira, outro elemento que ocorria em conjunto era a epidemia do HIV e Aids , atribuída à população queer, sendo este um dos motivos, inclusive, para justificar as operações, segundo a dramaturga travesti Ave Terrena, que escreveu uma peça sobre as perseguições chamada “As 3 Uiaras de SP City”, que esteve em cartaz em São Paulo, no ano de 2018.
“São Paulo foi um laboratório em que eles conseguiram transformar o extermínio da população trans e travesti em um política pública organizada em conjunto com a Polícia Civil, com a Polícia Militar e com a imprensa. O pano de fundo foi o contexto da ditadura, assim como a epidemia do HIV e Aids atribuída à população LGBT+”, afirma Ave.
“Eles chamavam o HIV de ‘câncer gay’ e ‘peste gay’. Isso é maléfico para todo mundo, tanto para os LGBTs, estes que são difamados, caluniados, expulsos de casa, que perdem seus laços afetivos e qualquer oportunidade de trabalho, mas também para todas as outras pessoas que podem ter sofrido a infecção do vírus, ou desenvolvido o quadro da Aids, e que não receberam a atenção de saúde que precisavam”, afirma a escritora.
Contudo, para a publicitária Neon Cunha, o HIV, em meio a onda de perseguição e tortura contra pessoas trans e travestis, despontou como uma “garantia de vida”.
“A negligência do Estado e de seus agentes não encarava o vírus com a responsabilidade devida. Sendo assim, qualquer contato com nós, trans e travestis, era perigoso. Virou um instrumento de sobrevivência para nós porque eles tinham medo de nos encostar e se contaminarem”, diz Neon, que aponta mais um aspecto deste cenário.
“O HIV também virou um instrumento de automutilação para evitar repressões. Eu vi pessoas se cortando, que morreram em suicídio ao abrir suas gargantas, e que foram largadas sem atendimento porque se temia o vírus. É muito pesado”, afirma.
Para escrever a peça "As 3 Uiaras de SP City", Ave fez pesquisas em documentos e jornais da época das operações, que eram escassos, além de entrevistas com pessoas que viveram o momento.
Ela traça um paralelo sobre o período com a atualidade e diz que vê semelhança em vários pontos, mais em específico sobre a circulação de notícias falsas que constroem o imaginário popular sobre as pessoas trans e travestis.
“Como acontece hoje em dia, as pessoas muitas vezes sabiam que as informações divulgadas eram falsas, mas mesmo assim repassavam, seja para manipular um cenário em detrimento de beneficiamento político ou para promover instabilidade, caos, disseminar o ódio e transformar esse sentimento em um instrumento para ganhar o poder”, afirma a dramaturga, que reflete sobre os mesmos mecanismos de controle que ocorrem na contemporaneidade.
“Hoje isso ainda acontece com a mamadeira de piroca, com o kit gay, com banheiro unissex , entre outros. Todas essas coisas são mentiras absurdas, mas quando percebemos já estamos debatendo essas questões politicamente com as pessoas porque elas estão realmente sendo influenciadas por esse tipo de fake news.”
O ator, multiartista, ativista trans, e co-fundador do Coletivo de Artistas Transmasculines (Cats), Leo Moreira Sá, também presenciou as barbáries promovidas contra a população LGBT+ no período pós-ditadura.
“Eu me lembro de estar indo para uma reunião do Somos [grupo pioneiro no ativismo LGBT+ no Brasil], passando em frente a um bar, quando o delegado Richetti apareceu e me chamou. ‘Você, pode entrar’, disse ele indicando o camburão”, conta Leo, que afirma: “Nós éramos os inimigos”.
“Eles estavam trabalhando para limpar a sociedade daqueles que eles consideravam comunistas, que iriam ‘destruir a família’. É o mesmo pensamento da extrema direita de hoje em dia. Isso não mudou”, diz o ativista que, assim como Ave, também faz um paralelo com o ultraconservadorismo que ganhou força no Brasil nos últimos anos.
“Aquela mentalidade do tempo do autoritarismo, de 20 anos de regime militar, formou a população que elegeu Bolsonaro . Isso nos leva a ser o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo. A grande mudança hoje é que nosso ativismo está muito poderoso”, diz o ator, que acrescenta que o movimento social ajudou nas conquistas que a população LGBT+ tem nos dias de hoje.
“Não é tão fácil assim nos reprimir como era nos anos 1980. Temos a lei do racismo , a lei da LGBTfobia , que são avanços, mas em paralelo ainda temos travestis que são assassinadas todos os dias de modos cruéis e horrorosos”, afirma ele.
Avanços significativos
Para Neon Cunha, é “indiscutível que houve avanços” nos últimos anos sobre a segurança das pessoas trans e travestis, e ela corrobora com o ativista Leo Moreira Sá sobre o argumento de que as novas medidas têm mais relação com o movimento social do que com ações do Estado.
“Hoje temos mais visibilidade. Nos formamos mais, somos doutoras, estamos na política, mas o pertencimento ainda é um desafio. Como esses lugares que acolhem garantem a nossa permanência? Isso é pertencimento”, afirma a publicitária.
Leo ainda chama a atenção para a importância de conhecer e resgatar a história, especialmente para pessoas transmasculinas que são ainda mais invisibilizadas.
“Nós temos algumas pessoas transmasculinas que têm notoriedade na sociedade, mas nós queremos visibilidade. E como que faz para sair desse ciclo de apagamento? Conhecendo o passado”, afirma o ativista, que conta as dificuldades vividas pelos homens trans na sociedade contemporânea.
“As pessoas transmasculinas são suicidadas , porque estamos no espaço privado. A transfobia para nós é diferente. Enquanto que a transfobia para as pessoas transfemininas é direta e física, para nós é velada”, diz o ativista, que conclui afirmando que a transfobia direcionada aos homens trans mina a autoestima dessas pessoas.
“Ela parte da desqualificação do nosso trabalho, do sarcasmo quando dizem, por exemplo, ‘ah, mas você não tem pinto’, coisas ridículas do tipo. Isso tudo vai minando a nossa autoestima e nos levando ao suícido”, finaliza.
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