Primeira Parada do Orgulho LGBT+ da Rocinha, em 2010
Reprodução/Fernando Frazão
Primeira Parada do Orgulho LGBT+ da Rocinha, em 2010

Quais são os tipos de liberdades que as pessoas  LGBTQIAP+ têm nos territórios mais marginalizados do Brasil, as estigmatizadas favelas? Esta é uma pergunta com muitas respostas, pois na vida dentro de cada comunidade brasileira existe uma singularidade que não se repete em todos os lugares.

Para entender a questão, selecionamos algumas favelas do Rio de Janeiro para investigar como ocorre o respeito à comunidade LGBTQIA+ e qual é o tamanho da voz dessas pessoas dentro dessas zonas esquecidas.

Moisés Lino e Silva, professor e pós-doutor em antropologia social pela Universidade de Harvard, mergulhou nesse assunto e chegou a viver na Rocinha que, no último Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, era a favela mais populosa do Brasil, com 67.199 moradores.

Ali, ele entendeu que os moradores dessas comunidades também têm seus modos de política liberal. Um exemplo desse tipo de arranjo, e que tem valor apenas dentro do território da favela, é uma "lei" que protegia as pessoas LGBT+ na Rocinha, e que foi passada de um chefe do tráfico para outro.

“Na época [que morei lá] o tráfico era comandado pelo Nem da Rocinha. Existia uma lei que chamavam de ‘não mexam com os meus 'viados', ou, não mexam com as minhas 'bichas'’. A lei foi herdada do traficante Bem-Te-Vi”, conta o escritor. “Havia uma genealogia ali de pensar a liberdade minoritária, das pessoas LGBT+, que funcionava de fato mais do que a lei normativa”.

Essa "lei" imposta pelo tráfico operava com tanta efetividade que, certa vez, um amigo de Moisés se fez valer dessa "legislação" para enfrentar uma situação de  LGBTfobia.

“Houve um episódio em que eu estava andando com um amigo gay na favela quando um jovem mexeu conosco falando coisas homofóbicas. Imediatamente esse meu amigo virou para o rapaz e disse: ‘olha, pelo que eu saiba a lei do morro não é essa, hein, se vocês continuarem com gracinha eu vou levar vocês para ‘boca’ [local de venda de drogas onde se concentram traficantes]”, lembra o autor.

Moisés explica ainda que na Rocinha conheceu um grupo de pessoas LGBT+ que se autodenominava “grupo das novinhas, ou, bonde das novinhas”.

“Havia cerca de 30 pessoas, adolescentes, algumas até menores, o que me impressionava”, conta o escritor. “Elas se uniam e andavam sempre juntas. Algumas se declaravam travestis, outras não. Elas tinham uma postura muito aberta, ‘a gente é gay sim, a gente é viado sim, a gente é travesti’. Elas faziam espacate [ato de abrir as pernas em um ângulo de 180º], e performances em público. Eu acompanhei muito essas pessoas”.

A convivência com os membros da favela se transformou no livro “Liberalismo Minoritário - Vida Travesti na Favela”, uma pesquisa etnográfica realizada na comunidade, que foi lançado em 2022, originalmente em inglês, pela Universidade de Chicago e, neste ano, chega à versão em português.

O texto também foi lançado em Salvador, capital do Estado onde o acadêmico é professor na Universidade Federal da Bahia (UFBA), e terá lançamento no Rio de Janeiro, em maio.

O autor morou na Rocinha entre 2009 e 2010, e conta que percebeu que, de fato, existe a falta de direitos públicos no território e, por consequência, uma falta de liberdade em um certo sentido, que ele chama de “liberdade normativa”, “aquela de Estado que é garantida por lei”. Contudo, para o pesquisador “existem outras liberdades na favela, em específico na Rocinha, das quais não falamos muito”.

Pensando nestas liberdades, muitas vezes o interferência do Estado pode acabar delimitando mais do que garantindo os direitos e as liberdades das pessoas que moram nas favelas - especialmente as mais marginalizadas, como as LGBTQIAP+.

“Durante a UPP [Unidade de Polícia Pacificadora], meus amigos LGBT+ da Rocinha reclamaram muito: ‘E agora, a gente pode contar com quem? Porque a polícia é homofóbica’”, relata o autor sobre os questionamentos dos amigos que se sentiam protegidos com a "lei" do tráfico mencionada anteriormente.

Porém, em contrapartida, Moisés faz uma ressalva: “não podemos afirmar também que essa proteção do tráfico é permanente. No Rio de Janeiro, por exemplo, há algumas favelas com traficantes evangélicos, com uma postura muito mais conservadora e LGBTfóbica, proibindo, inclusive, outras religiões como umbanda e candomblé”.

Dados preliminares do Censo 2022 mostram que a Rocinha, no Rio de Janeiro, deixou de ser a maior favela do Brasil
Reprodução: Flipar
Dados preliminares do Censo 2022 mostram que a Rocinha, no Rio de Janeiro, deixou de ser a maior favela do Brasil

Uma pessoa que sentiu a LGBTfobia de grupos criminosos dentro da favela foi o social media Gabriel Lopes, de 30 anos. O jovem gay cis viveu por 27 anos no Complexo da Pedreira, em Costa Barros, na zona norte do Rio.

Ele, que morava no topo do morro, conta que sempre se sentiu protegido na favela durante o processo de descoberta de sua sexualidade. Contudo, um episódio em específico o fez se retrair.

“Teve uma época, quando eu estava namorando, que eu cheguei bêbado em casa e subi a favela com meu namorado de mãos dadas. Alguns traficantes reagiram o que me fez dar ‘dois passos para trás’. Eu pensei: ‘opa! Talvez eu não me sinta mais tão seguro aqui, talvez eu não deva ser tão livre aqui quanto eu gostaria ou que eu achasse que eu fosse”, relata o rapaz.

Ele explica que hoje, quando retorna ao local para visitar a família e amigos, percebe um cenário diferente. “Hoje eu chego lá na Pedreira e a situação é outra. Vejo muitos LGBTs pelas ruas da favela, muito mais libertos e donos de si, o que antigamente eu não via”.

Gabriel também conta que teve poucas referências LGBT+ dentro da favela, o que fez com que a construção de sua identidade queer ocorresse de forma tardia, “como acontece para a maioria”.

“Na favela eu não tinha referência nenhuma. Eu não tinha contato com homens gays ou mulheres lésbicas, por exemplo, porque isso ocorreu há muito tempo, era outro contexto”, acrescenta o social media.

Foi a partir de experiências externas que o rapaz se entendeu melhor como uma pessoas LGBT+: “Construí quem eu sou hoje com as experiências externas, a partir do ensino médio. Comecei a ter contato com mais pessoas do movimento, pessoas mais esclarecidas também, até mesmo não LGBTs. Foi a partir dos 15 anos que comecei a ter esses contatos”.

Dançarina
Reprodução/Instagram 18.04.2023

A dançarina Kley Hudson

A dançarina travesti Kley Hudson , de 24 anos, também é outra jovem que passou boa parte de sua vida morando na favela, mas, diferente de Gabriel, ela teve a oportunidade de passar por diversas comunidades do Rio de Janeiro.

“Eu sou nascida e criada na favela do Engenho da Rainha [Zona Norte do Rio de Janeiro]. Residi lá até cerca dos meus 21 anos e depois eu circulei. Costumo dizer que eu rodei pelas favelas do Rio de Janeiro, não passei por todas, mas pelas quais passei tive experiências múltiplas, pude observar e analisar a riqueza e as diferenças de cada favela”, afirma ela.

Kley conta que após sair do local que viveu durante mais de duas décadas, morou no Complexo do Lins, na Zona Norte da capital fluminense, mais especificamente no Morro do Encontro. Na sequência, passou pela Maré: “De onde costumo dizer que até hoje não saí”, diz a dançarina.

“Por lá me surgiram muitas oportunidades, foi onde eu comecei a me envolver em projetos culturais para além da dança, que é a minha área”, conta Kley, que acrescenta: “Tive um contato muito grande também com as pessoas trans e travestis da Maré, quando tive a oportunidade de conhecer o pessoal do Observatório de Favelas e trabalhar com eles”.


Migração solitária


A dançarina explica que boa parte do seu processo migratório entre as favelas foi solitário, o que ela atribuiu à vivência de  pessoas trans e travestis.

“Eu sempre me vi e estive muito sozinha. Sempre tomei a decisão de circular entre estes territórios sozinha, e isto é uma realidade dos corpos travestis, que estão sempre muito desamparados e costumam tomar decisões sempre com eles mesmos”, lamenta a artista. “A gente não tem muito com quem contar e mesmo quando temos, a sociedade nos exclui tanto que acabamos tomando nossos rumos sozinhas”.

Ela diz ainda que seu processo de transição de gênero  é “eterno”. “Este processo, enquanto corpo favelado, tem suas dificuldades, suas interrupções, seus dias bons e, acima de tudo, um respeito específico. A favela é um território muito amplo e esses corpos, quando eles se posicionam politicamente dentro desses espaços, costumam ser olhados de uma forma diferente”, explica Kley.

A dançarina justifica a afirmação dizendo que foi preciso se impor politicamente, como um corpo travesti, para que sua identidade fosse respeitada nos territórios que ela transitou.

“Dentro das favelas que eu já morei, e que já frequentei, eu sempre me posicionei politicamente e com um corpo muito presente e que dialoga. Não foi, e acredito também que está longe de ser, um corpo 100% respeitado, mas sempre tive um olhar diferente e receptivo nestes territórios, diferente de outras manas, mulheres trans, que não têm um posicionamento político, e que acabam não recebendo tanto respeito”, diz.

“Eu entendi que a forma como nos posicionamos - nós corpos trans - dentro dos nossos territórios se reflete na devolutiva desse respeito”, acrescenta ela.

Kley ainda faz uma reflexão sobre o esforço que precisa fazer para garantir esse respeito nos espaços fora da favela, onde a transfobia é mais evidente, segundo ela.

“Um espaço fora da favela, é muito complexo. Eu costumo dizer que para uma travesti sair da favela, ela precisa estar muito bem armada no sentido de respaldada nos seus direitos. E armada se for também preciso fisicamente, com spray de pimenta, com nossos obés [facas, na linguagem pajubá ou iorubá, segundo Kley], com as nossas próprias mãos e com a nossa voz”, defende a dançarina.

“Costumo adentrar outros espaços na cidade sempre com armamento maior do que eu já utilizo na favela. Com uma preparação física e emocional maior porque a transfobia rasga”, finaliza.

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