Cada vez mais em evidência, a arte drag tem ampliado os horizontes dentro da cultura pop e conquistado visibilidade e respeito. Drag queens e drag kings inspiram e deslumbram por transparecer a sensação de liberdade, mas o valor histórico, político e social da expressão artística transcendem a performance e o palco.
A drag queen Maldita Hammer, que também é pesquisadora e historiadora especializada em vestuário. Ela afirma que definir a arte drag é uma tarefa mais complexa do que parece. Para Maldita, a imagem da drag é simbolizada como espírito contestador e transgressor.
"Acho que a drag está em um lugar que não é nem de performance, nem teatro ou personagem. Ela está num lugar de hackeamento mesmo. É um ponto fora da curva que está rompendo limites. Não tem como normatizar o que é uma drag da forma como a gente padroniza, porque cada uma encontra seu modo de ser”, explica.
Ikaro Kadoshi acrescenta que a figura da drag é capaz de questionar o funcionamento do mundo e a maneira como os gêneros são encarados pela sociedade. “Essa reflexão é feita de forma que as pessoas reflitam sobre o lúdico, suas emoções, sensações e sobre política. Tudo isso é englobado”, explica.
Se hoje a arte drag é explorada em reality shows famosos, como RuPaul's Drag Race , e artistas drags estão alçadas ao estrelato no Brasil e no mundo, Ikaro explica que a imagem da drag foi marginalizada e esquecida por muitos séculos. Ao longo do período medieval, a arte foi censurada pela Igreja Católica e foi empurrada para guetos e boates da época. No entanto, elas começaram a aparecer em contextos muito maiores, como cinema, televisão, música e até em pinturas.
“Nós tivemos que ter paciência e muito sangue foi escorrido até o dia do nosso reconhecimento chegar para que conseguíssemos furar a bolha”, declara Ikaro, que acrescenta não ver a notoriedade drag como algo novo. “Para mim, as drag queens estão apenas retomando seus espaços de direito. Ainda veremos drag queens em milhares de lugares que jamais sonhariam. Esse é o momento de dizer: ‘Mundo, se prepare, o que eu quero você vai me dar’”.
Arte drag não é sinônimo de exagero
No senso comum, as drag queen são lembradas por maquiagens extravagantes e por atuações afiadas e “exageradas”, mas essas descrições não são verdadeiras. A drag queen Penelopy Jean afirma que o motivo para isso é simples: não limitar a arte drag. “Existem muitos estilos de drag e isso é algo que vai se renovando. Não existe uma regra ou rótulo para ser uma drag, basta se montar”, afirma.
Maldita afirma que nem todas as drags trabalham o conceito caricato, que tende a ser o mais comumente associado à arte. Ela usa como exemplos drags da geração atual estão trabalhando estéticas mais leves, sendo Pabllo Vittar um grande exemplo disto.
Ikaro continua afirmando que pessoas que definem a arte drag como exagerada não sabem o que ela realmente significa. “É uma série de coisas muito mais complexas, quem define isso é a própria artista, ninguém tem o direito de dizer o que é ou não é drag. Precisamos ser mais libertos em relação a isso”, aponta.
Drag é mais do que entretenimento
O conceito de drag nasceu com o dramaturgo inglês William Shakespeare, que em suas peças indicava com a palavra drag papéis de mulheres que seriam interpretados por homens. Por ter vindo do teatro, Penelopy afirma que é comum que drag queens e drag kings sejam associados intrinsecamente com a performance. “Mas hoje existem muitas outras possibilidades”, explica a artista.
Ikaro aponta que o entretenimento é o principal meio de sobrevivência que artistas drags encontraram ao longo dos últimos séculos. No entanto, as mudanças sociais e políticas alteraram esse pano de fundo e fez com que a drag expandisse essa caixa tornando-se, assim, uma figura que carrega posicionamentos políticos.
"Se pararmos para pensar, uma performance teatral acontece em um espaço pré-determinado, mas a arte drag está mais para um grafite. São artes que invadem o cotidiano. A drag é uma performance que vai até o espectador, não o contrário. Ela chega onde você está e se impõe enquanto personalidade, se faz presentes nos ambientes onde não é bem-vinda”, detalha Maldita.
Por essa razão, Maldita, Penelopy e Ikaro concordam que a drag queen é um posicionamento mesmo fora de performance. “A drag sempre está transmitindo uma mensagem, mesmo que quieta, parada. Mesmo que por meio de uma foto. A drag por si só é uma comunicação não verbal e um ato político também”, diz Penelopy.
Por outro lado, Maldita afirma que pensar em arte drag como entretenimento não quer dizer algo fugaz ou de menor importância. “A ideia de entretenimento está muito além do que a gente pensa porque ele tem um discurso político carregado. A arte drag visa entreter, mas também empoderar, tem uma função de catarse para te transportar para outro lugar”, afirma a pesquisadora.
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A principal saída para conhecer melhor cada estilo e cada maneira de se relacionar com a arte drag é entrar em contato com artistas (sejam locais ou não) e questionar as expressões artísticas, pensa Ikaro. Dessa forma, muitos outros artistas podem nascer. “Arte drag não tem sexo nem sexualidade. Qualquer ser humano pode e deve fazer drag”, afirma.
A criação de famílias drags
O conceito de família para pessoas LGBTQIA+ pode ser muito diferente do que o significado conhecido na sociedade. Maldita adverte que isso acontece devido à intolerância dentro do seio familiar que renega a pessoa LGBT. Por esse motivo, muitas são expulsas de casa, principalmente adolescentes e jovens adultos.
“Antes, aconteceria que pessoas LGBTs mais velhas adotavam as mais jovens em situação de rua e vulnerabilidade para introduzi-las à comunidade e às pessoas do universo ao qual elas passariam a viver dali para frente”, contextualiza.
Penelopy acrescenta que, no caso das famílias drags, isso ficou comum na cultura de baile norte-americana nos anos 1980, também conhecida como ballroom. Com a expulsão desses LGBTs e a criação de famílias de pessoas na mesma situação, foram formadas as casas com o sobrenome da pessoa responsável por adotá-las.
“Eles se montavam e performavam nesses bailes em competições. O aprendizado ia passando de geração para geração”, explica Penelopy. Essa relação familiar no contexto norte-americano foi tema do famoso documentário “Paris is Burning” (1990) e, mais recentemente, na série “Pose”.
As famílias drags não existem com o mesmo peso ou popularidade no Brasil como nos Estados Unidos; mesmo assim, existem. O contexto por aqui tem mais a ver com uma adoção artística. “Há uma figura matriarcal, que seria a pessoa mais velha, que ensina a jovem drag a se maquiar, produzir seus cabelos, figurinos e performances”, comenta Maldita.
A pesquisadora e artista explica que os valores de acolhimento e de sobrevivência social da comunidade continuam baseando essa tradição. “Por mais que não tenham essa mesma característica de morarem juntos e de se comportarem como famílias, essas pessoas demonstram apoio mútuo e fortalecimentos de si mesmas dentro da cena”, acrescenta.
Ikaro explica que o conceito familiar dentro da arte drag é de extrema importância. “A gente brinca que hoje a mãe da drag é o Google e o YouTube, porque ali é que ela aprende tutoriais. A internet dá expertise, mas não dá a vivência do dia a dia. A mãe drag dá o abraço, o carinho, o olhar que acolhe, a internet não”, afirma.
Ela explica que tem nove filhos drags, e que a vivência consiste em passar para frente os conhecimentos e se envolver com as realidades e famílias biológicas deles. “É uma convivência linda e incrível. Tenho orgulho e honra de cada um dos filhos que a vida me trouxe e que eu posso de alguma maneira ser responsável positivamente na vida de cada um deles, assim como eles na minha”, declara.
Desmistificando a imagem drag
Ikaro e Penelopy, ao lado de Rita Von Hunty, apresentam o reality show “Drag Me as a Queer”, exibido no Brasil pelo canal E!, em que auxiliam pessoas a lidarem com frustrações e dores por meio da arte drag. Ikaro diz que esse espaço é muito importante para mostrar quem são as drags como seres humanos.
“As pessoas durante muito tempo achavam tudo lindo, mas ninguém nunca ouviu falar, sendo que temos muita coisa para mostrar. Então esse tipo de programa mostra quem nós somos de verdade, nossa vivência e nossa troca sobre coisas que envolvem ser drag. É sobre estar em uma posição marginalizada e sofrer preconceitos e ter o lado da moeda de poder entender a gente, que temos algo para colher e compartilhar”, fala Ikaro.
“Esses programas conseguem nos dar voz e quando as pessoas param para nos ouvir, conseguem enxergar além da nossa montação. Dessa forma é possível exercer a empatia e passar a respeitar as diferenças”, acrescenta Penelopy.
Maldita pensa que drag queens também podem ser peças-chave importantes para pensar os espaços políticos, pedagógicos, artísticos e discursivos. “A gente tem no Ocidente que a intelectualidade tem que ser séria e pragmática. Acho que a drag tem esse lugar de mostrar que a intelectualidade também pode ser artística, alegre, festiva. Temos que parar um pouco com essa ideia de que tudo que é sisudo, sério e ranzinza é inteligente o suficiente”, reflete.
“Se as pessoas soubessem a quantidade de informações que uma drag queen tem, graças às vivências que a gente passa, todo mundo teria na drag queen uma melhor amiga. Se você não tem, procure uma da sua cidade que provavelmente ela vai ter muito para te ensinar sobre o que é viver nesse planeta, nesse país, nesse tempo”, pontua Ikaro.