O ator, multiartista, ativista trans, co-fundador do Coletivo de Artistas Transmasculines (Cats), Leo Moreira Sá
Renato Mangolin
O ator, multiartista, ativista trans, co-fundador do Coletivo de Artistas Transmasculines (Cats), Leo Moreira Sá

O tradicional Prêmio Shell de Teatro chega a sua 33ª edição e premiará seus indicados na noite desta terça-feira (21), no Teatro Riachuelo, no Rio de Janeiro. Em uma ação inédita, é a primeira vez que o prêmio incluiu uma série de artistas trans em sua lista de indicados.

As atrizes Vitória Jovem Xtravaganza e Vini Ventania Xtravaganza (“Sem Palavras”); Verónica Valenttino (“Brenda Lee e o Palácio das Princesas”); e Assucena (“Mata Teu pai - Ópera Balada”), estão indicadas na categoria Atriz. Outro novidade da edição é a presença da  atriz, diretora e escritora transfeminina Luh Maza no painel de jurados.

O Coletivo de Artistas Transmasculines (Cats) também foi lembrado pela por suas ações de visibilidade e inclusão de artistas transmasculines no Brasil, e está indicado na categoria “Energia Que Vem Da Gente”, que premia iniciativas de inovação.

O ator, multiartista, ativista trans, e co-fundador do Cats, Leo Moreira Sá, conversou com o iG Queer e afirmou que a indicação “foi uma surpresa”.

“O ativismo é algo que você nunca pensa em retorno pessoal ou financeiro, e muito menos ser premiado por isso. Para mim foi realmente uma grande alegria”, diz o ativista, que tem chamado a atenção para a falta de visibilidade para artistas transmasculinos.

Apesar do prêmio divulgar que é a primeira vez que artistas trans são indicados, o ator contesta a afirmação, uma vez que ele próprio já foi indicado e ganhou o prêmio na edição de 2012.

“A verdade é que de fato, em 33 anos, foi a primeira vez que atrizes transfemininas foram indicadas. Isso é inédito. Agora dizer que a primeira vez que pessoas trans são indicadas, isso é mentira, porque eu fui indicado em 2011 e ganhei o prêmio. Eu estava em início de carreira”, conta o ator.

O ativista afirma ainda que deixar de falar que uma pessoa transmasculina já ganhou um prêmio é “a grande prova de invisibilidade”. “É importante para mim e é importante também para minha comunidade”, acrescenta ele.

Em nota ao iG Queer, o Prêmio Shell de Teatro informou que “não falamos que esta é a primeira vez que um artista trans é indicado ao Prêmio Shell de Teatro, mas que pela primeira vez, o Prêmio Shell de Teatro inclui uma série de artistas trans em sua lista.”


‘A arte transformou minha vida’

O multiartista Leo Moreira Sá na peça
Reprodução/Instagram 20.03.2023
O multiartista Leo Moreira Sá na peça "E Lá Fora o Silêncio"


Leo afirma que a arte chegou em sua vida em um momento conturbado, quando ele avaliava as consequências que o uso de drogas lhe trouxe.

“Eu passei quase uma década refletindo sobre todas as consequências do envolvimento com as drogas, e quando eu estava saindo desse período, em 2009, eu estava zerado, minha família tinha virado as costas para mim e eu não tinha nada”, diz o multiartista que conta que naquele ano conseguiu uma bolsa pela prefeitura em que precisava cumprir um currículo de cursos profissionalizantes.

“Eu marquei na lista de interesses as opções ‘teatro’ e ‘música’”, afirma ele. O ator conta ainda que uma mulher trans o levou à companhia de teatro Sátiros, para que ele desse uma entrevista para um processo criativo de uma peça. Foi aí que sua carreira nas artes deu o pontapé inicial.

“Eu consegui um emprego de iluminador na companhia, até que uma pessoa saiu do elenco e o diretor do Sátiros, Rodolfo Garcia Vásquez, me colocou no lugar dela”, diz o ator, que acrescenta. “Eu comecei minha carreira artística com 50 anos.”

Apesar de estar em um espaço cercado de pessoas da comunidade LGBT+ e de pessoas invisibilizadas pela sociedade, o ator lembra que mesmo assim sofreu  episódios de transfobia.

“Eu já entro para a companhia completamente assumido e, obviamente, naquela época, há 14 anos, era bem diferente. As pessoas no teatro tinham dificuldade com a identidade transmasculina , mas já estavam acostumadas com as transfemininas. Passei por muitas situações transfóbicas, mas eu consegui recomeçar por meio da arte. Isso para mim é maravilhoso”, afirma ele.

Foi com seu segundo trabalho na cia, "Cabaret Stravaganza", em 2011, que o artista conseguiu a indicação ao Prêmio Shell de Teatro. Na produção ele participou como ator e design de luz - função que o fez ganhar o prêmio.

No espetáculo, Leo tinha uma pequena participação em que ele misturava sua história pessoal com a magia do teatro. Na cena, ele pedia aos espectadores que contribuíssem para que ele pudesse realizar sua cirurgia de mastectomia.


"Tinha uma ‘cena virtual’ que eu pedia a colaboração das pessoas para que eu fizesse a mastectomia., indicando o site do crowdfunding. Não ganhei um tostão e ainda fiquei devendo para o cara que criou o site”, brincou o ator, que depois lembrou da tristeza que a falta de apoio lhe trouxe.

“Eu fiquei muito triste, ninguém comprou a ideia. Nesse momento eu senti a transfobia, até mesmo dentro do próprio ambiente do teatro”, afirma.

A reviravolta na história é que mesmo sem o apoio do público e dos colegas de profissão, foi com o prêmio que levou pela peça em que pediu ajuda, que Leo conseguiu pagar pela cirurgia.

"A mastectomia foi justamente [paga] com o dinheiro do prêmio Shell. Foi [paga] com a minha parte e com a parte do Rodolfo [o diretor da Sátiros], que ganhou o prêmio junto comigo. Ele foi muito generoso de ter doado a parte dele para a minha cirurgia”, afirma Leo.

“A arte me salvou me dando um caminho e também transformou minha minha vida em vários momentos. Ganhar o prêmio foi um divisor de águas para mim”, acrescenta.

O multiartista Leo Moreira Sá recebendo o prêmio na categoria 'Iluminação' no Prêmio Shell de Teatro 2012
Reprodução/Instagram 20.03.2023
O multiartista Leo Moreira Sá recebendo o prêmio na categoria 'Iluminação' no Prêmio Shell de Teatro 2012


O coletivo


Foi da necessidade de trazer mais visibilidade para pessoas transmasculinas e, especialmente, servir como rede de apoio para a entrada no mercado de trabalho que Leo, junto ao roteirista, ator e dramaturgo, Daniel Veiga, fundaram o Cats.

“Em 2017 houve uma manifestação de artistas trans, encabeçado pela Renata Carvalho, chamado ‘O Manifesto de Representatividade Trans’, em que eu era a única pessoa transmasculina participante. Isto me fez refletir que, na verdade, nós, pessoas transmasculinas, ainda não éramos nem visíveis nesta pauta”, conta Leo sobre o início do projeto.

Ele explica que junto a Daniel, eles confeccionaram uma carta-manifesto pela visibilidade transmasculina, e com isso fundaram o coletivo, há dois anos e meio.

“A partir do momento que nós fundamos o Cats, surgiram as pessoas transmasculinas. Óbvio que nós existimos. Óbvio que existem artistas transmasculinas. Só que estávamos invisíveis inclusive pra nós”, diz o ator que aborda uma das recentes conquistas que deu orgulho para o coletivo. “Temos o Alan Oliveira, um ator transmasculino preto, que está na novela das sete, "Vai Na Fé" (TV Globo)”.



Ativismo não é algo fácil


Leo, que cuida parte de comunicação do coletivo, explica que é muito importante o grupo estar indicado ao prêmio na categoria “Energia Que Vem Da Gente”, porque isso traz visibilidade. Contudo, mais que ganhar, a premiação em dinheiro, caso a vitória ocorra, será muito significativa neste momento do coletivo.

“Sem dinheiro nós não conseguimos fazer nada. A perspectiva com o prêmio é que se nós ganharmos, vamos ter um aporte financeiro. Já pensamos em fazer algum evento, oficinas, e seminários focando principalmente em artistas pretos de periferia e dar prioridade para aqueles que são mais invisibilizados”, diz o ator, que acrescenta afirmando que o Cats ainda está “engatinhando”.

“Ainda não existe ainda uma grande organização. As pessoas estão todas lutando para sobreviver. Nós ainda estamos em uma fase de sobrevivência mesmo. Ativismo não é algo fácil. Eu sou um ativista porque é algo que grita dentro de mim, não é algo que eu escolho”, diz.

Para o ativista, a grande missão que o Cats já realizou foi a de “conectar artistas transmasculinos que estavam invisibilizados no país inteiro”. Ele acrescenta: “Hoje temos, pelo menos, 100 artistas no coletivo. Eu não conhecia meia dúzia até então.”

“A gente quer ser visível na sociedade. A gente quer ter direitos. A gente quer ter acesso. Então esse é o grande trabalho e o grande objetivo. É acesso ao mercado de trabalho”. Trazendo um exemplo prático, o ator faz uma reflexão sobre a representatividade de atores transmasculinos no audiovisual televisivo brasileiro.

“Se você olha, por exemplo, a TV aberta: quantas personagens já foram vividas por atrizes transfemininas? Poucas, mas já foram vividas, já aconteceram. Até agora, apenas dois atores transmasculinos tiveram papéis em telenovelas”, afirma o ator se referindo a Bernardo de Assis, como Catatau em “Salve-se Quem Puder” - que inclusive protagonizou o primeiro beijo entre um homem trans e uma mulher cis em telenovelas brasileiras - e o integrante do Cats, Alan Oliveira, que vive o DJ Cidão em “Vai Na Fé”. 

“Nós estamos buscando romper esses limites e a única maneira é levando para o debate. Qualquer debate, qualquer seminário, qualquer lugar que a gente vá, nós vamos falar sobre isso. Levantando a pauta da empregabilidade que é fundamental para nós”, afirma Leo.

Pessoas transmasculinas vivem um apagamento histórico


Para o ativista e multiartista, as pessoas transmasculinas convivem com uma herança que resulta em um apagamento histórico. Ele afirma ainda que a transfobia vivida por homens trans é diferente das mulheres - as quais ele chama de “primeiras ativistas”.

“As identidades transfemininas se originaram no espaço público. As travestis foram as primeiras ativistas, elas estavam na rua, onde se conquistam direitos”, afirma o ator, que faz na sequência uma comparação a respeito dos homens trans.

“Nós, pessoas transmasculinas, somos socializades como mulheres cisgêneras destinades ao espaço privado, para sermos silenciades e tudo isso é uma herança que reproduzimos. É um apagamento histórico. Onde estão os registros de pessoas transmasculinas? A gente está começando a resgatar agora”, afirma.

Outra consequência que o multiartista avalia a partir deste apagamento é o suicidado de pessoas transmasculinas . Ele explica o conceito.

“As pessoas transmasculinas são suicidadas , porque estamos no espaço privado. A transfobia para nós é diferente. Enquanto que a transfobia para as pessoas transfemininas é direta e física, para nós é velada”, diz o ativista, que denuncia: “[A transfobia] parte da desqualificação do nosso trabalho, do sarcasmo quando dizem, por exemplo, ‘ah, mas você não tem pinto’, coisas ridículas do tipo. Isso tudo vai minando a nossa autoestima e nos levando ao suícido”, finaliza.





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