Mel Gonçalves de Oliveira, natural de Goiânia (GO), tem 32 anos e assumiu sua identidade de gênero como mulher trans aos 16. Foi criada pela tia e pela avó, e encontrou sua paixão pela música por meio do tio, e do coral da igreja batista que frequentava quando adolescente.
A partir de 2010, Mel Gonçalves se tornou Candy Mel, e junto dos seus amigos, Davi Sabbag e Mateus Carrilho, adentrou no mundo da música alternativa, mais precisamente no gênero do tecnobrega com a Banda Uó, formada pelo trio de amigos.
“Eu costumo dizer que a banda já nasceu comigo [...] A gente sentou, falou: ‘Vamos fazer essa banda acontecer?’ Vamos!”, conta Mel em entrevista exclusiva ao iG Queer .
“Achei que eu poderia, ali naquele espaço, mostrar um pouco mais do que eu sabia fazer. Então foi isso que eu vi, assim, eu enxerguei aquilo tudo [a criação da banda] como uma possibilidade”, comenta.
Em atividade de 2010 até 2018, a banda recentemente anunciou um retorno e prometeu uma série de shows pelo país, em busca de rememorar os seus oito anos de atividade.
O trio, inclusive, já foi confirmado como uma das atrações do Hopi Pride Festival, o festival LGBTQIAPN+ do parque de diversões Hopi Hari que acontece no dia 20 de abril. A banda fará no evento seu primeiro show de retorno aos palcos e se juntará a nomes como Pabllo Vittar, Urias, Marina Sena e Aluna. Saiba mais neste link.
A transgeneridade e a música
Mel vai muito além da banda: ela também é musicista, cantora e compositora, atriz, já foi apresentadora de um programa de TV e hoje tem investido em uma carreira solo que transcende seu trabalho com Davi e Mateus. Em relação à sua identidade, que perpassa sua carreira como artista, Mel, que é pioneira, reconhece que passou por dificuldades.
“Em determinado momento eu achei até que talvez tivesse atrapalhando o ‘boom’ da banda, a explosão popular dela pelo Brasil, por conta da minha trajetória. Fiquei muito calada, ouvindo muita merda”, conta.
Ela continua: “Hoje em dia eu percebo que isso são pilares e que a gente vai construindo aos poucos um caminho [...] A parte dolorosa para quem chega primeiro para desbravar qualquer território que seja é sempre mais complicada e mais complexa, a gente tem que negociar mais.”
Sobre sua experiência no mercado do entretenimento, Mel comenta que era sempre reduzida na mídia a narrativas e visões limitadas sobre seu trabalho: “Eu me sentia meio observada, porém não apreciada.”
“[O mercado tinha] um olhar meio 'vestibular': ‘Vamos ver se ela passa na provinha’, sabe? Talvez um olhar de desconfiança”, explica. Contudo, ela entende que sua identidade, ao contrário de sua experiência mercadológica, a ajudou criativamente falando.
“Inspirações mil [...] Para além da corporeidade da pessoa trans, para além da identidade em si. Eu acho que sutilezas nos relacionamentos, sutilezas no olhar, nos outros. Tudo isso, eu acho que foi muito enriquecedor”, revela.
Ela também aponta que, no cenário musical, não considera que está mais sozinha, e que, apesar de pioneira, se inspirou em muita gente ao longo do caminho, quase como numa via de mão dupla.
“Muita gente me inspirou no meio desse período também: Urias, a Lina [Linn da Quebrada], Jup do Bairro, As Baías, Liniker, Majur, tantas outras cantoras e pessoas trans que estão no nosso circuito, e que nas quais eu passei a me inspirar”, conta.
Atualmente, Mel avalia que o Brasil evoluiu e que o mercado está mais aberto para a diversidade, mas que ainda há muito a percorrer, politicamente falando.
“Com certeza muita coisa foi conquistada. Apesar desses malefícios que a violência nos proporciona, a gente conseguiu consolidar o nosso grupo, nossa bandeira, de alguma forma para se organizar politicamente, se estruturar socialmente, se comunicar mais”, diz.
Estação Plural e outras histórias
De 2016 a 2018, Mel participou como apresentadora do "Estação Plural", programa da TV Brasil, e pôde experimentar um pouco seu lado como comunicadora, além de aprender mais sobre como se expressar.
O programa recebia toda semana um convidado e tinha entre seus temas a diversidade, os direitos humanos e a cidadania. Além de Mel, eram apresentadores do programa a compositora Ellen Oléria e o jornalista Fernando Oliveira.
“Naquela época, não tinha nenhum programa daquela forma, que fosse formado por uma mulher preta sapatão, um menino gay afeminado e uma travesti preta [...] A EBC [Empresa Brasil de Comunicação que detém a TV Brasil] foi muito visionária em fazer aquele programa, porque foi de fato o primeiro coordenado por pessoas LGBTs na TV aberta.”
A vocalista da Banda Uó também participou como atriz em “A Vida Secreta dos Casais”, série da HBO, como convidada especial, interpretando a personagem Jennifer, a convite de Bruna Lombardi — atriz que participou do Estação Plural.
A vontade de atuar vem de antes mesmo da criação da banda. Mel conta que acompanhava um amigo, Benedito Ferreira, em gravações e festivais, o que a inspirava: “Eu estava sempre junto dessa galera. Estava sempre ajudando, no meio da produção, fazendo alguma coisa, então ali eu acho que já começa a nascer uma vontade.”
Todas essas experiências acabaram por influenciar no hiato da Banda Uó, já que Mel estava à procura de novas oportunidades, tanto musicais quanto em sua vida pessoal.
“Eu queria me experimentar no cinema, mas também queria fazer as minhas peripécias musicais e poéticas também [...] Foi um momento muito importante, não tenho arrependimento da minha parte de ter acontecido”, explica.
Sua amizade com Benedito, em 2020, a levou a Daniel Nolasco, também goiano, que lhe conferiu um papel de maior destaque no longa “Vento Seco”. O filme, de temática LGBTQIAPN+, foi exibido, à época, no festival de cinema de Berlim , na Alemanha .
Carreira solo
Após o anúncio do hiato da Banda Uó, em 2018, além da experimentação no cinema e na apresentação, Mel também investiu na música. Seu primeiro single, “A Partir de Hoje”, lançado em 2020, tem uma letra que explora a vida, os sentimentos e as vontades da cantora.
Mel também interpretou “Mutante”, de Rita Lee, e “Emoriô”, de Gilberto Gil e João Donato. Em “Cardiopulmonar”, lançado em 2022, ela coloca em evidência sua identidade de gênero, misturando música e poesia.
“Essa música coroa esse momento [de autodescoberta] porque não é fácil ser uma travesti sozinha, independente, no meio da cena musical, para trazer as coisas do dia para noite. Elas não caminham junto com as nossas vontades, de forma alguma”, conta.
Mel encara esse momento, entre 2018 e 2024, como um período de grande aprendizado. “E é por isso que eu não me arrependo. Porque eu volto agora com muito mais experiência, muito menos ansiedade, sabendo muito mais quem sou eu”, explica.
Ela reconhece que esse período também não foi fácil para sua carreira, devido a circunstâncias externas e o momento pelo qual passava o Brasil.
“Claro que aconteceu muita coisa, né? Muita água [passou por] debaixo da ponte. O governo Bolsonaro foi um desgoverno total em relação à cultura, [o que aconteceu] bem ali no final da banda. E teve a pandemia [de Covid-19]. Eu apanhei do tempo de uma forma muito tremenda. As coisas ficaram menores e os trabalhos ficaram mais raros”, revela.
Apesar disso, ela considera que seu aprendizado fez esse período valer a pena. “Foi um período muito importante, me amadureceu bastante, me tornou uma cantora melhor, uma artista melhor e uma compositora melhor porque fiquei estudando, não fiquei parada”, conta.
Mel também tem uma história de redescobrimento da própria espiritualidade, que se reflete nas suas músicas. Ela conta que uma amiga, a MC Tha, a levou para um centro umbandista, o que a aproximou de religiões de matrizes africanas, principalmente o Candomblé, que ela frequenta há três anos.
A cantora revela o papel que a religião tem na sua vida: “O da possibilidade de cuidar da minha espiritualidade, diferente de muitas religiões cristãs, que pelo fato de eu ser uma travesti, uma mulher trans, automaticamente eu já estou fora do 'Reino dos Céus'. Então, como é que eu posso continuar servindo ou estando ali ou me alimentando espiritualmente num lugar onde as portas já foram fechadas para mim?”
Ela continua: “O diferente para mim está nas religiões de matriz africana, porque obviamente a gente vai encontrar preconceito , a gente vai encontrar transfobia nesses lugares [...] Mas parece que a pertinência fica outra sabe, o pertencimento fica em outro lugar, ele fica mais num lugar de ‘eu estou fazendo a minha parte para com a minha espiritualidade’.”
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