A representação social de um indivíduo inserido em uma sociedade binária consiste em inserir as pessoa em caixinhas que determinam o grupo social ou de gênero que ela fará parte. Isso porque há sempre um atrelamento entre identidade de gênero e a expressão de gênero. Ou seja: se é mulher, então se mostrará ao mundo como mulher; se é homem, se comportará e se expressará dessa maneira.
Entretanto, há corpos que fogem desse pensamento social reverberado constantemente. Uma pesquisa realizada pela revista científica Nature revelou haver 0,69% de transgêneros e 1,19% de pessoas não-binárias no Brasil entre adultos (número que representa quase 3 milhões de indivíduos). No mundo, eles são calculados em 2%, o que representa 157 milhões de indivíduos.
Os conceitos de feminino e masculino sempre existiriam — assim como o da não-binaridade, porém de forma pouco explorada e difundida. Na antiguidade, o povo Mahu, na Polinésia, se reconheciam como não pertencente ao conceito de feminino ou de masculino. O mesmo acontecia no Império Inca com a Chuqui Chinchay, uma divindade cultuada pela população que incorporava os gêneros masculino e feminino e entre outras culturas, sobretudo às originárias e descoloniais.
A expressão de gênero precisa estar sempre atrelada à identidade de gênero de uma pessoa? Para algumas, esses conceitos não existem e um pode existir de forma independente do outro.
Leffs, 24 anos, cantora trans não-binária, conta que se recusa a pautar a sua feminilidade por meio das imposições do patriarcado: “Procuro refletir e compreender quais são os signos que simbolizam o feminino para mim e subvertê-los a minha maneira".
O processo de transição de Leffs foi iniciado em 2019, em uma contexto de pandemia. Embora se identifique como mulher, os outros ainda insistem em a chamarem por pronomes masculinos, já que a transição ocorreu no período de isolamento social. Quando esse período enfraqueceu, ela voltou a frequentar lugares públicos e percebeu que sua presença passou a gerar um impacto em outras pessoas. Para ela, lidar com isso não é fácil, mesmo estando confortável em seu corpo.
“Sou lida quase sempre como um homem cis gay em uma primeira impressão, gerando uma lacuna de comunicação e uma imposição de ser didática. Isto quase sempre é violento. Coloca-me em uma posição de solicitar a validação de minha identidade. É difícil equilibrar a necessidade de ter minha identidade e pronomes respeitados e a vida social cotidiana”.
O processo de transição para as pessoas transgênero é muito difícil porque precisam lidar com violências constantes, expectativas pessoais, cobrança de amigos e familiares e até o julgamentos de pessoas desconhecidas. Porém, quando esse processo não busca atingir uma representação ou expressão do gênero com o qual o indivíduo se identifica, o processo se torna mais desgastante e repleto de invalidações, além da transfobia do cotidiano.
“Quanta energia é gasta para comprar um café e explicar para a pessoa que me atende que sou uma pessoa não binária e que meus pronomes são ela/dela? Como fazer isso para todas as interações do meu dia a dia? Existe alguma alternativa para que a mensagem chegue sem implicar uma explicação? Como fazer isso sem cair na lógica binária de gênero? São inquietações que permeiam a minha existência diária. A partir destas dores, sinto que me apropriei da arte como ferramenta de escancarar esse debate e transformar dor em potência, para levantar questionamentos sobre a minha existência e transbordá-los em arte, música, comunicação”, explica Leffs.
Leffs é uma mulher com pelos no corpo. Isso também se torna outra problemática que precisa lidar quando precisa ser entendida por outras pessoas como mulher. Entretanto, ainda não pensa em tirá-los do seu corpo.
“Pelos são pelos. São meus, cresceram comigo, não ditam feminino ou masculino para mim. O acesso à informação é restrito, mas todos os corpos têm pelos, independente do gênero. Entender o pelo como um símbolo masculino é um sintoma da misoginia e da infantilização do corpo feminino desejável pelo patriarcado”, diz.
“Meus pelos são um fator importante do que considero belo em meu corpo e não sinto que isso o torna mais ou menos feminino. Amo meus pelos. Contudo, sinto que este é o fator que mais distancia a sociedade como um todo da compreensão da minha identidade. Desafiar isto é cansativo, uma luta diária”, acrescenta.
As mesmas sensações permeiam a experiência de Shay Rodriguez, 24, arqueólogo trans, ativista, mestre em Educação e produtor de conteúdo nas redes sociais.
Ele anunciou ser um homem trans em 2016, enquanto estava na faculdade, mas já havia se reconhecido como homem no ensino médio. Em seu processo de transição, por ainda querer ser aceito e lido socialmente como homem, tentou entrar no estereótipo do “homem”: cortou o cabelo, usou roupas ditas masculinas e teve relacionamentos breves apenas com mulheres. Shay até cogitou a usar hormônios, mas explica que isso não era o que de fato queria. Ele queria ser um homem trans da maneira dele.
“Em 2016 eu comecei a estudar mais sobre a questão de gênero, sexo, sexualidade e corpo nas várias áreas do conhecimento como da filosofia, história, medicina, biologia, arqueologia, sociologia e da antropologia para poder ter argumentos quando as pessoas me abordavam e falavam: ‘Ah, mas você não parece homem, você tem que ser do tal jeito’. Foi a partir desse momento que eu comecei a me afirmar para eles, e a frase que mais eu dizia era: ‘Eu sou homem, portanto tudo que eu faço é homem’, e foi assim que eu fui construindo gradualmente a minha transmasculinidade”, argumenta Shay.
O estudante também já publicou um livro chamado ‘Se Eu Comprei, Então É Meu!’, que problematiza o pênis e revela que o órgão genital não é o fator que define o gênero de alguém: “Coloco em debate as representações fálicas de gênero, corpo, sexo, sexualidade e as masculinidades. Aponto ao fato de que tais representações são múltiplas e variadas”.
“A expressão de gênero não precisa ser a mesma que a identidade de gênero, mas vão ter pessoas trans que vão conciliar a expressão com a identidade. Eu não concilio, mas não concilio aos olhos das outras pessoas, do meio social. Mas, para mim, eu concilio, pois, como sou homem, tudo o que eu faço também é de homem. E na minha concepção, o cabelo, as roupas, elas não têm gênero. Se eu sentir à vontade de um dia estar ‘masculino’, mas no outro quiser usar um vestido, passar um batom, pintar as unhas, entre outas coisas ditas ‘femininas’, nada vai me impedir”, defende o arqueólogo.
"Não tem uma cartilha com o checklist da transição"
Ambos defendem que a transição é um processo particular, e que alguns podem optar pela utilização de hormônios ou não, se adequarem socialmente ao gênero que se identifica, fazer procedimentos e entre outros processos.
“Vejo que a transição é um processo social, porém muito particular. Acredito que cada pessoa trans entende até que ponto os signos sociais do feminino ou masculino contribuem ou não para a sua identidade. Não tem uma cartilha com o checklist da transição, mas cada pessoa compreenderá em seu processo quais elementos, palavras, roupas, procedimentos etc fazem sentido”, expõe Leffs.
“Quando eu tinha me apresentado como homem trans, o meio social tinha me exigido que eu tinha que usar hormônios, ter barba, ser heterossexual, usar roupas ditas masculinas, mudar tudo aquilo que eu era antes e apagar todos resquícios femininos do meu corpo”, diz Shay.
Ele comenta ainda sobre as pessoas, inclusive dentro da comunidade, que acreditam que para ser uma pessoa trans é preciso ficar desconfortável com seu corpo, ter disforias, e se submeter a cirurgias (ideologia conhecida como transmedicalismo). Shay não acredita nisso e quer subverter esse pensamento: “A transição de gênero não é só sobre modificar o seu corpo. A transição é sobre mudar seu gênero, de fato, mas essa mudança, também pode ser psicológica, por meio da percepção de si no meio social”, reitera o jovem.
Invalidação e transfobia
Tanto Leffs quanto Shay relatam que as invalidações e transfobias são cotidianas e variam em grau e intensidade, desde utilização de pronomes errados até a dificuldade de acessarem determinados espaços.
Em um caso recente, Leffs relembra que, ao entrar na fila feminina de revista para entrar em um evento, foi barrada. E mesmo após explicar que era uma pessoa trans e que queria ser revistada por uma mulher, a equipe de segurança se recusou a revistaá-la desta maneira.
“Precisei chamar a produção do evento para que minha entrada fosse liberada. O pior é que eu já esperava que isso fosse acontecer e tive uma crise de ansiedade antes do evento por este motivo”, relata.
“Eu fui ao hospital para ser internado, porque estava em uma situação grave de saúde, e no momento eu não tive cabeça para poder dizer que era uma pessoa trans, porque eu só queria ser internado, que me colocassem na maca e me medicassem. Nisso, as pessoas me tratavam todas no feminino. Quando eu já estava me sentido bem para poder argumentar sobre eu ser um homem trans, um enfermeiro falou: ‘Como assim você é trans? Por que você está falando agora que é trans? Por que não assinou o termo? Eu vou chamar o psicólogo para você’. Isso foi de uma violência enorme”, recorda o ativista.
Além disso, ele também se lembra de quando seus vídeos do TikTok foram publicados no Twitter e muitos começaram a invalidar sua identidade, dizendo que ele era apenas uma mulher de cabelo azul.
O questionamento é essencial
“É urgente questionar. São estas ligações entre expressão e identidade que geram suposições sobre os corpos e aprisionam identidades na lógica binária. Tudo isso é historicamente recente, é um produto da colonialidade, do capitalismo, de uma lógica de produção e de assimetria de poder. As dissidências entre expressão e identidade de gênero fortalecem a discussão sobre novas possibilidades e ampliação do espectro de gênero”, argumenta Leffs.
“Acredito que corpos que destoam e fogem do padrão são o caminho para construirmos uma sociedade mais diversa e inclusiva, que rompa com as barreiras de gênero. O Brasil, como país extremamente conservador, necessita de cada vez mais vivências como essas para caminhar nesse sentido. Há medo, mas há coragem e esperança”. finaliza a cantora.
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