Homens gays cis precisam lidar com a LGBTfobia desde a infância, apontas psicólogos especializados na saúde mental LGBT
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Homens gays cis precisam lidar com a LGBTfobia desde a infância, apontas psicólogos especializados na saúde mental LGBT

Junho é o  Mês do Orgulho LGBT+ , época do ano em que a sociedade civil e empresas costumam dar mais atenção aos assuntos relacionados à comunidade queer. Ainda que nos últimos anos temos visto avanços significativos, o Brasil ainda amarga o primeiro lugar no ranking de países que mais assassinam pessoas LGBTs .

Em 2022 a cada 34 horas uma pessoa queer foi assassinada ou cometeu suicídio no Brasil, segundo relatório do Grupo Gay da Bahia , que ainda apontou 256 mortes dos tipos no ano passado. Já a ONU relatou em maio deste ano que mais de 65 países no mundo criminalizam relações homoafetivas. O caso mais recente e condenado pela comunidade internacional foi o de Uganda, país onde o presidente Yoweri Museven sancionou uma lei que autoriza a  pena de morte para casos de “homessexualidade agravada”.


Violências marcam pessoas  LGBTQIA+ desde a infância, o que ocasiona danos para a saúde mental e a forma como essas pessoas se relacionam com suas sexualidades durante toda a vida. O iG Queer conversou com três especialistas para entender como agressões  LGBTfóbicas interferem na forma como homens gays cis vivem suas vidas afetivas, sexuais e românticas.

LGBTfobia afeta a construção da sexualidade ainda na pré-adolescência

Para a psicóloga e sexóloga Barbara Menêses, que atua há 20 anos no Centro de Referência LGBT+ da Prefeitura de Campinas, em São Paulo, a LGBTfobia afeta diretamente a identidade e a construção da sexualidade dos jovens gays, especialmente pela sociedade ser “extremamente machista e termos como norma padrão a heterocisnormatividade”.

“Tudo o que vem contra esse padrão causa desconforto, incômodo, dor e sofrimento. Esses meninos começam a se perceber na contramão do que se espera deles desde muito cedo”, afirma a especialista, que traz exemplos na sequência.

“Eles escutam coisas do tipo ‘nossa você é tão bonito, vai ter quantas namoradas?’, ‘você vai ter um monte de namoradas’. E para eles nunca é colocada a possibilidade de que essa experiência afetiva possa ser com uma pessoa do mesmo gênero. Com isso eles começam a perceber que não desejam as meninas, mas sim os meninos. Isso forma uma marca muito importante na construção dessa identidade, na construção da sexualidade destes jovens.”


O psicanalista, mestrando no Programa de Estudos da Condição Humana pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e especializado em saúde mental de pessoas LGBT+ negras , Daniel Amâncio, destaca que para a psicanálise a sexualidade é “muito mais ampla do que a genitália, a função biológica de reprodução ou ato prazeroso”. “É uma atmosfera que abarca toda vida e experiência psíquica do sujeito, no âmbito individual, coletivo e cultural”, define.

“Na clínica, atendo homens gays de várias partes do país e também do exterior. Há muitos pontos em comum que se imbricam na LGBTfobia atravessando a vivência de meninos gays muito cedo, desde o olhar de reprovação dos pais e familiares, dos colegas da rua, na escola, professores, ou seja, de todos os lados, é comum o processo de reprovação, condenação, humilhação e ridicularização a partir de frases homofóbicas.”

Assim como Barbara, o psicanalista também traz exemplos de frases que os pacientes afirmam já terem ouvido. “‘Ande como homem’, ‘não rebole’, ‘não dance como mulherzinha’, ‘fale que nem homem’, ‘não cruze as pernas’, ‘tira a mão da cintura’, ‘engrossa essa voz’. Ouvir frases do tipo imprime no sujeito, ainda criança, o sentimento de inadequação e degradação moral”, afirma o profissional, que ainda  atribui à religião parte da LGBTfobia sofrida por jovens queer.

“Profecias religiosas [que condenam a sexualidade LGBT], crenças de não serem amados por Deus, e de serem sujos são alguns dos sofrimentos. Eles carregam um mal, uma culpa por serem como são”, diz o psicólogo. “Eu tenho refutado constantemente a timidez e a introspecção de pacientes com este histórico, porque observo que o isolamento, o comportamento de evitar fazer novas amizades, de se aproximar das pessoas, falar em público, de ser espontâneo, são defesas criadas para se proteger de exposições e violências. Ou seja, isso molda toda a forma como esses meninos irão se portar na vida adulta”.

O psicoterapeuta Márcio Iost, conhecido nas redes sociais como Doutor LGBT+, atua há 12 anos atendendo pacientes da comunidade queer. Ele afirma que essas pessoas acabam crescendo com o sentimento de que “o inadequado parece fazer parte de suas vidas”, o que acaba trazendo prejuízos para a saúde mental.

“Faz com que a construção do indivíduo venha com muitas inseguranças e dificuldades de ser quem se é. Ouvi de um paciente uma vez uma frase que impacta: ‘Eu nem sei quem sou, a impressão que tenho é que interpretei a vida inteira aquilo que queriam que eu fosse. Hoje nem sei quem sou’. Esse preconceito acaba nos trazendo uma despersonalização e provoca uma dependência de validações alheias”, afirma o profissional.

Pessoas LGBT+ estão mais sujeitas a validações externas, aponta psicólogo
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Pessoas LGBT+ estão mais sujeitas a validações externas, aponta psicólogo

Para Daniel Amâncio quando chega o momento de explorar a sexualidade, a partir da pré-adolescência, homens gays cis acabam limitando seus desejos, pois são carregados de “medos, crenças de pecado, culpas, sujeira, erros e crimes morais”.

“É comum também que a realização do desejo aconteça sempre escondido, sendo um grande segredo, algo marginalizado, rápido, sem afeto e com pouca ou nenhuma intimidade ou envolvimento social, enquanto qualquer outro garoto hétero está vivenciando essa exploração de maneira saudável, sendo incentivado a vivenciá-la sem grandes impactos”, acrescenta.

O profissional ainda afirma que tem observado o sexo se tornar uma “linguagem muito preponderante em relações de homens gays” , o que Daniel atribui ao fato de que toda a experimentação de afetividade para este grupo passa, primeiro, por este viés.

“Todos aqueles rituais sociais, por exemplo, o namorinho na escola, primeiro encontro amoroso, levar namorado em casa, almoço em família, conhecer os pais, afeto em público, cinema juntinhos, publicação em redes sociais… Isso é uma exceção na vivência de homens gays e bissexuais, é comum que nada disso seja permitido que aconteça.”

Barbara Menêses avalia que todas essas privações apontadas por Daniel são gatilhos para problemas de saúde mental como depressão e transtornos de ansiedade, o que vai se tornando cada vez mais complexo com o passar dos anos, especialmente porque pessoas LGBTs, na maioria das vezes, não têm com quem compartilhar suas dúvidas e experiências sobre afetividade e sexualidade.

“Quando conversamos com alguém sobre nossas habilidades românticas e sexuais, escutamos outras opiniões, outras histórias, e com isso aprendemos com as experiências alheias. O homem gay cis, quando se percebe na contramão do que se espera dele, começa a se fechar e perde sua adolescência”, afirma a psicóloga.

“Muitos desses jovens adultos acabam se casando com mulheres porque têm famílias militares ou extremamente religiosas, em muitos dos casos, e vivem uma relação heteroafetiva por obrigação, porque é por isso que eles são cobrados”, acrescenta.

Avanços são perceptíveis, mas o cenário ainda não é o ideal

A nova bandeira LGBTQIAPNB+
Reprodução/Wikimedia Commons - 06.12.2022
A nova bandeira LGBTQIAPNB+


Com duas décadas de experiência em consultório, Barbara afirma que é perceptível uma mudança na afirmação social de gênero de pessoas LGBT+ nos últimos anos, contudo “ainda não chegamos em um ponto em que eu imagino que seria o ideal, que seria um cenário em que pessoas LGBTs não se importam com o preconceito dos outros, e conseguem argumentar, se impor, e dialogar com isso”.

Contudo, a especialista ressalta que de todos os membros da comunidade queer, os homens gays cis são os que mais tiveram suas pautas específicas priorizadas nos últimos anos. Ela acredita que a mídia vem mudando no decorrer dos anos, colocando o homossexual para além daquela figura caricata e carnavalesca, diferentemente da estereotipação, mas ainda há muito a caminhar.

Márcio Iost corrobora com Barbara e acrescenta: “Existem muitas camadas. Meu sonho é a igualdade [de direitos entre héteros e LGBTs], mas isso é utópico”.

O psicanalista Daniel Amâncio lembra alguns avanços obtidos pela comunidade LGBT+ nos últimos anos, como políticas públicas de proteção, a homossexualidade e a transfobia deixarem de ser reconhecidas como doença, o reconhecimento da união e o casamento de pessoas do mesmo gênero, a representatividade mundial no cinema, na música, na cultura, nas novelas e na mídia, progressos que ele considera serem importantes para a geração atual queer.


“Crescer nesta geração em que a sociedade, sobretudo os grandes centros, tem acesso a estas informações pela mídia e pela educação já possibilita uma nova geração que consegue lidar melhor com as identidades e sexualidades dissidentes da norma cis hétero.”

O pôrno como iniciação sexual e a masculinidade compulsória gay

Como teoriza Guy Debord, a geração contemporânea vive em uma espécie de “sociedade do espetáculo” em que, baseada no consumo e impulsionada pelas redes sociais, “vende” a todo momento o melhor de sua vida, o que inclui corpos e comportamentos que correspondem às expectativas heteronormativas sociais.

Márcio afirma que “a inadequação faz parte da vida gay” o que inclui a adaptação a padrões estéticos como uma maneira de aceitação social: “Já atendi várias pessoas no consultório que têm seus corpos considerados padrões e que lidam com uma insegurança muito grande, assim como com o medo de não serem aceitas”.

O profissional de saúde mental ainda argumenta que como homens gays cis muitas vezes não têm a chance de abordarem suas sexualidades de forma sincera com pessoas de confiança, a pornografia acaba ocupando este lugar , inclusive também como primeira fonte de informação sobre vida sexual. O problema é que este tipo de conteúdo nem sempre dá conta das questões que abarcam a sexualidade gay.

Para o Doutor LGBT+, a comunidade queer precisa evoluir, assim como a sociedade em geral, na concepção do que é masculinidade. “Há pouco atendi um paciente que preferiu não ir ao encontro já marcado com outro homem, pois o paciente percebeu na rede social do pretendente que o cara [provavelmente] preferiria uma pessoa com uma voz mais grossa ou um ‘jeito mais macho’”, exemplifica o psicólogo.

“Fiquei me perguntando se ‘é assim que bloqueamos as possibilidades, por não nos sentirmos adequados ao outro? Que prisão é essa? Percebo relações se acabando, pois o que se espera era uma atitude mais forte ou mais dura [socialmente mais masculina]. Afinal, o que estamos buscando? A mesma rigidez que nos foi colocada? O ser homem está muito além de uma voz grossa, músculos ou pelos pelo corpo.”


Já na experiência do psicanalista Daniel Amâncio, homens gays afeminados têm enfrentamentos como “o preterimento, a solidão, ou a frustração de serem acessados apenas para o sexo sigiloso, e nunca para um namoro estável ou serem apresentados socialmente”.

“Eles também são marcados socialmente pelos estereótipos de serem ‘espalhafatosos’, ‘escandalosos’, ‘caricatos’, ou são lidos como ‘ passivos’ [posição sexual referente a homens que realizam sexo anal] , o que é uma tremenda confusão, pois preferência sexual não está ligada a expressão”, afirma Daniel. “Minha leitura é que esse fenômeno é um reflexo do machismo que também está presente entre os homens gays, afinal eles também são homens e podem reproduzir esse comportamento”.

Para Barbara, a busca por uma masculinidade compulsória entre homens gays cis afeta diretamente suas vidas sexuais e saúde mental. “Essa masculinidade é tóxica, frágil e anula qualquer coisa que esteja associada ao feminino. Homens que seguem este ideal ficam presos a uma performance de masculinidade extremamente preconceituosa e machista. É uma busca por uma virilidade que não é necessária”, afirma.

“Muitas vezes eles, inclusive, reproduzem preconceitos contra quem não performa essa masculinidade ideal. Eles também são sexualmente afetados porque ficam presos a perfomance de masculinidade, o que implica em ser ativo [posição sexual socialmente atribuída a homens que realizam penetração peniana] a todo momento, mantendo uma ereção, uma virilidade na hora do sexo que pode ser bastante prejudicial mentalmente.”

Gays supervalorizam o sexo?


Para o psicanalista Daniel Amâncio atribuir a supervalorização do sexo a apenas homens gays é um equívoco
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Para o psicanalista Daniel Amâncio atribuir a supervalorização do sexo a apenas homens gays é um equívoco

Márcio Iost acredita que uma possível supervalorização do sexo entre homens gays cis pode ter a ver com diversas questões, especialmente por estes se sentirem “atrasados”, sensação que provoca o que profissionais da saúde mental chamam de  “adolescência tardia” (para entender o fenômeno veja este link).

“Muitos de nós [LGBTs] entendem que o sexo é uma maneira de afeto, e isso se torna uma busca desenfreada já que muitos não recebemos afetos possíveis e reais. O sexo também vem como uma validação externa em que se caracteriza uma possível autoaceitação. Uma outra possibilidade é que, na maioria das vezes, homens gays cis têm dificuldade de fazer amizades, então o interesse sexual funciona como um intermédio, para que depois as ideias ‘batam’, e talvez uma amizade aconteça. É como se o sexo fosse uma questão validadora.”

Já Daniel Amâncio refuta a ideia de que homens gays supervalorizam o sexo. Ele argumenta que a sexualidade foi e é “historicamente reprimida, com uma grande responsabilidade dos dogmas religiosos, que estabelecem a heterossexualidade compulsória como norma”.

“Considerar o sexo e a masturbação um pecado, a monogamia como regra universal, o casamento como entidade indissolúvel, não poder realizar sexo antes do casamento, entre tantas outras regras, que sabe-se que foram invetadas pela humanidade, são construções sociais que servem para controlar os corpos e as vidas das pessoas”, afirma o psicanalista.

“Um homem gay, em tese, não pertence e não está diretamente sujeito a estas regras, então suas experiências sexuais e modos de vida seguem caminhos completamente diferentes, inclusive sendo livre para explorá-los mais, já que não há 10 mandamentos para gays”, brinca o profissional. “Não se pode generalizar homens gays por isso, seria um equívoco. Supervalorizar o sexo não é uma exclusividade gay”, finaliza.



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