O primeiro dia de 2023 ficará marcado para sempre na história da política brasileira. A data registra a posse de Luíz Inácio Lula da Silva , o primeiro presidente do país a se tornar chefe do Executivo pela terceira vez.
A vitória de Lula foi aguardada pelas mais de 60 milhões de pessoas que votaram no petista no segundo turno das eleições presidenciais de 2022, mas não é de se desprezar que mais de 58 milhões votaram no opositor, o ex-presidente Jair Bolsonaro, que também conquistou uma marca inédita no pleito: o primeiro presidente após a redemocratização a não conseguir se reeleger para um segundo mandato.
Muitos são os desafios que Lula irá enfrentar uma vez que a avaliação de especialistas é que o o governo Bolsonaro deixou um rombo nas contas públicas, além de ter menosprezado áreas cruciais para cidadania da população brasileira, como a Saúde, a Educação, a Cultura e os Direitos Humanos.
Na contramão, os dois primeiros governos Lula (2003 - 2011) e os governos Dilma Rousseff (2011-2016) foram marcados por acenos expressivos à comunidade LGBTQIAP+. Sendo as iniciativas mais significativas as duas Conferências Nacionais de Políticas Públicas e Direitos Humanos LGBT (2008 e 2011), o programa "Brasil Sem Homofobia" (2005) e o atendimento completo para travestis, transexuais e transgêneros , no Sistema Único de Saúde (SUS), a partir de 2013.
“Lula, que quando ainda era líder operário em uma entrevista no Jornal Lampião da Esquina [primeiro tabloide LGBT+ do Brasil] falou que não tinha ‘homossexualismo’ na classe operária, aprendeu muito com o tempo e se tornou o presidente que mais falou e propôs ações para a população LGBTQIAP+ na história da República”, afirma o cientista social, doutor em Antropologia e fundador do Grupo Gay da Bahia (GGB), Luiz Mott, que ainda tece críticas à falta de aplicabilidade das propostas realizadas nas Conferências citadas anteriormente.
“Centenas de resoluções aprovadas nessas conferências não se cumpriram. Foi muita ‘bravata’, muito ‘bla-bla-blá’ e pouca ação”, afirma. Vinicíus Zacarias, mestre em Ciências Sociais e membro do Conselho Estadual de Promoção e Defesa dos Direitos LGBT+ da Bahia, corrobora com as críticas de Mott.
“Houve muito percalço para a implementação e para a difusão dessas políticas no âmbito nacional”, afirma o cientista social que atribui a este empasse o conservadorismo na política brasileira. “É uma questão difícil porque está ligada às mudanças das mentalidades e a uma nova compreensão sobre esses temas, que envolve ainda aspectos culturais”.
Para além da crítica, Zacarias destaca que nos dois primeiros mandatos do governo Lula, o fortalecimento do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos LGBT, em meados de 2005, é uma ação que vale ser comemorada.
“A entidade aglutina todos os movimentos sociais para conversar, construir, formatar e monitorar as políticas direcionadas para essa população. Acredito que esse foi o principal ato na verdade que envolveu esse complexo de políticas públicas porque o Conselho existe até hoje”, afirma.
Políticas públicas LGBT+ nos governos petistas: uma ordem cronológica
Segundo o Partido dos Trabalhadores (PT), os governos Lula e Dilma transformaram a causa LGBT+ em “política de estado” e eles destacam, em ordem cronológica, as seguintes ações:
2003: Elevação da Secretaria de Direitos Humanos à categoria de ministério. A medida aumentou os seus recursos, autonomia e poder de transformação social.
2004: Criação do programa “Brasil sem Homofobia”. O programa foi desenvolvido com o objetivo de promover a cidadania e os Direitos Humanos à população LGBT a partir de equiparação de direitos e do combate à violência e à discriminação.
2005: Fortalecimento do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos LGBT. A sua estrutura foi modificada e passou a contar, obrigatoriamente, com a participação de membros da população LGBT+.
2006: Sanção da Lei Maria da Penha. Entre muitas medidas, a lei federal passou a prever expressamente a união homoafetiva feminina.
2008: Realização da 1ª Conferência Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos LGBT. Considerada um marco histórico, a conferência convocada por decreto presidencial foi a primeira a ouvir, em âmbito nacional, as demandas da população LGBT+. O encontro mobilizou governos estaduais, Ministério Público, representantes dos poderes Legislativo e Judiciário e a sociedade civil organizada.
2009: Criação da Coordenação Geral de Promoção dos Direitos de LGBT. Subordinada à Secretaria de Direitos Humanos, é responsável por articular ações com os demais ministérios e órgãos do Governo Federal.
2010: Criação do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBT. O Plano Nacional inseriu diversas ações de valorização LGBT+, seja por renda, escolarização, educação, acesso à saúde, identidade de gênero e prevenção à violência homofóbica.
Extensão de direito de declaração conjunta para casais homoafetivos pelo Ministério da Fazenda. Medida é válida, inclusive, para fins de Imposto de Renda.
2011: Criação do módulo LGBT no Disque 100. A intenção foi preparar o Disque Direitos Humanos para receber denúncias de violações de direitos da população LGBT+.
Elaboração do 1º Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil. Após a publicação do relatório pela Secretaria dos Direitos Humanos (SDH) da Presidência da República, as denúncias contra violência homofóbica aumentaram em 116% em um ano.
Realização da 2ª Conferência Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos LGBT. Nos moldes da conferência realizada em 2008, discutiu-se nacionalmente e com diversas entidades governamentais e da sociedade civil os avanços políticos e sociais sobre o tema.
2013: Alterações no SUS. O Sistema Único de Saúde passou a contemplar o atendimento completo para travestis, transexuais e transgêneros, como terapia hormonal e cirurgias. A identidade de gênero passou também a ser respeitada, com a inclusão do nome social no cartão do SUS.
Reconhecimento dos direitos de casais de mesmo sexo no serviço público federal. Os casais homoafetivos passaram a ter, oficialmente, os mesmos direitos de qualquer casal, como plano de saúde, licença gala, entre outros.
Assinatura do governo brasileiro à Convenção contra Todas as Formas de Discriminação e Intolerância da Organização dos Estados Americanos. O texto, assinado em Antígua (Guatemala), define as obrigações dos países sobre temas como orientação sexual e identidade de gênero.
Criação do Sistema Nacional de Promoção de Direitos e Enfrentamento à Violência contra LGBT. O Sistema Nacional LGBT é uma estrutura articulada para incentivar a criação de programas de valorização dessa parte da população, comitês de enfrentamento à discriminação e combate a violência, além de oferecer apoio psicológico e jurídico para LGBTs nessa situação.
2015: Posse de Symmy Larrat como coordenadora-geral de Promoção dos Direitos LGBT da SDH. A paraense é a primeira travesti a ocupar o cargo. Segundo ela, uma das missões mais importantes na função é “tirar as travestis do submundo e da exclusão social”.
Governos petistas avançaram na pauta LGBT+, mas FHC foi pioneiro
A população LGBTQIAP+ tem em sua memória lembranças vivas sobre os avanços alcançados durantes os governos petistas, como as políticas públicas citadas acima, contudo, é importante lembrar que Lula não foi o primeiro a ser explícito sobre os direitos da comunidade queer, mas sim seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, que foi presidente durante dois mandatos, entre 1995 e 2002.
O fundador do Grupo Gay da Bahia, Luiz Mott, afirma ter tido participação ativa neste episódio da história da política brasileira.
“Desde que fundei o GGB, em 1980, sempre tentei um diálogo com a Presidência da República. No governo FHC eu consegui. Por meio de um professor amigo meu, que era próximo do ministro dos Direitos Humanos, consegui que o Fernando Henrique Cardoso fosse o primeiro presidente a escrever em um documento oficial a palavra homossexual”, afirma.
Durante seu primeiro mandato como presidente do Brasil (1995-1998), Fernando Henrique Cardoso criou o Plano Nacional de Direitos Humanos , uma lista de recomendações relacionadas ao convívio respeitoso em cidadania. Contudo, o Plano recebeu críticas na época pela falta de efetividade das medidas na legislação.
Perto do fim do segundo mandato, em maio de 2002, FHC lançou uma segunda versão do documento com uma lista de 518 propostas, 156 delas previstas para serem implementadas nos meses seguintes. Chamou a atenção na época o apoio à comunidade LGBTQIAP+, aos negros, às mulheres e aos deficientes.
No que tange a população LGBT+, o texto recomenda: “GAYS: apóia a regulamentação da união civil entre pessoas do mesmo sexo. TRANSEXUAIS: apóia a mudança de registro civil para transexuais. PEDERASTIA: defende a exclusão do termo (homossexualismo masculino) do Código Penal Militar”, diz o texto que na época utilizou a palavra ‘homessexualismo’, hoje em desuso.
Mott relembra que no dia do lançamento do documento estava presente e que uma bandeira do movimento LGBT+ foi entregue a FHC, que posou com o símbolo. A foto estampou as capas dos jornais na época.
“Lembro que o presidente disse que era a favor da união estável homoafetiva. Na ocasião, o Welton Trindade [ativista da causa LGBT+] botou na mão dele [do FHC] uma bandeirinha do arco-íris. Fernando Henrique foi o primeiro a desbravar esse campo”, diz.
O que esperar do terceiro mandato de Lula?
No que se desenha sobre os novos ministérios que farão parte do terceiro mandato de Luíz Inácio Lula da Silva, muito é aguardado sobre a questão dos Direitos Humanos, Igualdade Racial, Cultura e em especial no avanço sobre as políticas públicas voltadas para a população LGBTQIAP+.
Mott considera que a “prioridade número um” é erradicar as mortes violentas de pessoas LGBTQIAP+ no Brasil. “Deve-se descobrir e traçar uma estratégia de tirar do nosso país a marca de ser o campeão mundial de mortes violentas da comunidade, o que implica em política de segurança nos locais predominantemente frequentados por pessoas queer”.
Segundo o relatório "Mortes Violentas de LGBT+ no Brasil" de 2021, do Grupo Gay da Bahia, 300 pessoas LGBT+ sofreram morte violenta no Brasil em 2021, 8% a mais do que no ano anterior. Os números mostram que houveram 276 homicídios (92%) e 24 suicídios (8%). O Brasil continua sendo o país do mundo onde mais LGBTs são assassinados: uma morte a cada 29 horas.
O fundador do GGB ainda elenca que a saúde é um dos pontos que vale a atenção e que deve-se fazer uma campanha maciça para a prevenção do HIV , uma vez que o vírus “ainda atinge sobretudo jovens homens gays cis, travestis e transexuais”.
Por fim, ele cita “cumprir as resoluções que foram aprovadas, sobretudo pela Justiça, como a criminalização da LGBTfobia e a universalização do respeito ao nome social das pessoas trans, por exemplo, além de promover ações culturais pró-LGBT, liberando exposições que foram censuradas durante o governo Bolsonaro”.
Vinícius Zacarias também chama a atenção para a importância da cultura nas políticas públicas LGBT+. “A política de arte, cultura e audiovisual que fomente a cultura LGBTI+ precisa ser revigorada”.
“Vivemos um momento social em que é muito cobrada a representatividade, principalmente pela nova geração, que demanda se reconhecer nos espaços, se valorizar, preservar seus saberes, suas práticas e suas celebrações”, afirma. Contudo, Zacarias afirma ainda que o principal papel, tanto do novo governo quanto da sociedade, é o de vigiar.
“O nosso trabalho tem que ser de vigilância porque além desse novo pacto de reorganização do país, que está representado pelo governo Lula, que traz a mobilização democrática do país, nós também temos um trabalho vigilante e persistente contra as forças contrárias que estão na espreita, uma vez que o Bolsonaro deixou rastros conservadores fortes na sociedade”, defende.
O cientista social finaliza afirmando que o governo Lula tem um papel fundamental para voltar a demarcar o lugar dos Direitos Humanos da população LGBTI+ dentro das ações de governo, envolvendo essas iniciativas de forma interministerial.
“É preciso um trabalho cooperativo interministerial porque o problema da violência para a população em vulnerabilidade é transversalizado e não se resolve apenas com uma ação de governo. Tem que ser algo cooperado entre as instituições com um diálogo constante com a sociedade civil, a partir dos conselhos das entidades de base, como universidades, e da organização dos movimentos sociais”, conclui.
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