A drag queen Ikaro Kadoshi tem mais de duas décadas de carreira
Reprodução/Instagram 24.10.2023
A drag queen Ikaro Kadoshi tem mais de duas décadas de carreira

“Quando eu vi a primeira drag queen na minha vida, eu tinha 16 anos anos e meu mundo mudou ali. Eu entendi o que eu queria ser quando eu vi a primeira drag queen”. Esse relato honesto é de Íkaro Kadoshi, uma drag queen que há mais de duas décadas luta ativamente para trazer à luz temas importantes para a comunidade  LGBTQIAPN+  por meio de sua arte.

Em entrevista exclusiva ao iG Queer o artista afirma que quando viu pela primeira vez uma drag queen o que mais o encantou foi a “função social” do ofício artístico. Contudo, naquela época, Íkaro ainda não conseguia se ver “como elas eram, com todos os símbolos e signos do feminino, com peruca, com peito…”

“Eu queria muito fazer essa arte, mas eu não me vi ali”, conta Íkaro que, sem perceber, já havia sido fisgado pelo “bichinho drag”.


Origem do nome Íkaro Kadoshi

Íkaro é conhecido por brincar e questionar o binarismo de gênero, forte marca de sua drag. Parte dessa influência vem do artista Vitor Piercing, “que era o grande andrógeno da época”.


“Eu conheci ainda uma drag que se chamava Romana Rose, o nome dela era em homenagem ao amor pela mitologia greco romana que ela tinha e que era a mesma paixão que eu tinha [...] Eu era a pessoa que ficava no camarim com todas as drag queens, e não ia curtir a balada, só ficava no camarim, vendo elas se montarem e conversando. Um dia, ela [Romana] me falou: ‘Se você se montar um dia, vai se chamar Ícaro por causa da lenda de Ícaro’. Eu respondi: ‘Você está louca que eu vou me montar!”.

Romana estava certa. O nome, de início, gerou certa confusão nas boates em que Íkaro performava “por ser um nome masculino para uma drag queen, uma pegadinha para as pessoas refletirem sobre o que é masculino e feminino.”

“As pessoas falavam: ‘Quem é o gogo boy Íkaro que vai fazer show hoje?’ Porque até então o nome de drag era tudo feminino. E aí, eu pensei: ‘Ah, talvez eu precise de um sobrenome’.” Kadoshi veio da espiritualidade, outra marca forte de Íkaro.

“Eu sou espiritualista, do espiritismo e da umbanda desde de pequeno, e cinco anos depois [de começar a fazer drag] numa mesa espírita, o espírito me chamou e falou: ‘Tiago [nome de batismo de Íkaro], a gente queria te dar presente, a gente queria te dar o sobrenome de Kadoshi’. Eu falei: ‘Nossa, que honra, muito obrigado’, e fiquei com aquilo na cabeça.”

Íkaro continua: “Eu falei com um amigo que estava comigo: ‘Acho que eles não entenderam o que eu faço porque me deram sobrenome japonês que não tem a ver comigo. Meu amigo começou a rir e me disse: ‘Tiago, Kadoshi significa ‘o divino, o santo’ e vem do hebraico”. A drag  revela que o sobrenome acabou se tornando lembrete para que ela não esquecesse que a arte que faz é divina. “Tudo isso que eu faço foi criação de Deus também.”

Primeira experiência em uma balada LGBT+

Ikaro revela a dificuldade que teve com sua sexualidade na sua adolescência e início da vida adulta
Consequence Photo
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“Eu fui em uma boate pela primeira vez com 16 anos de idade, com RG falso, quem nunca?”, brinca Íkaro. “Até então eu achava que eu era uma das únicas pessoas diferentes das demais. Foi a primeira vez que eu vi que eu não estava sozinho, quando eu cheguei numa boate pela primeira vez, que era um bar na verdade, em São José dos Campos [ São Paulo ], chamado Divina Ciência.”


“Quando eu cheguei, quem estava na porta era uma drag queen, eu fiquei impressionado. Eu era extremamente tímido por ter que me transformar em outra pessoa para poder sobreviver, então isso foi me criando uma timidez e me fazendo ficar numa casca. Cheguei e vi aqueles seres completamente libertos e pensei: ‘É o oposto do que eu sou’.”

Íkaro lembra que naquela época, durante os anos 80, as drags costumavam fazer um “correio elegante” nas boates. “Elas ficavam com cestinha, papel e caneta. Se você quisesse ficar com alguém, mas tinha vergonha por ‘n’ fatores, elas ajudavam.”

“Ao mesmo tempo, a drag era a ‘cola social da noite’. Eu não conhecia ninguém e fiquei sozinho. A primeira pessoa que chegou até mim depois da host foi uma drag. Elas não deixavam ninguém ficar sem acolhimento, e isso foi o que mais me encantou.”

A drag queen Ikaro Kadoshi
A drag queen Ikaro Kadoshi
A drag queen Ikaro Kadoshi
A drag queen Ikaro Kadoshi
A drag queen Ikaro Kadoshi
A drag queen Ikaro Kadoshi
Tiago Liberato, a drag queen Ikaro Kadoshi
A drag queen Ikaro Kadoshi
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Ikaro Kadoshi avalia que se mantém relevante com mais de duas décadas de carreira porque soube se reiventar
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"“Pode demorar um tempo para chegar na expertise, mas não pode parar", diz Ikaro Kadoshi
Ikaro Kadoshi


Cena drag atual

“Hoje temos a mãe das drags, os tutoriais de maquiagem, que não ensina no ‘olho no olho’, que além de ensinar a maquiagem muitas vezes ensina as vivências e tira as dúvidas de quem vai fazer. A gente não tem isso na internet. Não tem mais a necessidade de ver se as pessoas estão sozinhas ou não, de acolher, porque o frenesi do mundo moderno com os aplicativos, celulares e redes sociais, muda muita coisa.”

Embora as críticas, Íkaro avalia que a drag continua questionando como o mundo funciona e diz que não gosta quando as pessoas falam que as queens estão “chegando a novos lugares”: “Não são novos, sempre foram nossos, mas os movimentos da vida nos colocaram em guetos. Nós só estamos voltando para os nossos lugares de direito.”

A artista ainda faz uma avaliação sobre a forma como a comunidade LGBT+ tem se expressado no mundo contemporâneo: “Nós nos tornamos a comunidade mais tóxica, mais preconceituosa, e mais misógina.” 

“E isso vem de onde? São os mecanismos de defesa que a gente aprende no nosso dia-a-dia. Se para sobreviver na escola eu vejo um gay, ou uma pessoa mais feminina do que eu, e eu sofro bullying, para eu não sofrer é mais fácil apontar e fazer brincadeira junto com os outros, para que eles achem que eu sou igual a eles. É mais fácil do que ajudar aquela pessoa e se unir a ela, para falar: ‘Não, não vamos mais aceitar esse bullying’.”


Íkaro continua: “A gente sem perceber reproduz essas mesmas coisas nas boates. Então, na roda de amigos, é mais fácil a gente apontar a travesti, apontar a lésbica , dar risada, apontar a bicha gorda, apontar a bicha preta e todo mundo dar risada, porque está todo mundo com medo de ser olhado e reparado. É o tempo inteiro a gente fazendo isso e a gente precisa refletir urgentemente sobre esses valores.”

23 anos de carreira

Ikaro Kadoshi
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Ikaro Kadoshi avalia que se mantém relevante com mais de duas décadas de carreira porque soube se reiventar

Com muitos anos de estrada, Íkaro revela que sempre é perguntada sobre como avalia que conseguiu se manter relevante por tanto tempo.

Ela responde que o segredo é se reiventar.

“Você pode reinventar a si mesmo, criando um show novo que esteja de acordo, por exemplo, com a música do momento, com as mensagens do momento”, afirma a artista.

“O artista é um contador de ideias e histórias do tempo e espaço que ele vive, mas também de outros tempos que ele quer trazer das reflexões que nunca cessam na humanidade sobre temas como justiça, amor, violência e uma série de outras questões.”

Íkaro ainda reflete seu papel de comunicador e a importância de desempenhar essa função de forma responsável.

“Eu descobri também que é sobre a minha voz, sobre o que eu falo, não só sobre quando eu estou no palco. Quando eu descobri o poder que a minha voz tinha, talvez essa tenha sido a grande alavanca da relevância, porque a drag é uma escola única, que te dá uma visão de mundo que poucas outras pessoas têm.”

Forjado pela dor

Tiago Liberato, a pessoa que vive a persona drag, sintetiza parte da sua vida de uma maneira única: “Eu fui forjado pela dor como muita gente”. Ele explica na sequência alguns dos episódios LGBTfóbicos que fizeram parte da construção de sua identidade.

“Eu fui exorcizado para tirar o demônio da luxúria em mim. Eu falo que eu sou filho de resquícios da era medieval. Fui levado para ser hipnotizado, meu avô me levou num prostíbulo para transar com uma mulher à força aos 14 anos, porque eu tinha que virar homem de qualquer jeito.”


O artista hoje compartilha sua história com seus seguidores porque acredita que essa prática é quase uma “uma terapia em grupo”. “Colocar isso para fora me ajuda a entender melhor e a curar essas coisas”, diz. 

Simbiose entre Tiago e Íkaro

Depois de tantos anos convivendo com a persona drag, Tiago afirma que aprendeu muito com Íkaro, que também ensinou muito ao seu autor, o que provoca uma simbiose entre os dois indivíduos, nas palavras do artista.

“O Íkaro teve várias funções, ele começou sendo a minha armadura. Eu acho que toda drag queen tem a sua drag como armadura, porque você ganha uma força quando você se vê assim no espelho, uma coragem e um destemor que são surreais”, diz Tiago. “Por isso que eu falo que se algum dia você tiver coragem e for desprovido de preconceitos, todo ser humano deveria se montar de drag uma vez na vida.”

“Pode parecer uma coisa muito absurda o que eu estou falando, mas quando você experimenta o que é o ato de passar por todo esse processo [de montar-se de drag] e olhar-se, você tem uma visão muito diferente sobre símbolos e signos do masculino e feminino, como você maltrata ou agradece às pessoas, pelo que você vê.”

A drag ainda avalia que acredita que Íkaro ajudou Tiago a “sair da caixa, da bolha, a ser a sua força e sua armadura”, enquanto o Tiago foi ensinando ao Íkaro, “a maneira certa que eu gostaria de falar, que é a maneira doce.”

Hoje Íkaro, com todos esses símbolos e signos misturados, ainda tem ensinado ao Tiago a questionar a sua própria sexualidade, segundo o artista.

“Se ele [o Tiago] é realmente a letra G [gay da sigla LGBTQIAPN+], se é a letra Q [queer], se é NB [não binário] . Estou me questionando agora nesse exato momento o que eu sou, onde eu me encaixo, e se é que eu me encaixo nessa questão de quem sou eu, independentemente de estar montado ou não.”

Íkaro continua, trazendo um recorte geracional: “A minha geração de 80 passou tanto tempo tendo que pensar o que fazer ou o que deixar de fazer para sobreviver, que não dava tempo para pensar a fundo quem realmente a gente era. Hoje a gente consegue fazer isso.”


“Nos anos 80 para entrar nas boates eu ficava na rua e esperava ficar vazia para que ninguém me visse entrando porque poderia ter alguém que conhecia a minha família ou a minha mãe, e poderia falar que eu estava indo naqueles lugares. Hoje, não se precisa mais disso. As pessoas não sabem o que isso causa psicologicamente na gente, né?”



Saúde Mental

Ikaro aproveita a visibilidade que tem nas redes sociais para tratar de diversos temas, incluindo a  saúde mental.

“A gente precisa entender quais são os nossos limites. Aprender a falar não, não nos colocarmos em situações que a gente não quer, ficar em lugares onde percebemos que não somos bem-vindos… Entender o que a gente merece, o que a gente não merece. A saúde mental vai passar muito pelo autoconhecimento.”


“Quando eu conheço o que causa gatilho em mim, quando eu conheço o que eu mereço, o que eu não mereço e quem eu sou, que é a pergunta de uma vida inteira, eu consigo melhorar como são as minhas relações com as pessoas.”

Ikaro finaliza: “A gente acolhe muito bem os outros e quem a gente gosta, mas é muito difícil a gente se acolher e é aí que mora o perigo. Você se torna o seu pior inimigo. Eu faço terapia há três anos para tentar ser meu amigo e ainda não sou.”

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