Em 2020, 41,9 mil pessoas contraíram HIV no Brasil
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Em 2020, 41,9 mil pessoas contraíram HIV no Brasil

Há quase três décadas, a jornalista Roseli Tardelli fala as palavras “Aids” e “HIV” todos os dias, assuntos que podem ser considerados amedrontadores e um tabu para a maior parte da sociedade. Para ela, isso se tornou cotidiano desde dezembro de 1993, quando precisou entrar com um processo contra o convênio Golden Cross, que se recusava a atender seu irmão. 

Naquele ano, o tradutor Sérgio Tardelli passava pela primeira de quatro internações a que seria submetido em decorrência da Aids, no Hospital 9 de Julho. Assim que chegaram, uma representante do convênio disse que Sérgio não poderia ser atendido ali. “Ele estava deitado do meu lado e a menina falou que não atendiam 'esse tipo de doença' ali. O jeito que ela falou, 'esse tipo de doença', do lado do meu irmão, foi sacanagem”, conta Tardelli ao iG Queer.

Naquele dia, ela fez um cheque caução para pagar o hospital e entrou com uma ação contra o convênio, que até hoje cobre atendimentos nos principais hospitais de São Paulo. Os Tardelli ganharam o processo em primeira instância. Após a Golden Cross recorrer, venceram também em segunda instância.

“Não tinha medicação, não tinha para onde correr. Os convênios não atendiam as pessoas que tinham HIV. Então, nós fomos obrigados a protagonizar uma discussão pública com os convênios que não atendiam às pessoas vivendo com Aids. Não atendiam por preconceito”, explica. Mais tarde, o processo inspirou uma jurisprudência para que pessoas com HIV tenham seus direitos como consumidoras respeitados pelos planos de saúde.

Alguns meses depois, aos 30 anos, Sérgio faleceu. Ele foi uma das mais de 33 milhões de pessoas que faleceram em decorrência do HIV desde 1981, ano em que o vírus foi considerado como uma epidemia (e posteriormente pandemia) pelo Relatório Semanal de Morbidade e Mortalidade do National Institute of Health (NIH), nos Estados Unidos. De lá para cá, estima-se que 76 milhões de pessoas contraíram o vírus.

O HIV continua tendo o peso negativo e de pânico devido aos sintomas severos manifestados em pessoas infectadas, a falta de tratamento e o desconhecimento em relação à Aids. A doença é responsável por atacar o sistema imunológico. O vírus consegue alterar o DNA da vítima e se replicar em todo organismo, atacando os linfócitos T-CD4+, um dos principais atores a auxiliar na produção de anticorpos.

O vírus pode ser transmitido, principalmente, por relações sexuais sem uso de preservativo e pelo compartilhamento de seringas e objetos cortantes contaminados. Os sintomas iniciais podem ser nulos ou se assemelharem aos da gripe; no entanto, ao evoluir para a Aids, a pessoa infectada pode apresentar febre, feridas e manchas, perda de peso, infecções, problemas de memória e fadiga.

O estopim do pânico generalizado é a maneira como o HIV e a Aids eram noticiados, de forma que a homofobia se tornou ainda mais naturalizada na sociedade. Os termos “câncer gay” e “peste gay”, por exemplo, eram usados em manchetes de jornais em todo o mundo para se referir ao vírus e à doença.

Esses termos também foram utilizados por instituições governamentais e de saúde. Foi o caso da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que usou os termos em 1982 para confirmar os primeiros casos de Aids no Brasil, e do Ministério da Saúde. Foi neste período que homens gays passaram a ser proibidos de fazer doação de sangue, decisão que foi revertida em 2020 pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

“O que permeia o HIV ao longo desse tempo todo é o preconceito, a desinformação, a intolerância, o fundamentalismo e o negacionismo”, explica Tardelli. Ela acrescenta que, mesmo que o vírus esteja sendo amplamente discutido nas últimas décadas, essa visão negativa permeia. O resultado disso é um impacto preocupante diante do crescimento de casos.

De acordo com o último relatório organizado pela UNAIDS Brasil, cerca de 37,6 milhões de pessoas vivem com HIV no mundo atualmente. “A Espanha tem 28 milhões de habitantes, o que significa que temos quase duas Espanhas de pessoas vivendo com HIV”, compara Tardelli. Além disso, cerca de 1,5 milhão de pessoas são infectadas a cada ano.

Apesar da taxa de mortalidade ter caído cerca de 61% desde 2004, 690 mil pessoas morreram em todo mundo em decorrência do vírus em 2020. No caso do Brasil, dados do boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, divulgado em dezembro de 2020, mostram que mais da metade das vítimas fatais, 61,7% delas, são pessoas pretas.

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Dos 41,9 mil novos casos registrados no Brasil, quase 59% são de homens gays e bissexuais e, no caso das mulheres, 86,8% são héteros. O Ministério da Saúde também contabilizou dados referentes à população trans, também vulnerável ao HIV. Estima-se que cerca de 36,9% das infecções recentes tenham como vítimas a população transgênero, principalmente mulheres trans e travestis.

“Atualmente, o público alvo do HIV no Brasil são jovens entre 18 e 24 anos que não viram a Aids que eu vivenciei por conta do meu irmão e podem mesmo não ter o conhecimento da gravidade do que aconteceu. Afinal, há quanto tempo não temos uma campanha falando para jovens? Os pais abordam sexualidade em casa e respeitam se o filho for gay, se a filha por lésbica ou se for trans?”, questiona. “Enquanto o mundo lidar desta forma com essa questão, infelizmente, vamos continuar tendo infecções”.

Mobilização social e criação de políticas contra HIV/Aids

A jornalista Roseli Tardelli, fundadora da Agência de Notícias da Aids
Divulgação
A jornalista Roseli Tardelli, fundadora da Agência de Notícias da Aids

Gabriela Calazans, psicóloga especialista em medicina preventiva que faz parte do Núcleo de Estudos para a Prevenção da Aids (Nepaids), da Universidade de São Paulo (USP), avalia que esse cenário estreitou ainda mais a relação da sociedade com o conservadorismo e o preconceito. Além disso, esses rótulos e a epidemia em si impactaram todo progresso feito por LGBTs para a consolidação dos direitos e reconhecimento social.

“No início dos anos 1980, há um florescimento no reconhecimento dessa comunidade e o surgimento de grupos em diversas cidades. O surgimento dos primeiros casos pegou o movimento meio de surpresa e gerou uma atmosfera até conspiratória”, explica. No entanto, essa mesma população se organiza para trazer informações sobre as consequências da Aids em outros países.

A discussão teve efervescência em diversos estados brasileiros. Em São Paulo, organizações e ativistas passaram a cobrar a Secretaria de Saúde e o Governo pela instituição de políticas públicas. Calazans aponta que, mesmo sem o fim da ditadura militar, o ambiente político estava mais favorável. Com isso, a população se sentia mais à vontade para realizar manifestações.

Para Tardelli, as ações civis foram de extrema importância para conseguir conquistar melhores tratamentos e políticas dignas de cuidado para pessoas soropositivas. “Se o povo não tivesse ido para rua discordar do tratamento recebido, nada teria acontecido. Em uma das manifestações, fomos até o Viaduto do Chá, ficamos em frente ao Teatro Municipal, para que o silêncio fosse rompido”, lembra. A própria jornalista foi responsável pela organização de diversos encontros com jornalistas, ativistas, gestores e comunicadores para debater a Aids do ponto de vista da cidadania e da comunicação.

Em 1986, o Programa Nacional de DST e Aids (CRT) foi criado pelo Ministério da Saúde para realizar estudos e estrategizar planos de prevenção. Nove anos depois, em 1995, o Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS foi instaurado para oferecer o tratamento a pessoas soropositivas.

No ano seguinte, os medicamentos antirretrovirais (ARV), cruciais para controlar a Aids, passaram a ser distribuídos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em 1996. O Brasil foi o primeiro país da América Latina a disponibilizar o tratamento de Profilaxia Pré-Exposição, a PrEP, capaz de preparar o organismo para impedir contaminações.  Além da PrEP, o governo distribui gratuitamente a Profilaxia Pós-Exposição (PEP) e oferece testagem gratuita. 

Calazans compara as políticas de prevenção e a visibilidade que o assunto ganhou ao longo do tempo em comparação com a época de sua adolescência. “A primeira camisinha que eu comprei era para uma festa no Ensino Médio, que usamos como bexigas. Não tinham gôndolas, tinha que ir no balcão e pedir para o farmacêutico. Eu tinha vergonha. Tive que pedir para um colega comprar. Não tem comparação com a experiência da geração atual. Nesse momento, você tem camisinha no supermercado, na farmácia e até no terminal de ônibus”, analisa.

As iniciativas de comunicação também se mostraram importantes para ampliar a discussão sobre HIV no Brasil. Em 2003, Tardelli fundou a Agência de Notícias da Aids, que conta com apoio de diversas instituições privadas e governamentais. O trabalho da agência tem relevância por quebrar o silêncio sobre o HIV, informar sobre o vírus e acolher pessoas soropositivas.

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“Tem um mundo que tem Aids e tem um mundo que não tem Aids A partir do momento que a gente fundou a agência, a gente uniu esses dois. Além de organizar a informação, abordamos questões que envolvem ciência, arte e prevenção e propomos um diálogo informativo. A gente tem que conversar e transformar”, diz.

Preconceito e dificuldade nas políticas de prevenção

Gabriela Calazans
Acervo pessoal

A psicóloga e especialista em medicina preventiva Gabriela Calazans, integrante do Núcleo de Estudos para a Prevenção da AIDS (Nepaids)

Apesar de o Brasil ainda ser considerado como referência nas políticas de prevenção ao HIV/Aids, existem obstáculos sociais, estruturais e institucionais que impedem que o país tenha taxas melhores de amparo à população. Entre esses empecilhos estão desde a falta de amparo em localizações afastadas dos grandes centros brasileiros até posicionamentos do governo Bolsonaro.

Calazans afirma que o crescimento do conservadorismo é um ponto crucial para entender onde as políticas de prevenção estão falhando. “A gente passa a ter menos discussão e mais restrições nas ações de educação sexual voltada para adolescentes. No fim, esse é o grupo mais fortemente afetado”, diz.

A pesquisadora aponta ainda que a LGBTfobia cresceu significativamente nos últimos anos, algo que reflete o contexto político atual. Primeiro porque qualquer ação voltada para a educação sexual e de sexualidade é cercada por ataques e notícias falsas. “Passa-se a ter ênfase nessa discussão de mobilizar o pânico moral e o medo. Então, esse tema é invisibilizado”, explica.

Segundo, devido ao histórico de posicionamentos e discursos homofóbicos do próprio presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que é capaz de ser um empecilho para conseguir abordar informações verídicas sobre a doença e colocar em vigor políticas e projetos que pautem a sexualidade.

Tardelli se recorda, por exemplo, do impacto da live em que o presidente afirmou que as vacinas contra a Covid-19 “poderiam causar Aids”, no dia 21 de outubro deste ano. “Naquela semana, nós trabalhamos para desconstruir essa ideia porque falas como essa pegam no imaginário popular”, diz a jornalista.

Nos ambientes familiares, a situação não melhora porque a sexualidade, em tese, vai contra os valores familiares. Portanto, ela fica de fora dos valores que, em tese, devem ser pautados. Calazans afirma ainda que há também um recorte social e econômico, já que a ampliação dos serviços de saúde não é suficiente e atinge apenas pessoas privilegiadas.

“A PrEP, por exemplo, é mais acessada no estado de São Paulo que no resto do país, principalmente por pessoas com maior escolaridade e brancas. Existem grupos mais vulnerabilizados socialmente ainda sem acesso à prevenção. Os mais jovens se sentem assediados a pegar camisinha gratuita ou não têm como comprar. A disponibilidade das camisinhas na Praça da Bandeira ou na Nove de Julho, que são regiões privilegiadas, é diferente do que a de Cidade Tiradentes, por exemplo”, explica.

Tardelli explica que esse silenciamento é prejudicial para a saúde sexual dos jovens. “Os jovens querem viver sua sexualidade, viver o seu prazer. Ninguém deve ser reprimido, e é isso que os governos negacionistas, os conservadores e as famílias não entendem. Não adianta querer colocar a sexualidade embaixo do tapete. Enquanto não tivermos falação e um outro olhar, a situação vai continuar desse jeito”, diz a jornalista

Vacina é a única esperança?

Apesar da "corrida pela vacina" existir desde os anos 2000, a esperança de se conseguir um imunizante contra o HIV é ainda mais forte atualmente. Isso porque alguns estudos ao redor do mundo têm conseguido resultados promissores.

Um dos últimos avanços é o fato de um imunizante japonês ter conseguido matar um tipo de HIV em macacos nos testes iniciais. A Moderna, dos Estados Unidos, usa a mesma base tecnológica usada para a vacina da Covid-19 para encontrar um imunizante para o HIV.

Além disso, laboratórios têm conseguido encontrar medicamentos de longa duração para otimizar o tratamento. No último dia 18, o National Institute for Health and Care Excellence, departamento de saúde da Inglaterra, aprovou um injetável elaborado pela Janssen e a ViiV Healthcare, composto por cabotegravir e rilpivirina.

“A hora que vier a vacina eu vou ficar muito feliz. O mundo não merece mais HIV”, diz Roseli. No entanto, ela não considera que a vacina signifique que o trabalho acabou. “As pessoas que vivem com HIV e Aids vão continuar vivendo mesmo depois dessa vacina. Por isso, vamos continuar existindo para continuar informando”, acrescenta.

Para Gabriela, é importante não perder de vista o contexto de desigualdade no Brasil. Por mais que os recursos tecnológicos e biomédicos estejam mais avançados e próximos de um resultado promissor, o acesso a eles é restrito e ainda limitado. “A própria PrEP é limitada para um número específico de tratamentos. A gente não tem PrEP para todo mundo que pode se beneficiar desse medicamento”, diz. Esse panorama, somado à falta de politização sobre a discussão do HIV, é capaz de comprometer a cobertura vacinal, quando for a hora de pensar em uma.

A qualificação dos serviços já existentes se mostra um passo importante. Isso porque, com uma equipe médica própria para atender pessoas soropositivas e capazes de abordar o assunto sem receios, mais as pessoas com HIV vão buscar o tratamento adequado. Para Calazans, os métodos de prevenção devem ser menos focados em prescrições e indicações e mais no diálogo com o paciente.

“Atualmente, estamos trabalhando com serviços compostos por profissionais conservadores que têm dificuldade de abordar diretamente a sexualidade, seja na saúde privada quiçá em uma UBS. É preciso perguntar coisas como: com quem você transa? Como é a sua vida? Em que situações você tem desafios de prevenção? Dessa forma, é possível pensar em alternativas junto com o paciente”, indica.

Tardelli complementa que, além de despreparo, o olhar de condenação também prevalece. “Nem todas as pessoas estão preparadas para acolher e não julgar. Os melhores tratamentos estão nos grandes centros. Em São Paulo e no Rio de Janeiro é diferente. Mas vai lá para os rincões do Brasil para ver como é que funciona”, reforça.

Também é uma das principais prioridades fazer com que a população entenda que o HIV atual não é o mesmo HIV vivido nos anos 1980 e 1990. Nos dias de hoje, viver com Aids é uma possibilidade. “Nosso grande desafio é informar que é uma doença crônica, que as pessoas não morrem mais e que você pode se relacionar com uma pessoa com HIV e Aids, inclusive sem preservativo, se o vírus estiver indetectável. Se está indetectável, é intransmissível”, diz Tardelli.

Nesse sentido, o trabalho feito por pessoas soropositivas influenciadoras digitais e comunicadoras, por exemplo, auxilia a mostrar para a sociedade que é possível viver com a doença. “O HIV fica menos assustador quando a gente convive com pessoas soropositivas, tira a imagem dos anos 1980 e 1990, que ainda é forte, do imaginário popular. Óbvio que traz complicações, não devemos romantizar isso. Mas a perspectiva de vida é diferente".

A fundação de espaços acolhedores e comprometidos com o combate ao vírus é igualmente primordial. Uma das próximas iniciativas nesse sentido será a criação de um centro de recuperação para pessoas que vivem com HIV/Aids no Hospital Emílio Ribas. Em homenagem ao compromisso e os serviços da Agência Aids, o centro será nomeado em nome de Sérgio, o irmão de Tardelli. A notícia foi dada a ela pelo Secretário de Saúde de São Paulo, o infectologista Jean Gorinchteyn.

“Fiquei muito feliz com a homenagem. Eu nunca vi meu irmão reclamar que tinha Aids ou ficar triste por isso. Ele enfrentou a doença com dignidade, resiliência e sabedoria de alma que poucas pessoas têm quando adoecem. Eu quero que esse centro ajude as pessoas a se recuperarem e a terem mais dignidade para viver”, declara a jornalista.

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