Indianarae Siqueira e Laerte Coutinho compartilham suas experiências sobre velhice trans
Reprodução/ Instagram, TV Brasil
Indianarae Siqueira e Laerte Coutinho compartilham suas experiências sobre velhice trans

A velhice é uma fase desafiadora, independentemente de quem tem o privilégio de atingi-la. No Brasil, os idosos passam por muitas dificuldades que envolvem preconceito  e em diversas áreas como no acesso ao mercado de trabalho e no sistema de saúde, por exemplo.

Para as pessoas transgênero, esses desafios são ainda maiores considerando que a expectativa de vida média de uma pessoa trans no Brasil é de 35 anos, segundo informações da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra); além do estigma com a comunidade que é ainda muito forte. A velhice, então, se soma a esses desafios e se torna mais uma dificuldade na vida de uma pessoa trans.






Ainda assim, chegar aos 60 anos e ultrapassar esta idade, para a comunidade LGBTQIAPN+ , deve ser considerado uma vitória. Indianarae Siqueira tornou-se ativista da causa trans durante a década de 1980, com a chegada da epidemia HIV e Aids . Ela fundou o grupo de travestis Filadélfia, o primeiro do Brasil a exigir que o nome social  fosse obrigatório no prontuário médico de travestis e transexuais.

Internacionalmente, ela ajudou prostitutas na Suíça a se livrarem de trabalho forçado, custeando aluguel de apartamentos, entre outras medidas, o que tirava essas mulheres das mãos da cafetinagem. Na França, também denunciou redes de tráfico humano e acabou presa pelo seu trabalho ativista — o que a não impediu de atuar de dentro da própria prisão para que travestis fossem tratadas com respeito.

Em 2009 se mudou para o Rio de Janeiro , e de lá seguiu seu ativismo em favor das prostitutas e da comunidade queer. Em 2015 criou a Casa Nem, que acolhe pessoas LGBTQIAPN+ em situação de vulnerabilidade. A instituição tem unidades na capital da cidade e em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Atualmente abriga mais de 50 pessoas.

Outra conquista de Indianarae foi a retificação dos seus documentos para a inclusão do gênero não-binário , em 2022, aprovada pela Justiça — o que a tornou uma das primeiras brasileiras a conseguir o feito.

Em entrevista ao iG Queer  ela diz que se considera pioneira, e espera que sua atuação tenha permitido aos mais jovens viver com mais segurança. “As pessoas transvestigêneres não se veem na velhice, pois não vivemos nossa infância e adolescência. Então ainda não discutimos o envelhecimento dessas pessoas.”

“Nós [ela, Jovanna Baby Cardoso e Keila Simpson — a 'Trindade do Traviarcado', pioneiras na luta trans no Brasil] também estamos no pioneirismo, já que fomos as possibilidades para as próximas gerações existirem com mais segurança [...] Me vejo ocupando um lugar que é importante para o futuro da comunidade. Aos 53 anos, ainda quero viver minha vida, e em breve deixar o espaço ocupado por outras mais jovens e me retirar”, afirma a ativista.

Sua experiência como pessoa não-binária também moldou sua forma de pensar o mundo. “Ao mesmo tempo que sei que fortaleço a não-binariedade também me vejo em um lugar de liberdade, através de uma identidade, ou de uma não-identidade, que te dá várias outras possibilidades sem que você precise escolher [entre os gêneros binários] [...] A não binariedade é libertadora.”

Indianarea Siqueira é uma das ativistas trans mais importantes do país. Fundou em 2009 a Casa Nem, com sede na capital e Baixada Fluminens
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Indianarea Siqueira é uma das ativistas trans mais importantes do país. Fundou em 2009 a Casa Nem, com sede na capital e Baixada Fluminens


Sobre envelhecer, ela revela nunca ter pensado no assunto. “Mas hoje, vendo a nova geração aí empoderada, tampouco nos vemos empoeiradas. Acredito que é muito bom que algumas de nós possamos envelhecer usufruindo de nossas lutas.”

Ela continua: “Que quem chegou seja melhor e honre a memória da luta que organizamos para chegarmos todes onde estamos hoje [...] Nossos corpos estão em processo de normalização para serem naturalizados. E isso, é óbvio, gera conflitos em uma sociedade estruturada no machismo patriarcal hétero e binário. [...] Estamos em todos os lugares e seremos mais ainda se deixarem. E não será ruim. Será melhor!”

“Destruam o capitalismo, sejam veganes, ateístas. Briguem menos, lutem para ampliar os direitos, não reproduzam opressões, defendam o planeta [...] Se libertem das opressões impostas, vivam a vida [...] Vocês não precisam mais lutar tanto. Então aproveitem o tempo para viver mais”, finaliza a ativista se direcionando à geração queer mais nova.



“Conselhos eu tenho mais a pedir do que a dar”

Laerte Coutinho, 72 anos, tem uma trajetória extensa como quadrinista, e consolidou sua carreira por meio de tirinhas, com ênfase nos personagens Overman e Os Piratas do Tietê, famosas pelo humor satírico e perspicaz.

Foi aos 58 anos, com a carreira já consolidada, que a cartunista passou a questionar sua identidade de gênero. A personagem Hugo, criada na época, brinca com os estereótipos de gênero, preferindo ser chamada de Muriel ao longo das tirinhas, em que se veste e se descobre mulher.

Laerte usou do seu trabalho para expressar suas inquietações e dúvidas a respeito de si em várias outras tirinhas, que ficaram tão marcantes quanto as que contam as histórias de Muriel. Depois de se descobrir trans, transformou também seus quadrinhos, que ganharam tons filosóficos, autobiográficos e ainda mais políticos.

Laerte Coutinho: “Eu não me considerava mais alguém dentro da linguagem masculina”
Divulgação
Laerte Coutinho: “Eu não me considerava mais alguém dentro da linguagem masculina”


Em entrevista ao iG Queer  ela reconhece que teve menos dificuldades em sua transição porque estava segura em relação ao afeto familiar, dos amigos e do trabalho.

“As inseguranças que tinha diziam mais respeito à opinião pública. Os episódios que precisei enfrentar não foram tão difíceis — é preciso lembrar que sou uma pessoa branca, de classe média, da área artística”, analisa Laerte que revela também que procurou e recebeu apoio de muitas pessoas trans mais velhas, com as quais mantém contato até hoje.

“Quando eu admiti a possibilidade de me mover na direção da transgeneridade, busquei os lugares virtuais onde as pessoas trans se encontravam e trocavam ideias e informações — encontrei o BCC [sigla para Brazilian Crossdresser Club]”, conta. “Ali conheci pessoas, com experiências parecidas com a minha ou não, de idades bem variadas. Lá conheci a Letícia Lanz, a Marcia Rocha e a Maitê Schneider, com quem vim a juntar esforços em vários projetos depois, como o TransEmpregos.”

Também perguntada sobre se tem algum conselho aos mais jovens, ela elogia o trabalho de pessoas trans pelas redes sociais, e se coloca em lugar de aprendizado diante das novas gerações: “Conselhos eu tenho mais a pedir do que a dar.”









"LGBT+60: Corpos que Resistem"

A experiência de identidade trans de Laerte é contada no documentário “Laerte-se”, disponível na plataforma de streaming Netflix. Outro exemplo de produção que trata das velhices trans é o livro “Velhice transviada”, de João W. Nery (1950-2018), considerado o primeiro transgênero masculino do Brasil. Na obra o autor reflete sobre sua própria velhice como homem trans.

Mais uma produção que tentar trazer visibilidade à fase idosa de vidas trans brasileiras é a websérie "LGBT+60: Corpos que Resistem", dirigida e roteirizada pelo jornalista Yuri Alves Fernandes, do projeto #Colabora. No início deste ano a produção lançou a terceira temporada da websérie.


A produção busca colocar sob os holofotes as experiências de pessoas da comunidade que chegaram à velhice, por meio de episódios focados em entrevistas com convidados. Ela já tem mais de 2 milhões de visualizações nas redes sociais e plataformas digitais.

Na terceira temporada, a ativista Denise Taynáh Leite, de 74 anos; o jornalista Márcio Guerra, de 63; a influenciadora Ana Carolina Apocalypse, de 65; a  drag queen  Luiza Gasparelly, de 60; e o Seu Franco, de 67, compartilham suas vivências e memórias. A experiência de produção Yuri, o idealizador do projeto, a refletir sobre sua própria possibilidade de envelhecer, como um homem cis gay.

Ana Carolina Apocalypse em trecho da terceira temporada da web série 'LGBT+60: Corpos que Resistem'
Divulgação
Ana Carolina Apocalypse em trecho da terceira temporada da web série 'LGBT+60: Corpos que Resistem'


Seus gatilhos para a produção da série foram diversos. Ele conta que percebeu a falta de representatividade de idosos LGBTQIAPN+ na mídia e que a vontade de trabalhar com o assunto o acompanha desde a faculdade.

“Quando eu estava pensando em criar algo, em 2017, uma reportagem sobre idosos LGBT+ me marcou muito. Nela, eles não mostravam os rostos. Eram fotos de planos detalhes. Eu pensei: 'Nossa, até mesmo quando tem espaço sobre a temática, de alguma forma, essas histórias são apagadas por medo do preconceito”, diz o diretor.


“Eu tive mais consciência de que a falta de representatividade na velhice afeta muito a nossa comunidade, cria um abismo enorme entre o nosso presente e o futuro”, diz o jovem jornalista de 29 anos sobre as reflexões que seu trabalho com a temática têm lhe trazido.

“Eu costumo falar: se a gente não consegue se ver na terceira idade, por falta dessa representatividade, como a gente vai imaginá-la? Como a gente vai imaginar que a gente vai chegar, ou até mesmo acreditar que vamos chegar lá, sobretudo para pessoas trans?”, questiona.

jornalista segurando uma claquete de cinema
Arquivo pessoal

O jornalista Yuri Fernandes, de 29 anos, é o idealizador da premiada web série 'LGBT+60: Corpos que Resistem'

Yuri também conta que das dúvidas que surgem sobre a produção da websérie, uma das mais recorrentes é o recorte dentro do tema da velhice trans.

Para muitos, a série deveria tratar sobre a solidão nesta fase da vida, mas para ele, há muitas outras perspectivas que podem ser exploradas.

“Esse é um dos caminhos, mas têm vários outros, não só a solidão. Tem a da construção do amor, da construção da família, da construção da carreira, da realização dos sonhos, das conquistas. Então o que eu tento mostrar com essa websérie é que são inúmeras possibilidades de futuros que nós, enquanto pessoas LGBT+, podemos trilhar.”

As palavras que melhor definem seu trabalho, segundo ele, são a esperança e o orgulho. “Eu sinto que esse projeto traz conhecimento, informação, mas também esperança. Acho que a palavra é essa, esperança. Eu sinto muito orgulho por saber do impacto que ele tem e do que ele ainda pode causar com essa terceira temporada”, finaliza


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