O dia 17 de maio é conhecido como o Dia Mundial Contra a LGBTfobia e, em 2021, marca os 31 anos da retirada da homossexualidade da classificação de doenças pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Apesar de crimes motivados por LGBTfobia terem sido criminalizados há dois anos , o Brasil ainda caminha a passos largos para garantir segurança e inserção da população LGBTQIA+.
Há quatro décadas, grupos e movimentos sociais no Brasil e em todo mundo conseguiram introduzir as demandas de gênero na sociedade. Lucas Bulgarelli, antropólogo e diretor fundador do Instituto Matizes, explica que os resultados dessas discussões começaram a aparecer nos últimos seis anos.
“A gente vinha acompanhando um aumento desses direitos, da valorização e do respeito a essas pessoas em amplos setores da sociedade”, explica. No entanto, ele diz que o aumento do conservadorismo nos setores religiosos e políticos acabaram ficando à frente dessas questões.
De acordo com Samuel Araújo, demógrafo do coletivo #VoteLGBT, havia grupos que estavam conseguindo promover discussões sociais e conquistar avanços. Mas tudo isso estagnou depois da eleição do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
“Antes de Bolsonaro, estávamos conseguindo discutir preconceitos e estigmas sociais. Em seguida, a gente viu uma pessoa que era abertamente homofóbica, machista, racista, transfóbico e elitista chegar ao maior cargo do Executivo. Bolsonaro não propõe a possibilidade da população LGBT de ser tratada como cidadã no Brasil”, diz.
A partir da possibilidade de eleição do atual presidente, a população LGBT passou a sentir medo de que uma parcela dos direitos conquistados fossem anulados. Araújo explica que, apesar de nenhum retrocesso institucional direto ter sido cometido até o momento, existe um apagamento das discussões sobre gênero e sexualidade no Governo. Como consequência, a criação de políticas são paralisadas.
Segundo Bulgarelli, o Governo dificultou os processos democráticos no campo dos direitos LGBTs de outras maneiras, como diminuindo participações da comunidade em conselhos e coordenadorias a nível nacional.
Essa estratégia é acompanhada da desvalorização das demandas LGBTs pelo Poder Executivo. “Passamos a perceber a produção de políticas antigênero e antissexualidade. Não são barrados os direitos já conquistados, mas são produzidos outros que nos prejudicam, como as políticas de combate à ideologia de gênero”, explica o antropólogo.
Como exemplo desse redirecionamento, Bulgarelli cita a criação do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMDFH), chefiado por Damares Alves, pasta a qual, em tese, as questões LGBTs estariam vinculadas. “A família vem com força como uma forma de substituir os direitos de gênero e sexualidade. Há uma operação por trás do ministério que responsabiliza esses direitos à família, não ao Estado”, afirma.
Araújo ressalta a falta de ações por parte do MMDFH para combater a LGBTfobia e propor políticas públicas para a comunidade. “Mesmo com um orçamento liberado de R$800 mil, não foi feito basicamente nada”, diz.
Além disso, o demógrafo afirma que o assunto é tratado de forma superficial. “Essa inação por si só é muito violenta, porque quando você deixa as coisas acontecerem, mesmo sabendo da violência, você está colocando as pessoas nesses lugares. Isso gera um aprofundamento de todas as vulnerabilidades da população LGBT”, acrescenta.
País mais letal para LGBTs
Como uma das consequências da falta de políticas públicas, o Brasil continua como o país que mais assassina pessoas LGBTQIA+ em todo mundo, seguido, respectivamente, pelo México e os Estados Unidos. A LGBTfobia mata uma pessoa a cada 26 horas no país.
De acordo com o Grupo Gay da Bahia (GGB), estima-se que 329 LGBTs foram mortos em 2019 (último levantamento) e 32 pessoas se suicidaram. Os dados do coletivo são utilizados como parâmetro para a contabilização de vítimas da LGBTfobia há quatro décadas.
Em relação a pessoas transgênero , estima-se que 56 foram assassinadas entre janeiro e abril de 2021, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). Dessas mortes, 54 eram mulheres trans ou travestis, e 2 eram homens ou transmasculinas.
No mesmo período, a ANTRA aponta que houve 5 suicídios, 17 tentativas de assassinatos e 18 violações dos direitos humanos contra pessoas trans. A organização analisou que as elas estão morrendo cada vez mais jovens. Somente dez vítimas fatais morreram com idade acima da média de expectativa de vida para pessoas trans, que é de 35 anos. O restante varia entre 13 e 35 anos.
O mapeamento do IBDSEX aponta que 52% das pessoas LGBTQIA+ sofreram LGBTfobia, das quais 21,2% passaram pela situação mais de 20 vezes. Mais de 91% delas não realizaram denúncias. A maioria das agressões relatadas ao questionário são verbais (44,2%), seguidas de verbais e psicológicas (30,1%) e físicas (3,7%)
Falta de censo específico
A demanda dos movimentos sociais por um censo específico para contabilizar pessoas LGBTs vem desde os anos 1980. Mesmo assim, não houve até hoje uma viabilização de contabilização por parte de órgãos oficiais. No Brasil, isso gera o fenômeno de subnotificação.
“O censo serve como uma bússola das necessidades da população. Se a gente não é contado no censo, a gente não é contado como parte da população. Não sabemos quantas pessoas no Brasil são LGBTQIA+, suas características, perfil de idade, a composição de gênero e a distribuição pelo país. Como não se sabe muita coisa, não tem como produzir políticas públicas, ficamos em um limbo”, explica o demógrafo.
Com a falta de dados oficiais, coletivos e movimentos LGBTs se unem para fazer esse censo de maneira independente, seja com coletas próprias ou, em casos de violência e assassinatos, a partir de quantidade de boletins de ocorrência ou veiculações na mídia.
A pesquisa “Ensaio sobre o perfil da comunidade LGBTI+, organizado pelo Instituto Brasileiro de Diversidade Sexual (IBDSEX), foi uma das mais recentes tentativas de traçar um panorama sobre esta população no país. “A gente tem feito um esforço gigantesco para mapear, só que a gente acaba esbarrando na proposição de política pública e incertezas”, diz Araújo.
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Órgãos como o Disque Direitos Humanos, a Ouvidoria do Sistema Único de Saúde (SUS) e a Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SNPM) disponibilizam informações, principalmente sobre casos de LGBTfobia. No entanto, essas pesquisas não são regulares e são divulgadas de forma esporádica. Além disso, não apresentam informações amplas.
Bulgarelli diz que este mapeamento pode ser feito pelo censo anual do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ao acrescentar uma pergunta sobre orientação afetivo-sexual e identidade de gênero.
No entanto, o antropólogo explica que a falta deste mapeamento fez com que os movimentos aprendessem a se organizar de outras maneiras. "Sabemos o quanto não ter os números nos prejudica, mas a gente também consegue fazer política sem isso”, afirma.
Má influência
A última grande movimentação legislativa em relação à população LGBTQIA+ diz respeito ao projeto de lei 504/2020, que chegou a ser votado pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) . O objetivo do PL é proibir alusões ao tema diversidade sexual em peças publicitárias infantis, com a explicação de que LGBTs são “má influência" para crianças devido a “práticas danosas” promovidas pela população.
Araújo analisa que a intenção por trás do PL 504 e projetos semelhantes é representar a homofobia de parte dos eleitores e servir como controle. Para a comunidade, a aprovação dessas medidas representariam uma “volta ao armário”; ou seja, uma concretização de violências que visam acuar a população.
“Essa representatividade na mídia é muito importante para reduzir a angústia e dizer que aquela pessoa não é a única a passar por esses questionamentos. Isso tem impactos na saúde mental, nos direitos. Tirar isso é tentar fazer com que as pessoas LGBTs percam todas as referências que a gente demorou anos para construir”, explica.
Bulgarelli ressalta que esse tipo de PL não foi criado pelo Brasil, mas está em vigor em países como Rússia, Polônia e Hungria. Desta maneira, o antropólogo explica que os governos que pessoas LGBTs foram influenciadas por alguma propaganda a se tornarem LGBTs. “Há uma noção de pensar o próprio fato das pessoas serem LGBTs como se tivessem sido enganadas e convencidas a isso”, explica.
Pandemia
Ao longo da pandemia do novo coronavírus, estima-se que, durante os períodos de isolamento mais restrito, a população ficou mais exposta a violências domésticas, mesmo fenômeno que acometeu as mulheres.
Para estimar o aumento de casos de violência, a Secretaria de Estadual de Segurança Pública (SESP) do estado de Mato Grosso divulgou dados de registros de ocorrência coletados pelo Grupo Estadual de Combate aos Crimes de Homofobia (GECCH). Só no estado, foram 160 denúncias entre os meses de janeiro e agosto de 2020. Em relação ao mesmo período em 2019, houve aumento de 108%.
Levantamento feito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o #VoteLGBT aponta que 10% das pessoas participantes passaram a ter problemas no convívio com familiares por conta do isolamento social.
Cerca de 47% de bissexuais e pansexuais, 44% das lésbicas, 34% dos gays, e 42% de pessoas transgênero tinham medo do impacto da pandemia em sua saúde mental. O diagnóstico prévio de transtornos mentais entre LGBTs era de 28%.
Apesar das dificuldades de apuração de dados, Araújo afirma que, antes da pandemia, era possível fazer um rastreamento por meio das denúncias de violência. Esses dados se tornaram ainda mais restritos, o que dificulta ainda mais o levantamento. Por esse motivo, os casos acabam ficando conhecidos por meio de relatos que circulam nos movimentos sociais.
“Se por um lado ficar em casa era uma questão de segurança para toda a população, para muitas pessoas LGBTs, a própria casa não é necessariamente o lugar mais seguro uma vez que você pode sofrer violência pela própria família”, explica o demógrafo.
Vida profissional
O desemprego também foi recorrente durante a pandemia. A pesquisa odo #VoteLGBT estima que 21,6% da população LGBT ficou desempregada até o mês de maio de 2020. Apesar do levantamento, esbarra-se novamente na questão da subnotificação. "Principalmente com o recorde da população trans, a gente não faz ideia de quais são esses dados, e assim fica difícil provar como as pessoas LGBTs estão sendo prejudicadas”, afirma Caê Vasconcelos, jornalista e autor do livro “Transresistência: Pessoas trans no mercado de trabalho”.
No entanto, o jornalista afirma que o problema do desemprego da comunidade é anterior à pandemia. “O mercado de trabalho mal tem pessoas negras no mercado formal de trabalho, imagine pessoas LGBTs, principalmente trans. Já era difícil quando a gente estava em uma normalidade, sempre foi desigual”, diz.
A população trans é a mais impactada e a mais ausente no mercado formal de trabalho. A ANTRA estima que mais de 90% estão no trabalho sexual , sendo a maioria travestis e mulheres trans negras. O motivo é a falta de oportunidades motivada pelo preconceito. Por não encontrarem portas em outros lugares, o destino comum é o da prostituição, explica Caê.
Além de terem ficado mais vulneráveis à contaminação da Covid-19, as trabalhadoras sexuais ficam mais passíveis de crimes de violência e correm risco de morte. “A maioria das travestis e mulheres trans assassinadas estavam em situação de vulnerabilidade social por conta do trabalho sexual, porque ele não garante nada. As meninas estão simplesmente expostas à rua”, explica o jornalista.
O principal caminho para conseguir garantir condições de trabalho mais justas e seguras para pessoas trans é gerar empregos no mercado formal de trabalho. No entanto, Caê reconhece que o trabalho sexual ainda vai existir e ser uma opção. Por isso, ele considera importante que esse tipo de trabalho seja regulamentado.
“Com a regulamentação conseguimos resolver alguns pontos, como a exploração e o lucro maior direcionado para quem controla esse trabalho, como cafetões e cafetinas. Oficializando esse trabalho a gente tira a maioria dessas meninas da rua e elas terão, minimamente, um lugar seguro para executar seus trabalhos”, explica.
Inclusão de verdade
Por outro lado, empresas têm se organizado cada vez mais para implementar soluções que garantam a diversidade de suas equipes. No entanto, Caê diz que há um abismo de diferença entre uma empresa dizer que é inclusiva e diversa e realmente o ser. Isto porque apesar de muitas marcas incluírem a diversidade em sua maneira de se comunicar com o consumidor, nem todas são contratantes de pessoas LGBTs, principalmente pessoas trans.
“Além disso, não basta você contratar uma pessoa LGBT, mas garantir que aquela pessoa não vá sofrer nenhum tipo de LGBTfobia enquanto está no trabalho, desde um olhar até um comentário em tom de brincadeira, mas que não é uma brincadeira”, diz.
“Não adianta chegar no Mês do Orgulho [em junho] ou na semana da Parada LGBT e colocar as cores da bandeira na sua marca se você não tem pessoas trans dentro da sua empresa, não só naquele cargo robótico de executar uma função, mas também na posição de propor ideias e mudanças”, acrescenta.
Avanços e retrocessos
Araújo afirma que o último grande avanço conquistado pela comunidade LGBTQIA+, segundo Araújo, foi a equiparação dos crimes de LGBTfobia aos crimes de racismo pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em junho de 2019. Agora, violências e discriminações proferidas por conta de identidades de gênero ou orientações afetivo-sexuais se enquadram na Lei nº7716/89.
“Na medida em que a medida a gente consegue não só identificar um preconceito, mas nomeá-lo, e criminalizá-lo, as pessoas passam a entender que isso não é aceitável. Isso vira um comportamento e as pessoas de fato passem a ter medo”, diz o demógrafo. Da mesma forma, ele considera que o fato de Bolsonaro dar declarações homofóbicas sem ser detido passa uma mensagem conflituosa.
Caê explica que o STF tem sido o principal órgão público a garantir conquistas para a comunidade LGBT. Além da criminalização da LGBTfobia, também foi o STF que viabilizou o casamento homoafetivo, a retificação de nome para pessoas trans e a doação de sangue feita por homens gays , passando por cima do estigma de contração de HIV e Aids.
As mudanças, no entanto, são mínimas. Bulgarelli explica que apesar dos esforços do STF serem importantes, as determinações do órgão não têm a mesma força que uma lei e podem ser alteradas.
“O grande problema é que não existem leis de identidade de gênero, como estão sendo viabilizadas em países como Argentina e Portugal. Até hoje a gente sofre para ir em uma consulta médica. Sofremos transfobia na escola, no trabalho, na universidade. Temos dificuldade para ter acesso ao banheiro. Tudo isso porque o Estado não tem leis que assegurem essas questões”, afirma Caê.
Por parte do Estado, os retrocessos foram mais recorrentes do que os avanços. Araújo atribui isto à extinção de órgãos que contribuíam para a abordagem das pautas LGBTQIA+ estagnaram esse processo e esvaziaram as esferas de debate.
“A gente vinha de um avanço que, mesmo que não tenha refletido em uma mudança concreta na qualidade de vida, existiam possibilidades. A gente estava dialogando com o poder público, produzindo documentos e demonstrando nossas demandas. O esvaziamento disso gera um vácuo e para de se produzir essas questões dentro do governo”, explica Araújo.
A falta desses documentos e até mesmo de legislação atribui-se a pouca presença de parlamentares LGBTQIA+ e o crescimento de representantes da bancada conservadora. “A população LGBT está sub representada no Congresso Federal, o que faz com que, historicamente, a gente tenha tido derrotas nesse campo”, explica Bulgarelli.
O sucateamento de programas municipais, estaduais e federais que buscavam equiparar a situação de pessoas LGBTs também contribuíram para esse declínio. Como exemplo, Caê cita o projeto Transcidadania, implementado pelo governo de Fernando Haddad (PT) na cidade de São Paulo, mas que não teve a mesma continuidade na gestão João Doria e Bruno Covas (ambos do PSDB).
A proposta do Transcidadania era capacitar pessoas trans por meio de cursos profissionalizantes, remunerando a pessoa participante. “Além de garantir a segurança dessa pessoa, isso dificultou o argumento das empresas para não contratar: o de que a pessoa trans não tem capacitação”, diz.
O jornalista diz que apoiar esse tipo de projeto é um passo importante para viabilizar oportunidades cada vez maiores. “Felizmente a gente está conseguindo entrar na universidade, se formar, virar mestre. Daqui a pouco a gente vai ser PHD e aí não vai mais ter desculpa para não estarmos no mercado a não ser a transfobia”.