O Setembro Amarelo existe desde 2015 no Brasil e é usado para conscientizar as pessoas sobre o suicídio e como evitá-lo. Mas, embora o fato de tirar a própria vida seja um problema que acomete muitos brasileiros — em 2020 foram registrados 12.895 mortes desse modo — de acordo com dados do DataSUS, plataforma do governo federal que reúne informações relativas à saúde no Brasil, a população trans sofre outro tipo de problema: o de serem "suicidados".
O termo “suicidado” parece estranho, mas ganhou notoriedade entre a comunidade LGBTQIAPN+ após o jovem Demétrio Campos, um homem trans, negro, periférico, que era modelo e dançarino, ter tirado a própria vida no dia 17 de maio de 2020, o Dia Internacional da Luta Contra a LGBTQIA+fobia, aos 23 anos.
Entre 2019 e 2021, houve 50 casos de suicídios confirmados de pessoas trans. Em 2020, haviam sido catalogados 23 casos de suicídio, sendo 7 (30%) casos de homens trans/transmaculinos e 16 (70%) travestis/mulheres trans. Enquanto isso, em 2019, 5 (33%) eram homens trans/transmasculinos e 10 (67%) foram travestis e mulheres trans. Já em 2021, foram catalogados 12 casos de suicídio, sendo 2 casos entre homens trans/ transmaculinos e 10 travestis/mulheres trans, como evidenciam os dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
Segundo a entidade, o suicídio é muito difícil de mapear porque não são publicados e, por isso, este número é baixo. Em um cenário mais amplo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o suicídio é a segunda maior causa de mortes entre jovens de 15 a 29 anos, além ser considerado um assunto extremamente complexo e multifatorial.
“O termo ‘suicidado’ surge para mostrar que essas vidas [LGBTQIAPN+, negras, periféricas] não são representadas, elas não existem socialmente. Vivemos em uma sociedade que não reconhece a cidadania LGBTQIAPN+ e, principalmente, de indivíduos transgêneros. Você tem um acúmulo de situações estruturais, como a evasão escolar, dificuldade para adentrarem no mercado de trabalho, abandono familiar, exclusão social e impeditivos para o processo transexualizador. Todas essas violências são responsáveis”, explica o doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Pesquisador do Inanna - Núcleo de Pesquisas sobre Sexualidades, Feminismos, Gêneros e Diferenças, Marcelo Hailer, 40 anos.
“O termo também retira essa responsabilidade do indivíduo e coloca a responsabilidade na sociedade porque, ao contrário do que diz o senso comum, não é porque eles desistem da vida, mas porque foram desistidas pelo sistema. Por isso a ideia do ser suicidado”, adiciona.
Um artigo liderado pela professora do Instituto de Psicologia da USP Vera Silva Facciola Paiva sobre a “Prevalência e determinantes sociais da ideação suicida entre estudantes brasileiros em escolas públicas do ensino médio”, associa o suicídio a questões sociais, como desigualdade econômica, crescimento do desemprego, falta de políticas de proteção social e identidade de gênero.
A psicóloga clínica Rafaela Beraldo Modé, uma mulher trans de 50 anos, conta que a maioria da população trans e travesti não tem condições financeiras de arcar com o valor das sessões. “Faço parte de um grupo de profissionais da psicologia e tentamos atender com valor social as demandas que aparecem, mas não conseguimos dar conta. Existem ONGs que também prestam acompanhamento psicoterápico para pessoas trans, mas precisamos de mais ações do poder público nesse sentido”.
A população trans tem o acesso obstaculizado por ainda permanecerem em um contexto marginal da sociedade, fazendo com que esse grupo não consiga uma renda fixa e estável. No Brasil, 90% de trans e travestis vivem da prostituição de maneira compulsória.
Para Pedro Sammarco, 46 anos, psicólogo clínico e voluntário do Centro de Valorização da Vida (CVV) com atendimento pela Telavita, a causa do suicídio tem vários fatores. “A psicologia entende o ser humano como sendo biopsicossocial e há quem acredite no aspecto espiritual também. Então, temos que ver aspectos biológicos, aspectos sociais, aspectos psicológicos e aspectos espirituais dessa pessoa, para quem acredita”.
O relatório “Transexualidades e Saúde Pública no Brasil”, do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT e do Departamento de Antropologia e Arqueologia, pontuou que 42% da população trans já tentou suicídio e que 85,7% dos homens trans já pensaram em suicídio ou tentaram cometer o ato.
“Pessoas transgêneros são um dos grupos mais vulneráveis do nosso país e, quando falamos de pessoas trans negras, essa vulnerabilidade aumenta. Precisamos de oportunidades para que essa população possa adentrar no mercado de trabalho e possa ser inserida socialmente como todos são. Acabar com o preconceito é o primeiro passo, mas temos muitos outros passos pela frente”, argumenta.
Para Marcelo e Rafaela, datas específicas ajudam a lembrar que essas situações existem e precisam ser enfrentadas diariamente, mas elas não têm o poder de conseguir mudar essa realidade.
“Precisamos bem mais do que isso: precisamos de ações concretas, que tragam dignidade para as pessoas trans, como todas as pessoas merecem. Respeito, afeto, educação, trabalho, saúde, moradia, entre tantas outras coisas”, defende a profissional.
“É importante termos um mês como esse, assim como o mês do Orgulho, pois são nessas datas que essas discussões são trazidas à tona pela imprensa, políticos e o governo também realiza ações. Todavia, é bom, mas é pouco, porque precisam ser constantes e são vidas que sofrem diariamente com as violências estruturais e psicológicas”.
A ONG Internacional National Gay and Lesbian Task Force mostrou que 41% das pessoas trans já tentaram suicídio nos Estados Unidos em algum momento. Outra pesquisa do Instituto Williams de Los Angeles, publicada em 2014, expôs que 40% das pessoas trans já tentaram cometer suicídio. Já uma pesquisa da Universidade de Columbia, nos EUA, informa que o índice de suicídio é cinco vezes mais frequente entre LGBTQIA+.
Os psicólogos estão preparados para atender pessoas trans?
Em 2019, houve mudança no CID-11 que retirou a transexualidade do capítulo de doenças de saúde mental que estava inserida no CID-10, o que foi um grande avanço. Todavia, para Rafaela, ainda há muito profissionais que perpetuam o preconceito e enfatizam um pensamento que patologiza a transexualidade.
“O Conselho Federal de Psicologia, e seus Conselhos Regionais, têm procurado orientar os profissionais de psicologia referente ao tema, mas isso não é o suficiente. Ainda temos muitos relatos de transfobia por parte de profissionais da psicologia”.
Enquanto psicóloga trans, ela recebe em seu consultório pessoas diversas, dentro e fora da transgeneridade. Todavia, o atendimento de pessoas trans gera uma vinculação muito melhor. “Entendo a transfobia na minha própria pele, mas isso não invalida que profissionais cisgêneros também possam atender com acolhimento e confiança”.
Para Pedro, enquanto voluntário, ele cita que o CVV tem sido efetivo, mas que não há um atendimento especializado para pessoas trans e travestis. O centro tem um atendimento direcionado para todo o tipo de grupos sociais.
Ele ainda defende que, de fato, há poucas pessoas preparadas para atender pessoas trans, mas por um problema estrutural e educacional. “A faculdade de psicologia não está preparada, as pessoas ainda não conseguem se relacionar bem com suas sexualidades e o sexual. Isso porque a sociedade ainda castra o que é sexual. É preciso rever todo esse processo de educação, que ainda é bastante desatualizado”, opina o psicólogo.
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