A pandemia da Covid-19 deixou todo o mundo em alerta sobre um assunto que antes era pouco debatido: a saúde mental . Com o isolamento social e as incertezas que pairavam sobre o vírus, a população mundial sentiu o peso dessas pressões de forma significativa, o que afetou a saúde mental de forma coletiva.
A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) apontou que 59% de seus associados perceberam aumento de até 25% nas consultas em 2020 - o primeiro ano de pandemia - e 82,9% perceberam o agravamento dos sintomas em pacientes que ainda estão em tratamento.
Com essa urgência em manter a saúde mental equilibrada, surgem inúmeras questões que estão conectadas com os debates contemporâneos como o combate ao racismo, à LGBTFobia, ao machismo e à xenofobia, que são causadores do adoecimento mental.
O avanço no debate dessas questões tem feito surgir profissionais que entenderam a importância da realização do trabalho de saúde mental de forma interseccionalizada, ou seja, levando em consideração recortes importantes da subjetividade do paciente de forma simultânea, como raça e identidade de gênero.
De acordo com a psicóloga Ivani Francisco de Oliveira, que atua na Gestão do Conselho Federal de Psicologia (CFP) em Brasília, e já foi Presidente do Conselho Regional de Psicologia (CRP) de São Paulo, o mérito de estarmos discutindo essas pautas hoje em dia, tanto na dimensão da subjetividade das pessoas negras quanto LGBTQIAP+, não é dos profissionais de saúde, mas sim dos movimentos organizados.
“Temos um histórico na saúde, tanto na medicina, psiquiatria e psicologia, que atrelava o pecado à doença mental. Algumas existências, como de pessoas trans e travestis, eram negadas - e ainda são hoje em dia - sob a ótica religiosa. Contudo, com a reivindicação e força dos movimentos, quando eles começam a até produzir críticas e tensionamentos dentro da academia, conseguimos produzir um movimento que busca sair de um lugar androcêntrico, etnocêntrico e cis-heteronormativo”, afirma a profissional.
Esses movimentos, que discutem a ampliação do acesso ao tratamento de saúde mental, são fatores que podem ter ajudado o tema ultrapassar o câncer, pela primeira vez na história, como preocupação de saúde.
O levantamento ‘Monitor Global dos Serviços de Saúde’, de 2022, realizado pela empresa de pesquisa Ipsos em 34 países, e divulgado na última segunda-feira (26), apontou o coronavírus como a principal preocupação de saúde (47%), seguido por saúde mental (36%) e câncer (34%).
No Brasil, a aflição com a saúde mental é ainda maior que a média global, representando quase metade do total (49%). A pesquisa foi conduzida entre os dias 22 de julho e 5 de agosto deste ano e ouviu 23,5 mil pessoas ao redor do mundo.
Direito ao tratamento de saúde às pessoas LGBT+
A psicóloga Ivani Francisco de Oliveira cita dois marcos importantes na psicologia que asseguram o tratamento correto às pessoas da comunidade LGBT+.
O primeiro é a resolução 0199, de 1999, do CFP que estipula que “não cabe a nenhum profissional da psicologia no Brasil oferecer qualquer tipo de terapia de reversão da sexualidade''. A especialista explica ainda que a resolução se embasa na declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS) de que homossexualidade não é considerada patalogia.
Já o outro marco é outra resolução da CFP de 2018, a 0118, que estabelece como deve ser a atuação de profissionais de psicologia no atendimento de pessoas transexuais e travestis.
“O profissional precisa atuar a partir da premissa de que transexualidade e travestilidade não são patologias, além de que a transfobia precisa ser enfrentada. O trabalho na clínica também é uma forma de combate, com o estímulo na construção de vínculos, relacionamentos, de validação e afirmação. Nenhum profissional de saúde mental é autorizado a diagnosticar identidade de gênero, já que elas são autodeclaratórias”, afirma.
Saúde mental LGBT+ preta
Para o psicólogo, mestrando no Programa de Estudos da Condição Humana pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e pós-graduado em Africanidades e Cultura Afro-brasileira pela Universidade do Paraná (Unopar), Daniel Amâncio, as políticas afirmativas de inclusão de pessoas pretas e pardas em universidades ajudou para que a sociedade esteja debatendo melhor questões como racismo e LGBTfobia.
“O aumento da nossa ocupação na academia, em lugares de produção de saber e de pesquisa nos proporcionam, enquanto pessoas negras, a acessar lugares antes preteridos, e por consequência, os debates em diferentes áreas da sociedades estão se tornando cada vez mais racializados”, afirma.
A psicóloga Ivani Francisco de Oliveira concorda com a afirmação do colega de profissão. Para ela, "não há como não trazer a discussão do racismo e da LGBTfobia para os campos de trabalho”, quando essas pessoas pretas e LGBT+ estão formadas e atuando em espaços qualificados.
“As pessoas que historicamente ficam marginalizadas e, por consequência, só tinham acesso a um tratamento de saúde que não respeitava suas identidades, agora, com os avanços sociais, também são as pessoas que oferecem esse cuidado”, diz.
A pluralidade da psicologia
Por muito tempo o conhecimento no campo da psicologia foi baseado em pensadores brancos e europeus que desenvolveram suas teses de análise a partir de um sujeito universal, também branco e europeu, o que não leva em consideração questões muito específicas de cada contexto histórico e cultural que um ser humano é atravessado. O psicólogo e mestrando Daniel Amâncio aponta a importância de não se falar em psicologia, mas sim “psicologias”.
“Existem outras filosofias que podem ser levadas em consideração na hora da prática na clínica, como as de pensadores africanos e brasileiros. Temos dialogado muito sobre a importância de descolonizar a psicologia, uma vez que ela ainda é um espaço embranquecido, acessado por uma elite de classe média brasileira, forjada por uma outra elite patriarcal europeia, completamente fundada por homens brancos”, defende o profissional.
Amâncio também chama a atenção para a importância da interseccionalidade no trabalho da clínica psicológica.
“Quando pensamos em saúde mental, o trabalho fica muito diferente se não considerarmos esses marcadores sociais [racial e de diversidade sexual]. É aí que entra a interseccionalidade, que é o lugar onde é possível abordar as questões de gênero, sexualidade, orientação sexual e raça”, afirma.
O profissional finaliza ressaltando o papel que a internet, e por consequência a terapia on-line, tem na ampliação do acesso de saúde mental no Brasil:
“Temos chegado cada vez mais a lugares em que o trabalho de saúde mental demorou muito para chegar. No interior das periferias, dos morros e dos Estados. Tenho um paciente, por exemplo, do interior do Sergipe. Hoje a internet permite uma amplitude que ajuda a levar a saúde mental a lugares antes de difícil acesso”, conclui.
A interseccionalidade na prática
A cientista social e assessora de processos internos em uma ONG, Nairóbi Souza, 26, uma travesti preta, faz terapia que leva em consideração a interseccionalidade há cerca de sete meses. Ela analisa que o resultado tem sido positivo e que dessa forma o trabalho “se faz de maneira mais contextualizada”.
Esta não é a primeira experiência da cientista social com terapia. Durante a adolescência, enquanto ela ainda se reconhecia como uma pessoa cis, ela teve a oportunidade, que considerada que também foi positiva. Contudo, com a maturidade e após a transição, a experiência tem sido outra.
“Agora, na vida adulta, já me identificando como travesti, a terapia é diferente. Hoje já tenho a consciência de entender a minha identidade de gênero de forma racializada. Na minha adolescência, enquanto uma pessoa cis, eu sempre me questionava o porquê eu não era digna de afeto, por que sempre eu era vista apenas como uma amiga. A resposta vem quando você começa a ter consciência racial, e entende o motivo dessas questões”, afirma.
Nairóbi conta que dentre algumas outras necessidades, a questão da afetividade foi o principal fator para que ela retornasse à terapia, já que “esse é um debate bem caro tanto para a população LGBT+, quanto à preta”. Ela acredita que a questão racial sempre vem na frente como impeditivo para que ela consiga desenvolver relações afetivas mais saudáveis.
“Em rolês com pessoas da sigla T, mas que eram brancas, percebo que elas sempre são vistas como mais atraentes do que eu, então considero que a questão da raça vem na frente quanto impeditivo de uma vida afetiva mais fluída para mim. De qualquer forma, não vejo como uma hierarquia de opressões, mas sim atravessamentos”, diz a assessora que, contudo, afirma que ao realizar a transição, sente que sua marginalidade aumentou, uma vez que há “muita fetichização do corpo travesti”.
“Enquanto as pessoas ficarem nessa lógica binária de homem e mulher cis, elas não vão conseguir entender a identidade da travesti, da mulher trans e da pessoa não-binária. Nós construímos nossas identidades e elas vão além do binarismo cisgênero”, finaliza.
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