Ariadna Arantes, Claudine Santos e Raphael Dumaresq enfrentaram o preconceito por são seguirem um padrão heteronormativo
Reprodução/Instagram
Ariadna Arantes, Claudine Santos e Raphael Dumaresq enfrentaram o preconceito por são seguirem um padrão heteronormativo


Viver em  um país LGBTfóbio é um desafio diário para cada um dos que faz parte da comunidade LGBTQIA+ e, para vencê-los, seus integrantes enfrentam preconceitos em níveis completamente diferentes, começando pelas mulheres transgêneros que estão em sua maioria esmagadora, cerca de 90%, na prostituição , 4% possuem emprego formal e 6% possuem emprego informal, segundo levantamento feito pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em 2020.

A travesti Larissa Raniel, moradora de Francisco Morato, na Grande São Paulo, sabe exatamente o que significa estar à margem da sociedade e não conseguir um emprego para satisfazer suas necessidades mais básicas. Ela foi obrigada a fazer programa nas ruas da capital paulista por falta de oportunidades nas empresas que não queriam contratar alguém “fora dos padrões”.

“Quando uma mulher trans e travesti se descobre, a prostituição é a profissão que nos acolhe. Nossa primeira porta é a esquina”, declara. “A nossa escola é a esquina pela falta de oportunidade. Hoje, muitas de nós pensam mais em estudar e correm atrás de capacitação, mas do que adianta ser capacitada e não ter uma chance de exercer? Esse é um medo nosso”, explica ela que, atualmente, é assessora de financiamento da Prefeitura de Francisco Morato.

Ariadna Arantes é influenciadora digital, foi a primeira e única mulher transgênero a participar do “Big Brother Brasil” e esteve recentemente no elenco do “No Limite”, mas nem sempre viveu uma vida debaixo dos holofotes. Aos 15 anos, deixou o cabelo crescer, mas foi obrigada pela família a cortar. Três anos mais tarde, ela fugiu da dura realidade do preconceito e falta de suporte e partiu para a Europa por meio do tráfico de mulheres.

Ao chegar lá, foi obrigada a pagar uma dívida de 14 mil euros os cafetões, conseguiu “bater a meta” apenas oito meses depois e conquistou a alforria. Ariadna estava livre, mas via na prostituição a única saída para conseguir fazer a transição e alterar o nome no registro civil.

“A prostituição é uma realidade na vida de mulheres trans, infelizmente, já que muitas de nós são expulsas de casa ainda adolescente, como aconteceu comigo. Sem estudo e oportunidade, essa foi a única chance que me restou. E não é coisa da nossa cabeça, é real”, salienta. “Eu, muitas vezes, me senti um lixo, tive problemas psicológicos e não conseguia associar amor e sexo. Quando eu tinha um namorado, não conseguia fazer sexo com eles porque era difícil”, descreve.

Ela ainda conta que, antes de sair da casa de sua mãe, aos 14 anos, conseguiu seu primeiro emprego formal em um escritório como office “boy”. Nesse período, antes da transição sexual, tinha um jeito afeminado e  se sentia na obrigação de “disfarçar” porque trabalhava com homens héteros, além de “engrossar a voz” por medo de ser excluída e perder o emprego.

A ex-BBB Ariadna Arantes diz que sofreu transfobia em seu trabalho formal na época da transição
Arquivo pessoal
A ex-BBB Ariadna Arantes diz que sofreu transfobia em seu trabalho formal na época da transição

“Me olhavam diferente. Muitos implicavam ou caçoavam de mim por ser afeminada”, lembra. “Já quando comecei minha transição, em uma empresa no Rio de Janeiro, uma chefe me chamou no canto e disse que eu não podia ter unhas grandes porque era digitadora, mas logo em seguida ela disse ‘você coloca tuas unhas coloridas postiças no fim de semana. Tem que separar’. Eu me senti constrangida demais”, lamenta.

Até hoje não há um mapeamento sobre a realidade das pessoas LGBTQIA+ no mercado de trabalho brasileiro, mas a consultoria Mais Diversidade está realizando esse levantamento este ano para obter informações que tornem mais claros os objetivos e as dificuldades enfrentadas por gays, lésbicas, travestis, transexuais e outras pessoas que compõem a sigla, além de impulsionar a diversidade e a inclusão no mercado corporativo.

Ricardo Sales, um dos responsáveis pela pesquisa e conselheiro de administração da consultoria, acredita que a LGBTfobia estrutural seja uma das principais razões pelas quais essas pessoas têm dificuldade de acesso, permanência e ascensão no ambiente empresarial. Ele ressalta que elas começam a sentir essa diferença pela falta de acesso à formação e, mais tarde, são rejeitadas em processos seletivos que nem sempre são inclusivos.

“Quando a gente olha para as questões de diversidade e inclusão, é necessário ter uma atenção às perspectivas interseccionais. Isso quer dizer que as vivências de LGBTs não são todas iguais e elas serão passadas pelas questões de raça, classe social e pela performance de gênero. As trans, gays afeminados e mulheres masculinizadas podem enfrentar um preconceito adicional e que é completamente injusto, mas que ainda acontece na sociedade”, afirma.

Heteronormatividade

Gui Medeiros se identifica como uma mulher transgênero e intersexual
Arquivo pessoal
Gui Medeiros se identifica como uma mulher transgênero e intersexual

Além das mulheres trangêneros e travestis, gays femininos e mulheres masculinas também são vítimas da rejeição do mercado de trabalho que prefere optar pelos heteronormativos para ocupar a vaga. Para quem desconhece o termo “heteronormatividade”, ele indica que existe um padrão de comportamento para que homens e mulheres vivam em sociedade e o que foge dessa regra não é aceito pela mesma. Por este motivo, pessoas LGBTQIA+ seguem à margem do mercado de trabalho e precisam lutar para conquistarem espaço na informalidade.

Gui Medeiros tem apenas 19 anos, mora em João Pessoa, capital da Paraíba, e se identifica como uma mulher trans e intersexo. A aparência física dela mescla características masculinas e femininas e, mesmo que tenha se candidatado e enviado currículos para vagas em diversas empresas, nunca conseguiu um espaço no mercado, o que a obrigou a trabalhar por conta própria como vendedora.

“No momento, eu trabalho com algo que não quero, é uma escapatória que eu tenho, pois, além dos preconceitos, as empresas não estão contratando, mas continuo atrás de emprego formal”, conta. “Já tentei trabalhar como telemarketing, em restaurantes, comércios, mas a gordofobia e LGBTQfobia não é escrachada e sim higienizada. Já me pediram para raspar o cabelo e falar mais grosso, além de não respeitarem meu nome social. É complicado pensar que não posso exercer uma função por características que não vão influenciar em nada no meu serviço”, protesta.

Claudine Santos, de 31 anos, mora na Zona Leste de São Paulo é palestrante motivacional e modelo, portadora de necessidades especiais, mulher cisgênero, mas também foge às regras heteronormativas. Com seu cabelo curtinho e um modo de agir mais masculino, ela lembra que sofria bullying desde a adolescência por se identificar mais com as brincadeiras “dos meninos” e a apelidaram de “maria-macho”. Também sofreu preconceito em casa e teve a mesma dificuldade de encontrar um emprego formal. Ela conta que tinha todas as qualificações necessárias, mas sempre era desclassificada durante a entrevista final e isso a frustrava porque não queria acreditar que a rejeição fosse por conta da aparência.

“As desculpas eram esfarrapadas: ‘Você é ótima, mas estamos avaliando outros currículos’, outros falavam até sobre minha deficiência como 'você é boa, mas não temos a estrutura necessária para um PCD’. O engraçado é que todas as desculpas eram no momento do encontro presencial”, lembra.

Aos 19 anos, conseguiu o primeiro emprego formal como vendedora em uma loja de roupas e sapatos. Saiu de lá, adotou um estilo mais parecido com o que é hoje e o mercado de trabalho passou a rejeitá-la. Ela se lembra quando vendia planos de telefone e quando foi atender um cliente pessoalmente, que não quis mais recebe-la porque não queria ser atendido por uma 'sapatão'.

“A minha realidade começou a mudar de dentro para fora na verdade, as pessoas começaram a me olhar com mais respeito quando eu olhei para mim mesma com respeito. Sim, o nome palestrante é algo que traz mais força no currículo, a sensação de que essa pessoa (no caso eu) tem algo a agregar onde quer que eu vá. A oportunidade de ser modelo também traz mais visibilidade, mais reconhecimento e, quanto mais um estilo é visto e apresentado em diversas marcas, menos preconceito sofremos. As pessoas começam a enxergar que está tudo bem ser diferente e existir pessoas diferentes.”

Mudança de realidade

O influenciador Raphael Dumaresq é um homem gay, cisgênero e se expressa no feminino
Luana Tayze
O influenciador Raphael Dumaresq é um homem gay, cisgênero e se expressa no feminino

Apesar dos poucos avanços, Ricardo Sales acredita que, nos últimos anos, o Brasil passou por avanços muito significativos relacionados à inclusão LGBT no mundo do trabalho, mas ainda é preciso reconhecer que ainda não chegaram na velocidade necessária. “É importante que a gente avance na inclusão de trans, de LGBTs negros e com deficiência. Temos de reconhecer que existe um avanço, mas não foram completos e que estão restritas às empresas de grande porte e de multinacionais”.

Ele afirma que para existir um mercado de trabalho realmente igualitário, é necessário que as empresas de fato se comprometam com essa agenda, que elas se predisponham a fazer revisão de seus processos e políticas e que assumam compromissos públicos com respeito aos direitos humanos dos LGBTQIA+.

“Uma boa iniciativa por parte das organizações é fazer parte do fórum de empresas pelo direito das pessoas LGBT que hoje é uma das principais instituições da sociedade civil e que articula empresas em torno da pauta de promoção, ao respeito e equidade de oportunidades.”

Raphael Dumaresq ficou conhecido no Brasil e internacionalmente como participante do reality “The Circle Brasil”, da Netflix, e nunca escondeu de ninguém sua feminilidade. O influenciador diz que desde criança gostava de estar bem vestido, fantasiado e performático e este era um ritual que contava com o apoio da mãe. Ele notou que seu comportamento era feminino e entendeu que não tinha motivo para esconder.

“Quando criança, eu fui sim vítima de homofobia. Me lembro que tinham pessoas ao redor da minha família que me criticavam só por andar com meninas. Meu pai já me pegou em algumas posições, dizia que eu não poderia ser assim e isso me machucava muito. Me lembro de ficar doído porque não entendia o porquê não poderia ser quem eu sou, se isso era natural para mim. Era tão nocivo. Me lembro de me podar para fugir disso”, comenta.   

Quando ficou mais velho, Dumaresq cursou faculdade de comunicação em Natal, no Rio Grande do Norte, e compreendeu que seu jeito feminino não era um defeito, mas sim uma qualidade que poderia ser aproveitada como um trabalho.

“Eu passei a entender minha comunicação visual e meu ser. A militância e a política me ajudaram muito. Nunca tive problema para me introduzir em lugares porque tinha acesso à informação e sabia que poderia entrar em todos os lugares e eles me pertenciam também. É claro que isso é um privilégio”, reconhece.

João Gabriel também se sente um privilegiado por viver de seu trabalho como comediante sem a necessidade de mudar sua essência. Recentemente, em 2020, ele iniciou o processo de transição, obrigou seus amigos a trata-lo no pronome masculino e conseguiu a retificação do nome na certidão de nascimento. Ele diz que esse foi um momento de validação de sua existência e foi bem recebido pelas pessoas mais próximas.

“A forma que encontrei de não me sentir mal foi empregar pessoas também trans. Um dia desses, postei numa rede social que queria roteiristas trans e choveu uma galera mandando mensagens. Fiquei muito feliz em contribuir com algo”, afirma.

Hoje, ele já prepara um show especial que será lançado no próximo dia 8 de julho em que vai contar um pouco de sua história nos palcos, de uma forma bem humorada para atingir todo tipo de público, dos mais abertos à comunidade LGBTQIA+ aos preconceituosos. “Ainda não consegui testar oficialmente meu set novo sobre ser trans, inclusive, então volto aos palcos com 40 minutos dessa nova empreitada”, avisa.

Por fim, o conselheiro da Mais Diversidade alerta que todo tipo de preconceito, seja na rua ou em uma entrevista de emprego, foi criminalizada no Brasil pelo Superior Tribunal Federal, em uma lei aprovada em 2019, então todos os LGBTQIA+ contam com um respaldo ao abrir um boletim de ocorrência ou, eventualmente, ingressar com um processo judicial.

"É importante que, caso isso aconteça numa entrevista, você tenha como registrar e ter uma prova material porque isso pode auxiliar na hora de abrir um processo. A melhor recomendação é procurar um advogado ou a comissão de diversidade da OAB, que é bastante atuante nesse assunto", finaliza.

O comediante João Gabriel começou sua transição em 2020
Arquivo pessoal
O comediante João Gabriel começou sua transição em 2020

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