Não se identificar totalmente com o gênero feminino ou masculino é o que faz uma pessoa se reconhecer enquanto não binária. Mas, por causa de uma necessidade binária e cisgênero, essa identidade de gênero é constantemente questionada. Os conceitos de feminino e masculino sempre existiriam, assim como o da não binaridade, porém de forma pouco explorada e difundida. Na antiguidade, o povo Mahu, na Polinésia, se reconhecia como não pertencentes aos conceitos de feminino ou de masculino, além de entre outras culturas, sobretudo as originárias e decoloniais.
No Brasil, 2% da população é de pessoas transgênero ou não binárias: os resultados mostram que pessoas identificadas como transgênero representaram 0,69% e, os não binários, 1,19%. O estudo foi desenvolvido pela Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Todavia, há muito o que ser feito quando o assunto são as demandas sociais que os não binários precisam enfrentar para serem reconhecidos como tal. Por isso, o iG Queer conversou com quatro pessoas não binárias para entender os desafios de se afirmar enquanto um indivíduo não cis dentro de uma sociedade que ainda reverbera essa realidade.
Chiara Toniatti Lo Bianco , modelo de 19 anos, conta que seu primeiro passo para se reconhecer como não binária surgiu da dúvida e do desconforto que havia desde a infância.
“Tinha algumas inseguranças em relação ao meu gênero, sentia que não fazia parte da caixinha masculina e nem da feminina. Entretanto, na adolescência, me forcei a entrar na caixinha de tentar ser a pessoa mais feminina possível, queria ser vista pelo olhar masculino como alguém desejável. Porém, ao crescer, percebi que nada disso importava e faz um ano que me descobri não binárie”.
Por ser uma pessoa gorda, ela conta que às vezes sua identidade é questionada por não atingir um padrão de androginia que enaltece os corpos magros. E, em sua vivência, por ainda apresentar um corpo lido como feminino, as pessoas insistem em tratar ela dessa forma.
“Principalmente pelo meu corpo ainda recebo tratamentos que não se encaixam mais e não me deixam nada confortável. Não me chateia que pessoas na rua me vejam como mulher porque somos, infelizmente, educados dessa forma: a tratar a pessoa de acordo com a aparência e colocar ela na caixinha de 'homem' e 'mulher'. O pior mesmo são pessoas próximas que sabem da minha identidade, mas se recusam a me chamar pelo jeito que me identifico”, argumenta a jovem que utiliza os pronomes “Elu/Delu” e “Ela/Dela”.
O multiartista Mark Funck de 23 anos, assim como Chiara, também se reconheceu enquanto não binário a partir de questionamentos. O processo é comum para as outras entrevistadas, Xd Eric e Nyx Gomes, que, por meio de um desconforto e dúvidas acerca da performatividade de gênero e suas atribuições sociais, buscaram sair desse lugar-comum em que os corpos são inseridos ao nascerem.
Por ter nascido em um corpo masculino, ele adiciona que sua identidade ainda é vista apenas como um homem gay. “Eu creio que nunca deixarei de ser lido como uma bicha socialmente porque tenho uma passabilidade cis, uma passabilidade de um homem afeminado”.
“Até que ponto tenho que performar na vestimenta algo que eu não me sinta confortável para satisfazer as outras pessoas e fazer com que elas fiquem confortáveis ao me verem e me identifiquem como uma pessoa não binária. Não é sobre vestir determinada peça de roupa para ser entendido como uma pessoa não binária”, adiciona Funck.
A também multiartista, Xd Eric de 24 anos, relembra que desde a infância tinha mais simpatia com o espectro feminino da sociedade. “Eu sabia que eu gostava mais de coisas femininas ou, no caso, lidas como coisas femininas, então sempre gostava de brincar com as bonecas da minha prima”. Mas, foi no ensino médio que Eric, que prefere utilizar o pronome feminino, passou a se identificar mais com a não binariedade.
“Eu não gosto de coisas masculinas, mas também eu não ligo, o pronome não é algo prioritário para mim no momento. Julgo que existem outras coisas que preciso falar e ser ouvida, que vai muito além do meu pronome”.
Entretanto, enquanto uma pessoa negra e gorda, as cobranças sociais para ela se tornam mais pesadas: “Antes de ser uma pessoa não binária, eu sou uma pessoa preta, então a raça vem sempre antes de tudo. Minha identidade é lida primeiro por eu ser uma pessoa preta para depois a pessoa pensar ‘que coisa eu sou’ ou ‘que tipo de monstro é esse?' Meu corpo preto incomoda muito mais do que minha não binariedade”.
"Mas, quando somados, deixa a mente de muita gente confusa. Para eles, tudo bem ser preto, mas ‘por que você veste essas roupas’, sabe? Você tem que ser viril, tem que ser masculino, você não pode ser outra coisa além disso. Ser preto, gordo e uma pessoa não binária já é demais para eles”.
Xd Eric pontua que, por sair desse lugar-comum, ela não é bem-vinda, tanto nos espaços de pessoas pretas, quanto nos espaços de pessoas LGBT+. “Sinto que, em espaços gays, eu não sou bem-vinda porque sou uma pessoa queer demais e preta e, nos espaços pretos, eu não sou bem-vinda porque sou queer demais”, narra Xd que, como forma de lidar com isso, integra o coletivo Chernobyl, que organiza festas pensadas para o público queer, preto e outras identidades dissidentes.
Além disso, a artista argumenta que outra cobrança que percebe haver para as pessoas não binárias é que muitas vezes não são conhecidas como pessoas trans. “As pessoas não entendem que os não binários são pessoas trans. E as pessoas às vezes ficam perguntando ‘não vai transicionar?' Porque muitas pessoas que transicionam para o gênero feminino ou masculino também passam por esse processo de se reconhecerem como não binarás antes, mas não é uma regra”.
Ela defende que a não binariedade não é só uma fase, mas que isso é individual.
Nyx Gomes , estudante de biomedicina de 20 anos, também expõe que não é uma regra pessoas não binárias serem andróginas e usarem pronome neutro, cada pessoa tem sua própria maneira de viver sua não binariedade. “É algo muito pessoal e intrinsicamente difícil de simplificar a não binariedade. E, sem dúvidas, as pessoas sempre vão questionar o motivo de não estarmos 'parecendo' uma pessoa não binária”.
Em sua vivência, ela também está em um espectro mais feminino, por isso, prefere a utilização do pronome feminino. “A questão do meu pronome interfere um pouco na minha vida porque as pessoas se sentem incomodadas em respeitar meu pronome. Elas sempre querem usar o pronome do gênero oposto porque na mente delas eu me encaixo mais ali”.
Performance de gênero não resume tudo
“Quando a gente diz que somos uma pessoa não binária esperam que a gente seja, no mínimo, andrógino: que as pessoas confundam nosso gênero na rua, que tenhamos cabelo grande ou colorido. As pessoas esperam muito disso dos indivíduos não binários, mas a não binariedade está muito mais relacionada ao se reconhecer como tal psicologicamente, não somente ao corpo ou à nossa expressão de gênero. É claro que tem toda essa questão da expressão e performance de gênero; de como que a gente vai se expressar socialmente, mas não deve se limitar a isso”, defende Mark, que utiliza todos os pronomes.
“Não acredito que toda pessoa não binária precisa ser andrógina ou ter pronomes, isso vai de cada um; como se sentir confortável e sua identidade não deve ser invalidada por isso, até porque a visão mais comum de androginia costuma ser bem padrão, normalmente alguém magro e que nem todos querem se encaixar nesse padrão para ter sua identidade validada”, retoma Chiara em seu ponto de vista.
Além disso, é importante não confundir identidade de gênero com orientação sexual. Chiara e Nyx, embora sejam pessoas não binárias, são bissexuais. Já Xd e Mark são pansexuais.
Questão familiar
“Eu lembro que quando contei para minha família sobre ser uma pessoa não binária e ter um nome social foi bem difícil. Sempre senti muito medo, e ainda tenho, da rejeição. É algo que me assusta bastante, mas tomei coragem e falei para eles. No começo eles não entenderam muito bem o que era ser uma pessoa não binária, mas se interessam pelo assunto e começaram a estudar sobre, o que me deixa muito feliz e emocionada”, recorda Nyx.
"Contei para a minha família logo após me assumir para o meu namorado, que foi super-respeitoso e me ajudou muito nisso tudo. Minha mãe se esforça bastante para me tratar com os pronomes corretos e isso me deixa bem feliz, ela realmente respeita bastante. Já o resto da família, alguns também tentam me tratar certo, outros nem tanto, acaba me magoando, mas prefiro dar a valor a quem realmente se importa e tenta me respeitar”, diz Chiara.
Mark também cita que, no início, sua família não entendeu muito bem, não levaram a sério, justamente por ser lido como um homem afeminado. Agora, eles estão entendo mais e o respeito sempre existiu.
“Em relação à minha família, eu nunca precisei falar de fato sobre. Eles me respeitam enquanto essa pessoa que fui sempre, me amam desse jeito. Para eles, se eu falar que sou uma pessoa não binária, não vão entender, só ficarão ‘ah, ok, tá bom, Eric’. E, como não moro mais com eles, acredito que não preciso falar sobre isso já que o respeito entre nós já existe”, conclui Eric.
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