Relacionamentos abuvisos homoafetivos tendem a ser menos vistos social, cultural e até juridicamente
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Relacionamentos abuvisos homoafetivos tendem a ser menos vistos social, cultural e até juridicamente

Identificar um relacionamento abusivo e conseguir sair dele faz parte de um processo doloroso e que pode impactar de muitas formas a vida e a saúde (seja mental ou física) de uma pessoa. Enquanto as relações tóxicas têm sido tema de debates e explorações em relações heteroafetivas – principalmente tendo como vítimas as mulheres –, no campo dos relacionamentos homoafetivos ou transcentrados se trata de um fantasma: sabe-se que existe, mas se fala muito menos sobre o assunto.

Pelo fato de os relacionamentos abusivos entre pessoas do mesmo gênero serem menos abordados, há uma falsa percepção de que essas relações são menos passíveis de serem tóxicas. O psicólogo cognitivo comportamental João Brod Jacobs explica que essa idealização dificulta a reação de pessoas que podem estar imersas em ciclos de violência causado por cônjuges.

“Quando isso acontece, a pessoa  LGBTQIA+ se sente muito invalidada. A invalidação quer dizer que nossas demandas, sentimentos e situação não estão sendo corretas ou reais. É como se nossas preocupações e a validade daquele abuso não existissem. Penso que pessoas LGBT que estão em relacionamentos abusivos que têm essa percepção de que é mais fácil namorar alguém do mesmo gênero acabam desconsiderando todas as demandas únicas das relações entre homoafetivos”, explica o profissional.

O psicólogo afirma que essa invalidação intensifica a sensação de solidão e desamparo que esses indivíduos podem sentir, principalmente por medo de buscar apoio e se depararem com o preconceito. Essa situação, João aponta, é muito comum principalmente em pessoas mais jovens, que sentem que não têm para onde correr ou onde buscar recursos para lidar com uma relação abusiva. No entanto, pessoas de todas as idades estão vulneráveis a essa sensação de impotência.

“Há também uma questão jurídica por trás da situação. Questões como violência doméstica e até mesmo abuso são, em termos jurídicos e na prática, extremamente difíceis para pessoas LGBT conseguirem lidar com suporte. Há o medo de se sentir desacreditado, até por vivermos na realidade do Brasil, o país que mais mata pessoas LGBTQIA+”, afirma João.

Como são os relacionamentos homoafetivos abusivos

O influenciador digital Brenno Faustino, 25, passou um ano e meio em um relacionamento abusivo. Ele e o ex-namorado se conheceram em uma festa organizada por Brenno e começaram a ficar. Ele conta que, no início, os traços abusivos eram vistos como sinais de afeto e proteção.

"Por eu ser uma figura conhecida, ele sempre usava a desculpa de que estava me protegendo para que as pessoas não se aproveitassem de mim. Até que aos poucos fui me afastando do meu círculo de amizade e chegou em um ponto que eu não podia fazer algumas coisas, como sair com meus amigos ou ver minha família, enquanto ele podia fazer tudo isso", afirma.

Brenno conta ainda que o ex-namorado, que era mais velho do que ele, tinha acesso livre ao seu celular. Além disso, ele sempre demonstrava interesse no status do influenciador. "Ele gostava de se fazer de coitado, dizia que nunca teve nada na vida, enquanto eu sempre lutei para ter minhas coisas", diz.

Foi quando Brenno percebeu que o ex começou a fazer manipulações, moldando como ele deveria se parecer, agir e até mesmo falar. O influenciador, que se considera muito vaidoso, percebeu que tinha algo errado quando reparou que a própria aparência estava, como ele define, desleixada. Além disso, Brenno chegou a sofrer com perda excessiva de peso. "Percebi que tinha algo de errado quando olhei para mim mesmo no espelho. As pessoas começaram a notar e tentaram me avisar. Só que para mim estava tudo bem, tudo normal".

Frequentemente, Brenno era vítima de crises de ciúme do ex-namorado, que afirmava que o influenciador estava tendo casos com outras pessoas. No entanto, ele é quem estava sendo traído. "Tinham tentado me avisar nas redes sociais, mas não dei ouvidos porque recebo muitas mensagens falsas, discursos de ódio. Até que ele viajou com outra pessoa em um fim de semana, que depois descobri ser o segundo namorado dele. Liguei na casa dele perguntando para a família sobre onde ele estava e a irmã dele me contou tudo", lembra.

Ao confrontar o ex, ele passou por episódios de gaslighting; ou seja, violência psicológica em que o agressor faz com que a vítima duvide da própria sanidade mental: "Ele dizia que eu estava louco e que estava criando histórias na minha cabeça. Tentava inverter o jogo".

No caso da estudante Catarina Cetrone, 19, passou 10 meses em um relacionamento com uma mulher mais velha, mas só percebeu que o relacionamento era abusivo quando ele terminou. Ela conta que se sentiu menosprezada pela ex-parceira, principalmente por conta da idade.

"Adorava o relacionamento porque achava que ela estava me ensinando muitas coisas, que eu estava amadurecendo. Houve situações em que fui criticada e julgada por conta de quem eu sou. Ela dizia que, por eu ser nova, não sabia de nada, que não encontraria ninguém como ela porque eu não era tão bonita, inteligente ou conhecida da vida", descreve.

Essa forma de controle chegou a extrapolar até mesmo para o tipo de roupa que Catarina optava por vestir. "Ou ela não gostava porque mostrava demais ou porque era feio. Ouvia todo dia sobre meu jeito de andar, as músicas que eu escutava... ela usava tudo isso para me atacar e dizer que 'eu mal sabia da sorte que eu tinha em encontrar uma mulher experiente como ela’”.

O relacionamento fez com que ela fosse tomada por um sentimento constante de culpa e insuficiência. Com apoio de terapia, decidiu terminar. "Ela chegou a falar que queria voltar, que eu também tinha errado e poderia fazer diferente", conta.

William*, 30, é escriturário e conta que viveu um pesadelo por cerca de dois anos. "Era para ser somente uma transa, até que virou duas, três, quatro e a gente foi seguindo no relacionamento". Ele afirma que o ex-namorado tinha problemas financeiros e passou a se engajar com ele após auxiliá-lo a recuperar o carro dele, que foi apreendido e estava em um pátio. O rapaz ficou encantado com a atitude de William, e este viu o gesto como um sinal de parceria e cumplicidade, valores que ele busca em um relacionamento.

O ex-namorado tinha comportamentos que, assim como Catarina, faziam com que William se sentisse culpado por sua forma de ser. Ele se descreve como uma pessoa carinhosa com as outras e alegre pelas manhãs, alguns traços que não agradavam o ex-parceiro.

"Em uma manhã, acordei animado e falante com ele, que simplesmente pôs a mão na minha boca e me disse para ficar quieto porque não queria conversar. Engoli aquilo, mas foi a primeira vez que quis falar sobre uma atitude que não gostei. Passamos o dia inteiro na mesma cama sem dizer uma palavra."

As brigas eram tão recorrentes quanto as chantagens emocionais. O ex-namorado tinha o costume de ameaçar terminar com ele, e William sempre implorava para que isso acontecesse. A cada briga que ambos tinham, o escriturário passava noites em claro, chorando. "Às vezes passava dias me questionando sobre o que tinha feito de errado, mesmo que eu não tivesse errado em nada".

William tentou terminar o relacionamento, pelo menos, cinco vezes. Mas em todas o ex-namorado negava, dizendo que ambos poderiam consertar o relacionamento. No entanto, cada vez mais o escriturário percebia que não estava feliz. Um dos pontos mais baixos do relacionamento foi quando William se envolveu com uso de drogas: "Não é algo da minha essência, mas fiz porque senti que, caso contrário, ele me deixaria. Consegui sair dessa sozinho, sem precisar de internações, mas chegou um momento em que me senti viciado".

O relacionamento não chegou a uma agressão física, mas quase chegou a esse ponto. "Um dia ele teve uma crise de ciúme e eu comecei a respondê-lo de forma debochada. Ele insinuava que eu estava o traindo e comecei a responder que sim, mesmo sendo mentira. ele começou a gritar e partiu para cima de mim. Foi a primeira e única vez que ele tentou me agredir", conta.

"Nesse momento, ele saiu correndo do meu apartamento. Ele estava com tanta raiva que conseguiu quebrar a maçaneta de ferro da minha porta. Fico até hoje pensando: 'E se ele tivesse conseguido me bater?'. Aquela foi a última vez. Depois disso, consegui terminar e finalmente levei o caso para minha terapeuta. Antes disso, eu me esquivava do assunto", continua.

William conta que chegou a ter recaídas e até hoje não conseguiu bloquear o ex das redes sociais. Ambos mantêm contato pouco recorrente pela internet. "Eu guardei a porta que ele quebrou aqui em casa. Toda vez que penso em vê-lo, eu olho para essa porta, me lembro de tudo o que aconteceu e digo: 'Não'. Alguma coisa eu guardei para lembrar do que eu não posso aceitar mais na minha vida".

Sinais de alerta

Psicólogo explica que sentimentos constantes de culpa, medo e situações de violência são alertas primordiais de que um relacionamento é abusivo
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Psicólogo explica que sentimentos constantes de culpa, medo e situações de violência são alertas primordiais de que um relacionamento é abusivo

Em relacionamentos homo ou heteroafetivos existem relações de poder capazes de naturalizar o abuso. “Às vezes, a ação e o sentimento não são muito claros”, pontua o profissional. João aponta que é possível identificar esse tipo de relacionamento por meio de três sentimentos:

Culpa: “Se a pessoa se sente culpada na maioria das vezes por ações realizadas. Muitas vezes, não se encontra uma justificativa do porquê dessa culpa, que se torna cotidiana.”
Violência: “A violência não é necessariamente física. Às vezes, a pessoa pode explodir sem nenhum motivo ou apresentar padrões comportamentais nesse sentido.”
Medo: “Uma relação que proporciona medo na maior parte do tempo, seja para falar ou fazer algo, é um outro sinal de relacionamento abusivo.”

“Uma percepção falsa entre pacientes é de que uma relação não deve trazer sentimentos negativos. Se fosse verdade, ninguém mais se relacionaria. Esse relacionamento vai ter momentos ruins e questões; mas, na grande maioria do tempo, se espera que essa relação seja boa e que cada pessoa se sinta livre”, reforça o psicólogo.

No caso dos relacionamentos entre mulheres, que supostamente teriam menos resquícios machistas e, por isso, poderiam ser considerados mais propícios a serem saudáveis, a situação não é diferente. “Vivemos em uma sociedade machista em sua estrutura e, desde a infância, somos ensinados com valores diferentes. Por exemplo: meninos são mais agressivos, enquanto meninas são delicadas. Se analisarmos a construção de afeto no futuro, isso pode ser prejudicial nas relações por serem valores inconscientemente reproduzidos” explica João.

“Dentro dos valores machistas, as mulheres são criadas de forma a agradar seus maridos porque, se ela se dedicar 100% à relação, tudo dará certo. Vemos isso também na relação entre mulheres em que parece existir, às vezes, uma dedicação exclusiva e uma percepção de que só isso será suficiente para que a relação dure”, acrescenta.

João pondera que é muito comum que pessoas que passam por relacionamentos tóxicos pensem que a culpa é delas pela forma como foram abusadas. A mesma situação tende a acontecer em casos de traição. “A tendência é questionar se algo foi feito para que aquela pessoa merecesse isso. Nada justifica um abuso. Por mais que se olhe para a gente e queira encontrar uma razão, a escolha é sempre do outro em ter atitudes abusivas”.

Catarina afirma que nunca associou que o nível de abuso de relacionamento pudesse estar no gênero das pessoas envolvidas. "Não é porque o relacionamento é entre mulheres que eles podem ser menos abusivos. As pessoas podem ser tóxicas independentemente de gênero ou sexualidade", enfatiza.

O profissional reforça que podem existir casos em que uma pessoa não sabe que um determinado comportamento é abusivo. Nesse momento, o diálogo é importante – e a falta de efetividade dele também. Se mesmo assim as atitudes continuam se repetindo, é necessário saber quando se abdicar da questão para evitar impactos na autoestima e a manutenção do ciclo de abuso. Na maior parte dos casos, o fim do relacionamento acaba sendo necessário para se manter a integridade psicológica, moral e até mesmo física da vítima.

Brenno, que cursava direito na época do relacionamento, afirma que a situação mexeu tanto com ele que, no semestre do término, ficou de recuperação final nas oito disciplinas. "Estava estressado, bravo, me isolava e não queria falar com ninguém. Fiquei mais receoso nos relacionamentos", conta o influenciador.

Ele acrescenta que teve medo de pedir ajuda para a família, que é conservadora. Isso porque o ex-namorado era o primeiro relacionamento sério que manteve e que auxiliou que ele abordasse sua sexualidade. "Fiquei com medo de me acharem bobo e ingênuo".

Grande parte do que William viveu foi em silêncio. Ele não conseguia compartilhar a situação com a família e um ciclo de amigos bastante restrito sabe da história. Ele aponta que essas amizades foram importantes para fazer companhia e restaurar sua autoestima. O tratamento com a terapeuta também foi relevante para sua recuperação, principalmente pelo fato de a profissional confrontá-lo e desafiá-lo a enfrentar as situações às quais se deparou.

Um ensinamento que William manteve de seu relacionamento (e que passou a dizer aos amigos) é não aceitar menos do que o sentimento que se dá. "Eu aceitei ser menos, me diminui e entrei em um buraco que não desejo para ninguém. Não reclamo totalmente do relacionamento porque foi importante para eu me descobrir e saber quais são meus limites. Precisei passar por isso para me conhecer totalmente. Só me arrependo do que fiz no caminho".

Por outro lado, Brenno afirma que percebeu um amadurecimento no momento de se relacionar com as pessoas, até amizades. Além disso, aprendeu a identificar melhor os primeiros sinais de que algo está errado dentro de um relacionamento: "Se faz mudar minha essência, já sei que é abusivo". A autoestima foi voltando aos poucos, principalmente com ajuda da rede de apoio formada por amigos e acompanhamento com coach.

João indica que a busca de apoio profissional é importante, mas não só: o ideal pode ser buscar por atendimento especializado por pessoas que se identifiquem como LGBTQIA+. “Isso porque esses profissionais, por estarem integrados na comunidade, vão entender mais das demandas específicas dos nossos relacionamentos, vivências e desenvolvimentos pessoais. Isso pode fazer a diferença no momento de buscar ajuda para que aconteça uma validação e acolhimento mais apropriado”, aponta o especialista.

*O nome foi alterado para preservar a identidade da fonte.

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