O Parlamento de Uganda aprovou em março um projeto de lei que prevê uma série de punições contra pessoas LGBT+. Entre as mais graves estão a pena de morte e a prisão perpétua para casos de "homossexualidade agravada", que são caracterizados por relações sexuais com menores de 18 anos, ou quando o acusado vive com HIV.
As novas penas estipulam ainda 20 anos de prisão para quem se envolver com “atos de homossexualidade”; sete anos para a tentativa de “realizar o ato”; e três anos de detenção para crianças condenadas por atos homossexuais.
O texto do projeto afirma que estão proibidos no país “qualquer forma de relações sexuais entre duas pessoas do mesmo sexo”, assim como o “recrutamento, promoção e financiamento” de práticas relacionadas à homossexualidade.
Dos 389 legisladores do país africano, apenas dois foram contrários ao PL. O projeto foi enviado para sanção do presidente do país, o ditador Yoweri Museveni, que governa Uganda há 36 anos. Ele é conhecido por se opor às pautas LGBTQIAP+, assim como boa parte da população local, que é predominantemente cristã.
O iG Queer conversou com ativistas ugandeses do movimento queer para entender a situação do ponto de vista local. O fundador da ONG defensora dos direitos LGBT+ Let’s Walk Uganda (Vamos avançar Uganda, em tradução livre), Edward Mutebi, explica que esse novo pacote de leis LGBTfóbicas não é o primeiro a ser discutido no país da África Oriental.
“O primeiro projeto de lei anti-homossexualidade foi apresentado em 2009 e foi rotulado como “Mate o Projeto de Lei Gay”. Ele foi aprovado em 2013, e transformado em lei em 2014, mas depois foi anulado pelo tribunal constitucional no mesmo ano”, conta o ativista.
Edward contextualiza informando que o nível de homofobia presente no país tem ligação com missionários cristãos dos Estados Unidos, que foram ao país por volta dos anos 2000 e “pregaram às comunidades como os homossexuais eram pedófilos e a homossexualidade era pecado”.
“A comunidade, então, desenvolveu uma impressão muito negativa sobre a homossexualidade, principalmente por causa desses ensinamentos missionários”, enfatiza o ativista.
O fundador da Let’s Walk Uganda conta que a perseguição esteve presente especialmente durante o debate do PL de 2009 e a repressão continuou e piorou após a aprovação, 2014. Ele cita ainda que, mesmo após a anulação do projeto, a LGBTfobia continuou a crescer na sociedade ugandense, e cita alguns exemplos.
“A invasão e o fechamento do Ram Bar, em 2019, que era o único local ativo voltado para a comunidade LGBT+ [na ocasião, 127 pessoas foram presas]; o ataque aos escritórios e abrigos da Let's Walk Uganda que prenderam 16 pessoas, incluindo pessoas da nossa equipe; tortura sob custódia policial com uso de exame anal forçado e outras formas de violações”, enumera o ativista.
Nas palavras do administrador Farid Bugembe, de 24 anos, ser LGBT+ em Uganda “é considerado como ter conhecimento do canal contra a ordem da natureza e estar sob ofensas não naturais no código penal”.
“Isso significa que você não pode falar abertamente sobre sua sexualidade ou identidade de gênero. Há algumas pessoas que têm sorte de suas famílias os aceitarem como são, mas, novamente, há outras famílias que são homofóbicas e transfóbicas que, uma vez que você se assuma, eles o denunciarão”.
Farid complementa que há muitas dificuldades que os indivíduos LGBT+ enfrentam em Uganda, em especial o acesso à serviços de saúde.
“Temos poucos estabelecimentos de saúde amigáveis para LGBT+ no país, além destes terem uma má qualidade na prestação dos serviços. Muitas pessoas LGBT+ não podem acessar os serviços de saúde convencionais devido aos insultos, estigma e discriminação por partes de médicos homofóbicos e não sensibilizados”, denuncia o jovem.
Farid cita que desde que o Parlamento aprovou o Projeto de Lei Anti-Homossexualidade em março, vários casos de violência e ataques de multidões contra pessoas LGBT+ vêm ocorrendo. “Muitos foram despejados uma vez que o PL também prevê punição para senhorios que alugam casas para pessoas LGBT+”.
Uma das pessoas que sofreu represálias após a aprovação do PL foi o ativista Hansel Legacy. Ele representa a instituição Initiative for Persons Affected and Infected (Iniciativa para Pessoas Afetadas e Infectadas, em tradução livre), que se concentra em melhorar o acesso aos serviços de saúde de pessoas LGBT+ em Uganda.
O iG Queer tentou contato com o ativista para esta reportagem e ele informou que havia sido detido “por algumas questões relacionadas ao fato de ser gay”. Ele afirmou que havia acabado de ser solto, mas não conseguimos outro contato com ele.
A realidade do ativismo LGBT+ em Uganda
Para Edward Mutebi, do Let’s Walk Uganda, o ativismo pró-LGBT+ em Uganda “é tão difícil quanto quase impossível”, uma vez que o país é “muito religioso e dominado principalmente pelo cristianismo, seguido pelos muçulmanos”.
“Testemunhamos líderes muçulmanos pedindo a decapitação de homossexuais, bem como seus homólogos cristãos que fortemente apoiaram e defenderam a introdução e aprovação da lei. Para aqueles poucos ativistas corajosos que defendem abertamente as pessoas LGBT+, estes enfrentam ameaças e alguns são mortos, seguindo o exemplo de David Kato, que foi assassinado”, diz o ativista, relembrando o professor considerado o precursor do movimentos LGBT+ ugandense. Kato foi espancado até a morte em casa, na capital, Kampala, em 26 de janeiro de 2011.
O assassinato ocorreu após o nome do ativista aparecer, junto a outros homens gays, em um artigo do jornal ugandense "Rolling Stone", em 2010, com o título "Enforquem eles". Na época Kato afirmara que vinha recebendo ameaças desde a publicação do texto.
“Vimos vários assassinatos de ativistas LGBTIQIAP+ em Uganda e o governo nunca condenou tais crimes e nem pensou em discutir leis de proteção, mas sim fazer leis que colocam ainda mais a comunidade em perigo, e pedem discriminação e quase genocídio [...] Let’s Walk Uganda tem sido vítima de vários ataques decorrentes do nosso trabalho”, denuncia Edward.
O administrador Farid Bugembe, que está envolvido no ativismo da organização fundada por Edward, afirma que também já sofreu perseguições devido à orientação sexual.
“No início deste ano, o Ministério de Assuntos Internos publicou uma lista de organizações que estão investigando por promover a homossexualidade e a Let’s Walk Uganda estava entre elas. Temos nossos rostos e nomes em nossas plataformas de mídia social e em nosso site, então não estamos seguros porque algumas pessoas estão atrás de nossas vidas”, lamenta o ativista. “Já fui ameaçado três vezes, mas não consigo angariar dinheiro para mudar a um novo local porque o apoio atualmente é limitado”.
Farrid conta ainda que, mesmo com as dificuldades, a Let’s Walk Uganda consegue desenvolver um trabalho consistente no país.
“A organização administra um abrigo para pessoas LGBT+ sem teto e, desde a sua criação, abrigamos mais de 70 pessoas”, diz o ativista. “Também atuamos como um elo com alguns escritórios de advocacia amigáveis para pessoas LGBT+ no país e indicamos nossos membros para aconselhamento ou assistência jurídica gratuita”.
O administrador explica que a ONG também realiza programas de capacitação econômica em que pessoas LGBT+ são treinadas em “diferentes habilidades empregáveis”.
Nova lei garantirá todo tipo de perseguição
Para Edward Mutebi, caso o novo Projeto de Lei seja aprovado pelo presidente do país, a situação de pessoas LGBT+ em Uganda se tornará “quase impossível” e a nova legislação garantirá “todo tipo de perseguição”.
“Imagine que a perseguição já ocorre sem uma lei reforçada. O que vai acontecer agora, com uma lei completa, não se pode imaginar [...] Como organização, já recebemos um número esmagador de membros da comunidade expressando medo. Alguns já foram expulsos de casa e alguns até expulsos do trabalho [...] Os casos de violência ameaçadora também são muito altos. Honestamente, a situação é muito preocupante”, alerta o ativista, que acrescenta, com preocupação, que os comentários LGBTfóbicos do presidente Museveni só endossam o perigo do cenário.
“As declarações do presidente são, honestamente, muito tristes, impróprias e nada paternais”, critica Edward. “Como presidente do país, ele jurou proteger todos os cidadãos sem discriminação. Suas declarações não apenas discriminam uma parte da população, como também ameaçam um genocídio”, afirma o ativista, lembrando que Uganda é um país signatário de vários tratados internacionais que exigem a proteção das pessoas e a observação dos direitos humanos, “de modo que as declarações do presidente e o próprio Projeto de Lei violam todos esses tratados em sua essência”.
Farid corrobora com as afirmações de Edward. “Este tipo de declaração nos gera gatilhos e afeta nossa saúde mental, especialmente para aqueles que lutam para se assumir [como pessoas LGBT+]”, afirma o administrador.
“As pessoas em geral já são duras conosco. Estamos preocupados e com medo de que, uma vez aprovado o PL, possamos testemunhar uma série de violações contra pessoas LGBT+, prisões brutais, torturas, ataques de máfia e penas de morte”, lamenta o ativista.
Novo projeto de lei pode afetar combate ao HIV no país
Em resposta à aprovação do Projeto de Lei Anti-Homossexualidade pelo Parlamento de Uganda, o Unaids, programa das Nações Unidas criado em 1996 que tem a função de promover soluções e ajudar nações no combate à Aids, advertiu que caso a legislação seja aprovada haverá consequências “extremamente prejudiciais para a saúde pública”, em especial das pessoas que vivem com HIV.
Segundo o Unaids, pesquisas na África subsaariana mostram que em países que criminalizam a homossexualidade a prevalência do HIV é cinco vezes maior entre os homens que fazem sexo com homens (HSH), do que em países sem leis discriminatórias.
“Esta lei, se promulgada, irá prejudicar a população ugandense, assim como custará vidas e provocará novas infecções pelo HIV. Exortamos o Governo a não promulgar esta lei prejudicial”, afirma a diretora do Unaids para a África Oriental e Austral, Anne Githuku-Shongwe.
Farid ainda lembra que no início de fevereir o Major Takirwa, vice-comandante das Forças Terrestres de Uganda, “fez uma declaração ordenando aos trabalhadores médicos que 'não tratassem homossexuais em nossas instalações’. Isso indica claramente que a vida e a saúde das pessoas LGBT+ não são consideradas entre as prioridades da nação”.
Segundo o site local Monitor, o major fez a declaração em 5 de fevereiro, quando as Forças de Defesa do Povo de Uganda encomendaram e entregaram diferentes projetos aos residentes do distrito de Mbarara, na sede em Bwizibwera.
“Não usem nossas unidades de saúde para tratar homossexuais. Se chegar alguém com fralda vazando e querer tratamento é porque tomou uma decisão como se não tivesse cérebro. Não. Não. Isso é demais e inaceitável”, disse o general, segundo o portal.
Como mudar a situação?
Para o fundador da Let's Walk Uganda, a situação de perigo constante que pessoas LGBT+ vivem no país africano só poderá mudar se houver abordagens bem definidas capazes de combater toda a desinformação dita sobre a comunidade queer.
“Pode demorar um pouco para existir uma comunidade mais positiva em relação às pessoas LGBTQIAP+. Pode levar anos, mas com uma abordagem bem definida é possível. Programas inclusivos, como atendimento médico, que não visam apenas pessoas queer, mas também heterossexuais, mostraram alguns resultados positivos neste sentido”, explica o ativista.
Para finalizar, Edward Mutebi faz um apelo: “desejo concluir pedindo à comunidade internacional que fique ao lado da comunidade LGBT+ em Uganda, especialmente nestes tempos difíceis. Aproximem-se de seus governos e peçam-lhes que usem todos os canais disponíveis para garantir que o nosso presidente não aprove o projeto em lei, pois isso colocará muitas vidas em risco”.
“Apelo a todas as organizações de direitos humanos no Brasil, e em todo o mundo, por favor, levantem-se e apoiem-nos nestes tempos sombrios que estamos a viver. Let's Walk Uganda é uma organização de caridade sem fins lucrativos, podemos fazer o nosso trabalho por meio de doações. Por isso apelamos a todo o apoio que nos possa ser prestado para que possamos continuar a oferecer os nossos serviços à comunidade de forma segura e estratégica sem falhas. Nossas esperanças chovem no mundo para falar em nosso nome”, suplica o ativista.
“Temos e continuaremos a oferecer nossos serviços, não importa o que aconteça, mesmo quando a lei for assinada. Os direitos humanos nunca esperam, descansam ou fazem pausas, então não devemos”, conclui Edward. É possível fazer doações para a instituição neste link.
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