Domingo é comemorado o Dia dos Pais e o conceito de paternidade tem se transfomado ao longo dos anos. Contudo, o que não muda é o abandono parental, que ainda continua com dados alarmantes no Brasil.
Cerca de 104 mil crianças foram registradas sem pai no país, de janeiro a julho de 2023, segundo dados da Central de Informações do Registro Civil (CRC Nacional). O número é maior do que o registrado no mesmo período no ano de 2022 (100.717).
Para a comunidade LGBT+ este assunto pode retratar um tópico sensível porque, além da ausência paterna, seja física ou emocionalmente, muitos integrantes da sigla queer sofrem LGBTfobia dentro de casa devido a uma estrutura machista e LGBTfóbica que impera na sociedade, em especial a brasileira.
Para Jenifer Zveiter, psicóloga e Head de DE&I na Condurú Consultoria, não é correto dizer que a ausência paterna está relacionada diretamente à sexualidade de uma pessoa LGBTQIAP+ , porém "as relações familiares afetam intimamente todos os indivíduos em suas relações fora do contexto familiar".
Para justificar seu ponto de vista, ela traz um exemplo: "Uma filha, ao crescer em um ambiente onde o pai agride sua mãe de forma psicológica e/ou física, pode por vezes reproduzir esse comportamento ou naturalizar essa forma de relacionamento com um futuro parceiro [ou parceira]", analisa a psicóloga. "Por outro viés, a ausência do vínculo paterno ainda influencia as relações da pessoa com o sentimento de abandono e não merecimento de cuidado e afeto".
Para Barbara Meneses, psicóloga e sexóloga que atua há 20 anos no Centro de Referência LGBT+ da Prefeitura de Campinas, em São Paulo, o ponto crucial desta discussão na verdade é mais do que ausência ou presença paterna, mas sim "a qualidade das relações".
"Quando as crianças, no geral, têm uma figura de referência de qualidade, seja ela paterna, materna, de um tio, de um padrasto, de um avô, ou outra, elas vão reproduzir esse exemplo nas relações na vida adulta. Não adianta só ter um pai presente, ou uma figura paterna presente, sendo uma figura ruim, que briga, que não tem diálogo, que não tem afeto", destaca a psicóloga, que aponta também um cenário ainda mais desfavorável.
"[...] Que tem violência, que tem uma relação abusiva, uma relação tóxica. Essa presença pode ser bem pior do que a ausência. É mais importante a gente pensar na qualidade da relação com a figura paterna do que a ausência ou presença."
Ela ainda ressalta que a figura paterna não necessariamente será propriamente a do pai: "Às vezes é um padastro, um irmão mais velho, um tio ou um avô, por exemplo".
"Uma pessoa que foi criada em uma família que não tem uma figura paterna não quer dizer que vá ter relações amorosas conturbadas porque ela teve duas mães, por exemplo", explica Barbara. "O mais importante não é exatamente a figura paterna, mas é a qualidade das relações que se estabelecem com essa figura de referência e cuidado na infância".
Famílias contemporâneas
Há muito tempo que o ideal de família padrão hétero-cisnormativa é debatido e criticado, uma vez que a estrutura de uma família pode ser múltipla, incluindo configurações diferentes como duas mães, ou dois pais, ou mãe ou pai solteiros, ou mãe ou pai trans / não bináries , entre outras.
Entender estas diferenças é importante para perceber que mais do que a presença de uma figura paterna, a qualidade das figuras de proteção ao indivíduo durante a infância devem ser positivas, como salientou anteriormente Bárbara.
"O conceito de paternidade deve ser naturalizado a partir da perspectiva de que
famílias constituídas por pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ não são configurações diferentes", defende a psicóloga Zveiter.
"Esse conceito deveria ser instituído na educação básica e familiar desde a infância, pois, uma criança, filha de mães ou pais homoafetivos, por exemplo, está introduzida socialmente e sofre as consequências deste conceito de paternidade e família baseado no modelo heteronormativo."
A psicóloga e sexóloga Barbara Meneses corrobora com a colega de profissão e introduz um termo que abarca melhor o tema: figuras de afeto para a criança.
"As figuras de maternidade e paternidade se expandiram um pouco para os cuidadores de criança, para a família, para quem convive com a criança [...] Talvez a paternidade não é exatamente a do pai, mas sim da figura que cuida, que coloca limites. Uma figura que está presente, que tem afeto, uma figura que está ali nas horas de necessidade, nas horas de alegria, nas horas de conquistas."
A especialista traz ainda novos termos para a discussão: "Hoje falamos em maternagem e paternagem, que são figuras que representam esses papéis [de mãe e pai]. A criança pode ser muito bem criada em uma família com duas mães, ou com uma mãe solo, ou com um pai solo."
LGBTfobia paterna
Os crimes de racismo por LGBTfobia tiveram um crescimento de 53,6%, em 2022 em comparação com 2021. O dado é do 17º Anuário Brasileiro da Segurança Pública, divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que foi publicado no mês passado.
Segundo um relatório similar produzido pelo Grupo Gay da Bahia , o Brasil continua sendo o país que mais mata pessoas LGBTs no mundo. Os dados alarmantes expõem uma dura realidade que as pessoas queer vivem no país e que, muitas vezes, começa dentro da própria casa.
"O ciclo de exclusão familiar afeta de forma extremamente significativa a formação e sentimento de pertencimento social na fase da adolescência e, consequentemente, na fase adulta. Visto que a pessoa é colocada em uma condição de vulnerabilidade social pelo afastamento do seu ciclo familiar", afirma Jenifer.
"Quando o preconceito vem de um pai ou de uma mãe, por exemplo, que são as nossas primeiras referências de vida, isso traz consequências que se tornam dores na alma. A família é um lugar onde tudo começa", complementa Barbara, que chama a atenção para uma questão cultural envolvendo o gênero dos bebês.
"Normalmente quando a família está gestante a primeira coisa que se pergunta é qual o gênero do bebê. E aí vem a sempre pergunta: 'O que que você prefere? Menino ou menina?'. A família sempre fala que 'tanto faz, desde que venha com saúde.' A criança nasce, vai se desenvolvendo com saúde, mas não atende às expectativas da família pautadas na hétero-cisnormatividade", diz a psicóloga chamando a atenção para o cuidado com os menores trans.
"Quando uma criança começa a se entender em desacordo com o seu corpo, ou quando um pré-adolescente começa já entender os seus desejos por alguém que não é do gênero oposto, quando o indivíduo começa a perceber que as coisas não correspondem com as expectativas da família, a LGBTfobia atinge diretamente o ser e existência desse menor", expõe Bárbara, que traz uma provocação na sequência.
"Eu sempre pergunto às famílias: 'Você não falou que desde que venha com saúde tanto faz o gênero. O que mudou?"
Para a profissional da saúde, este tipo de barreira que impede uma relação de afeto mútuo positiva entre o menor e sua família, para além de trazer consequências negativas para a autoestima, também pode colocar a vida da pessoa LGBT+ em perigo.
"A pessoa nessa baixa autoestima aceita qualquer tipo de relacionamento, se submete a situações de violência, a relações abusivas e extremamente tóxicas . São pessoas que têm grandes tendências de se envolverem com drogas, com prostituição, com questões ilícitas, e têm mais chances de cometerem suicídio."
Como superar a ausência paterna?
Jenifer Zveiter endossa que todas as pessoas que são afetadas pela ausência paterna, conseguem minimizar os impactos dessa condição "ao procurarem acompanhamento de saúde mental".
"O processo psicoterapêutico fortalece a estrutura psicológica, ao fornecer instrumentos de autorreflexão e compreensão da própria identidade", diz. Barbara Meneses corrobora com a psicóloga e salienta que é possível "tentar estabelecer diálogos e entender na vida adulta que cada um expressa amor de uma forma diferente".
"Talvez esse pai ausente não teve a referência de afeto também. Talvez esse pai não aprendeu a ser pai. Talvez esse pai não tinha mais coisas para oferecer. Talvez a forma de amar desse pai era prover. Era não deixar faltar nada. Era não deixar que a criança sentisse vontade das coisas. Então, o pai muitas vezes se ausentava para trabalhar", supõe a psicóloga e sexóloga.
Para a especialista essa reflexão tende a ajudar a pessoa LGBT+ a entender que sua sexualidade não é um problema, mas sim que ela só "não correspondeu às expectativas do pai do mesmo jeito que o pai não correspondeu as expectativas dela".
"Muitas vezes ele [o pai] não fez isso por mal. Talvez ele não soube ser um pai diferente por uma questão de criação, por uma questão de cultura, por uma questão de não ter tido essa referência [...] É importante também revermos as nossas expectativas", finaliza.
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