O acompanhamento médico a crianças trans é cercado de estigmas e transfobia, mas resolução do Conselho Federal de Medicina permite intervenção hormonal apenas a partir dos 16 anos
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O acompanhamento médico a crianças trans é cercado de estigmas e transfobia, mas resolução do Conselho Federal de Medicina permite intervenção hormonal apenas a partir dos 16 anos

No dia 17 de maio é celebrado o Dia Internacional Contra a LGBTfobia. A data é marcada pela retirada do “homossexualismo” do Código Internacional de Doenças (CID) pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1990.

A partir de então o termo foi substituído por “homossexualidade”, uma vez que no contexto médico o sufixo “ismo” remete a doenças. O debate sobre os direitos LGBT+ têm se ampliado ao longo dos anos e a atenção se voltou para os outros membros da comunidade, para além de gays e lésbicas que fazem parte do grupo de homossexuais.

Uma "letra" que vem ganhando cada vez mais destaque é a "T", que se refere às pessoas transgêneros, e dentro do grupo a infância e adolescência trans ainda é palco de muito estigma e transfobia na sociedade, especialmente a brasileira que lidera há 14 anos o ranking do maior número de assassinatos LGBTs no mundo, com a morte de 131 pessoas trans em 2022, segundo o dossiê "Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras" , da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).

"O total de vítimas menores de idade nos últimos seis anos somam 33 casos, sendo 32 pessoas transfemininas e uma pessoa transmasculina. E representa cerca de 5,7% dos assassinatos com informações sobre idade das vítimas", diz trecho do relatório.

É importante que os pais ou responsáveis de menores trans estejam atentos para prestarem o suporte necessário aos filhos neste momento importante de descoberta.

O primeiro passo é buscar a informação correta e entender como funciona esse processo nesta fase da vida, o que não envolve uso de medicação ou cirurgia de redesignação de gênero , como é divulgado em algumas informações falsas que circulam sobre transgeneridade infanto juvenil.

O endocrinologista pediátrico do Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Hupe/Uerj), e coordenador do programa Identidade - Ambulatório de Transdiversidade, Daniel Gilban, explica que a identidade de gênero “é uma percepção interna, que pode não estar clara durante a infância”.

Crianças transgêneros  podem exibir algum desconforto com o próprio corpo, e terem dificuldade de adaptação aos comportamentos comumente esperados para o gênero, como preferência por roupas, cortes de cabelo e tipos de brincadeiras”, explica o especialista que ressalta que esses comportamentos não são exclusivos de crianças trans, “já que crianças cisgênero também podem, em determinados momentos, questionar as imposições de adultos referentes aos padrões de gêneros”. 

Ao primeiro passo que a família percebe tais sinais, Gilban enfatiza que o mais importante é “sempre acolher a criança com respeito e amor”. “Não é momento de julgamento, nem de criar estereótipos, mas de deixar a criança livre para ser plena e feliz”, acrescenta.

O médico explica que o acompanhamento inicial deve ser realizado com profissionais de saúde mental , caso os pais percebam que a criança vem exibindo algum grau de sofrimento ou desconforto. “Se a incongruência de gênero estiver em questão, o endocrinologista pediátrico pode ajudar em alguns momentos”, orienta Giban.

Ele explica ainda que o termo “incongruência” vem sendo utilizado em substituição à  palavra “disforia” , que se refere a não identificação com o gênero imposto socialmente, a partir do gênero biológico, o que representa um caminho para a "despatologização da condição".

“O termo disforia se refere também a um sofrimento, que nem sempre está presente, mesmo em pessoas com incongruência de gênero, ou seja, que a identidade de gênero não é a mesma que o gênero designado ao nascimento”, afirma.

Quando pode ocorrer a intervenção hormonal?


Uma das maiores preocupações de responsáveis quando buscam informações sobre a transição de gênero infanto juvenil é se a criança ou adolescente irá tomar medicações ou passar por cirurgias.

Gilban explica que quando uma criança questiona o próprio gênero, normalmente o incômodo aumenta durante a puberdade, já que as características corporais de gênero ficam mais claras nesse período. Neste sentido, pode ser usada uma terapia de bloqueio de puberdade em adolescentes trans, “sob o princípio de impedir a piora desse desconforto”.

O médico ressalta que essa terapia é experimental, e portanto só pode ser oferecida sob protocolo de pesquisa e em centros especializados nesse cuidado, que são poucos no Brasil.

“A partir dos 16 anos, desde que o adolescente tenha acompanhamento com profissional de saúde mental que confirme a incongruência de gênero permanente, consentimento dos responsáveis, e autonomia para assentir o tratamento, pode-se oferecer então a terapia de afirmação de gênero, com uso de esteróides sexuais para o surgimento de características corporais compatíveis com o gênero com o qual o adolescente se identifica”, explica o médico com base na resolução 2.265/2019 do Conselho Federal de Medicina (CFM).

Em seu nono artigo, a resolução afirma que “na atenção médica especializada ao transgênero é vedado o início da hormonioterapia cruzada antes dos 16 (dezesseis) anos de idade”.

O primeiro parágrafo deste artigo deixa claro que “crianças ou adolescentes transgêneros em estágio de desenvolvimento puberal Tanner I (pré-púbere) devem ser acompanhados pela equipe multiprofissional e interdisciplinar sem nenhuma intervenção hormonal ou cirúrgica”.

Já o segundo parágrafo informa que “em crianças ou adolescentes transgêneros, o bloqueio hormonal só poderá ser iniciado a partir do estágio puberal Tanner II (puberdade), sendo realizado exclusivamente em caráter experimental em protocolos de pesquisa, de acordo com as normas do Sistema CEP/Conep, em hospitais universitários e/ou de referência para o Sistema Único de Saúde”.

O décimo artigo aprova a intervenção hormonal a partir dos 16 anos: “Na atenção médica especializada ao transgênero é permitido realizar hormonioterapia cruzada somente a partir dos 16 (dezesseis) anos de idade”. E o décimo primeiro artigo proíbe a intervenção cirúrgica em menores de 18 anos.

“Na atenção médica especializada ao transgênero é vedada a realização de procedimentos cirúrgicos de afirmação de gênero antes dos 18 (dezoito) anos de idade.”

O mais importante para crianças e adolescentes trans, que estão no início de suas descobertas de gênero, é a chamada transição social, que pode ser realizada a qualquer momento, “quando a família percebe que a incongruência de gênero está trazendo sofrimento para a criança”, afirma o médico.

“Trata-se de uma questão de respeito e empatia”, ressalta Gilban. “Não forçar roupas ou atividades com as quais a criança não se sente bem, assim como utilizar apenas nomes e pronomes compatíveis com o gênero com o qual a criança se identifica [...] O nome social deve ser respeitado em todos os ambientes que a criança frequenta, inclusive o ambiente escolar ”, finaliza.


Minha Criança Trans

Thamirys Nunes, a filha Agatha, de oito anos, e o marido
Reprodução Instagram/@minhacriancatrans 21.07.2022
Thamirys Nunes, a filha Agatha, de oito anos, e o marido



Thamirys Nunes, de 33 anos, é presidente da ONG Minha Criança Trans, organização que criou após a transição de sua filha Agatha, 8, aos três anos de idade.

Em uma entrevista ao iG Queer em julho de 2022 , ela relatou que a família só conseguiu compreender a profundidade do incômodo da criança com o seu gênero de nascimento quando Agatha começou a verbalizar frases do tipo: “Mamãe se eu morrer hoje, posso nascer uma menina amanhã?”; “Mamãe seria tão mais legal se eu tivesse nascido menina, eu seria feliz”; e “Mamãe me chama de filha só hoje, só para eu ficar feliz".

A ativista relata que hoje a maior dificuldade em desmistificar que crianças e adolescentes trans não passam por intervenção hormonal ou procedimentos cirúrgicos é a cultura de fake news que a sociedade digital está inserida.

“Precisamos investir muito em comunicação para que consigamos dialogar com a sociedade sobre as crianças e adolescentes trans, e principalmente para que entendam que eles não tomam hormônios e não fazem cirurgias de modificações corporais”, afirma Thamirys. 

“Nossa maior dificuldade está em quebrar barreiras e falar para fora da ‘bolha’ [...] É um trabalho intenso, árduo e oneroso, e por isso muito difícil de ser executado.”

A também influenciadora explica ainda que nenhuma pessoa trans que está em processo de transição social é obrigada a passar por algum tipo de profissional médico, “até porque a transgeneridade não é uma doença”.

“Como a transição de gênero mexe com muitos aspectos da vida da pessoa, seja criança, adolescente, ou adulto, é importante ter uma rede de apoio e/ou um psicólogo para ajudar a organizar os sentimentos, no momento delicado em que muitas coisas acontecem ao mesmo tempo”, diz a ativista, que reforça na sequência: “Esse acompanhamento psicológico não é obrigatório e nem compulsório, é importante avaliar individualmente cada caso”.

A fotógrafa Yandra Lôbo, de 38 anos, também é mãe de uma menina trans, Raul, 8. Ela deixa claro que prefere utilizar a palavra transgênero, porque “engloba todas as formas de existências distintas da cisgeneridade”.

“Enxergamos os primeiros sinais de transgeneridade em Raul mais fortemente quando ela chegava da escola, tirava a roupa, e trocava por uma saia. Era recorrente a escolha dela em ‘atuar’, em suas brincadeiras, como princesa, bailarina... Usualmente elegendo papéis associados socialmente ao feminino”, conta a fotógrafa.

“Sempre tivemos disponíveis em casa os ditos ‘brinquedos de menina’, como bonecas. Nosso filho mais velho sempre brincou com eles, ‘numa boa’. Talvez por isso não nos chamou atenção a preferência de Raul [por esses brinquedos]. Ela tinha quatro anos quando tudo isso veio meio que junto, com a sua fala mais articulada e inteligível. Frases como ‘eu quero ser menina’ e ‘eu posso ser menina’ passaram a ser uma constante”, afirma Yandra.

A mãe conta que quando Raul passou a expressar melhor a sua identidade de gênero, a família tinha o modelo binário ainda muito enraizado em sua estrutura.

“Nos gerou muitas dúvidas, muito sofrimento, muita angústia. Associamos a ideia de ser trans à dor, medo, sofrimento e desrespeito. Isso é automático. Vemos isso nos olhos de nossos familiares, de nossos amigos. Entretanto, depois de reparar com cautela, fazer pesquisas e consultas com profissionais excelentes, fomos percebendo que Raul poderia experimentar ser menina. Ressalto essa palavra aqui, pois ela é fundamental em nossa trajetória”, diz.

“Temos uma atenção para sempre que possível usar uma linguagem sem marcadores de gênero [...] Quem tem honestidade e busca informações, verá que nossas famílias nada mais são que como quaisquer outras, com filhos que se distinguem em alguma medida uns dos outros, com necessidades particulares, com condições de existência próprias. A diferença é que nós escolhemos dizer sim! Sim para quem elas/eles/elus são”, finaliza.

Outra mãe que também apoiou o filho transgênero é a advogada Regiani Abreu, de 46 anos. Luca,15, iniciou sua transição entre três e quatro anos.

“Nós não tínhamos nem vocabulário, não conhecíamos a palavra ‘trans’. Foi bem difícil. No primeiro momento quem ‘possibilitou’ a transição social foi meu marido, que estava cansado de ver meu filho lutar porque não queria mais usar roupas de menina. Eu insistia muito para que Luca se vestisse de menina e ele não aguentava mais. Era uma violência [da minha parte], e ele era uma criança muito triste, tímida.”

Regiani conta que após o início da transição social, Luca passou a ser “uma criança muito mais viva, esperta e integrada”. Contudo, a família acreditava que não estava no caminho certo, por falta de conhecimento.

“Um dia eu li uma reportagem no jornal sobre um pai que tinha ido de vestido à escola da filha para apoiá-la e o médico especialista na matéria falava da possibilidade da transexualidade. A partir daí eu procurei o Hospital das Clínicas  [em São Paulo] para buscar ajuda.”

Cerca de 100 crianças e 180 adolescentes são acompanhados pelo Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos) do Instituto de Psiquiatria, e a Unidade de Endocrinologia Pediátrica do Instituto da Criança do HC da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

Em fevereiro deste ano, o vereador Rubinho Nunes (União Brasil) solicitou que uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) fosse aberta para investigar como é realizada a transição de gênero de crianças e adolescentes trans pelo HC, o que foi encarada pelos responsáveis como um ato transfóbico.

Luca já passou por situações de transfobia. "Ele contou uma vez que levou um beliscão na perna, [e quando] reclamou, o colega disse: "aguenta, você não é menino?" [...] Na primeira escola que Luca estudou ele queria fazer natação de sunga e a escola exigia que fosse de maiô. Ele queria fazer judô, mas o esporte era para apenas para meninos”, relata Regiani.

Embora ainda não exista uma lei exclusiva, a LGBTfobia é considerada crime no Brasil desde 2019, quando foi tipificada como crime de racismo  por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

Agressões psicológica, moral, física e sexual, além da negativa a direitos nas esferas públicas e institucional são considerados crimes de LGBTfobia.  Saiba como denunciar.

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