Ocupar espaços é uma das principais reivindicações da comunidade LGBTQIAP+. Naturalmente marginalizada, essa população encontra obstáculos sistemáticos e estruturais para ocupar cargos nas mais diversas áreas, desde o processo de seleção até a convivência no ambiente de trabalho. Cada área, porém, possui especificidades e violências pontuais.
No que diz respeito aos policiais e defensores públicos, muito se discute sobre o que esses profissionais vivenciam dentro das corporações. O processo de autoconhecimento e autoaceitação de pessoas LGBT por si só é bastante complexo, e quando essas questões são levadas para o âmbito profissional, podem se tornar ainda mais delicadas.
Jordhan Lessa , guarda municipal do Rio de Janeiro e homem trans, conta que não foi fácil ocupar o lugar em que está atualmente sendo quem é e reconhece que muitos profissionais abrem mão da carreira por conta dos preconceitos sofridos.
“Precisei superar muitas barreiras e suportar todos os tipos de preconceito institucional. Cheguei a adoecer e pensei em desistir, mas, entre 8 mil guardas, valorizei aqueles que me apoiavam e foram essas pessoas que me deram forças para continuar. Tenho consciência que essa não é a realidade de outros profissionais da segurança pública, pois muitos de nós pedem exoneração ou desistem da vida por completo, tamanha é a violência que nos é imposta”, explica.
Sobre a realidade vivia nos quartéis, o bombeiro militar no interior de São Paulo e homem gay Lucas (nome fictício), diz que a instituição de segurança pública preza pelo bem-estar de todos e pela dignidade dos indivíduos, porém cada profissional possui preceitos que, ao serem exteriorizados dentro deste ambiente, alimenta preconceitos.
“A instituição em si não é LGBTfóbica”, explica. “São os indivíduos que proliferam preconceitos e geram desconfortos. Dentro do quartel em que eu estou, apenas eu sou assumido entre mais de 30 pessoas e os demais possuem pensamentos mais retrógrados, então há um impasse.”
O dia a dia na segurança pública
No âmbito da segurança pública, o delegado civil de Aracaju, Mário Leony , cofundador da Renosp LGBT , coletivo que luta contra a LGBTfobia dentro e fora das instituições de segurança pública, conta que as pessoas LGBT sofrem muita discriminação de maneira geral, especialmente dentro do quartéis, e pontua a importância da desmilitarização da segurança pública.
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“O que nós queremos é desvincular os policiais militares das Forças Armadas. A Constituição Federal prevê que os policiais e bombeiros militares são forças auxiliares às elas, mas essa lógica não tem sentido. As Forças Armadas existem para assegurar a soberania nacional em casos de calamidade, como guerras, o que é muito diferente do nosso papel na segurança pública, que pode ser resumida à mediação de conflitos no cotidiano”, esclarece. “Essa abordagem de guerra das forças armadas trazidas para a realidade dos nossos policiais coloca os indivíduos que compõem as minorias sociais como os inimigos, o que intensifica as violências que já sofremos por sermos quem somos e expõe os policiais LGBTs a todo o tipo de assédio moral”.
Os preconceitos difundidos no meio da segurança pública influenciam diretamente na receptividade e convivência dos policiais e defensores públicos LGBTQIAP+ no ambiente de trabalho. Lucas diz que teve sorte de encontrar amigos em seu meio, mas reconhece que nem sempre é assim que funciona.
“Eu encontrei amigos incríveis no Corpo de Bombeiros que me acolheram e me trataram muito bem, mas em 90% dos casos, quando se chega a um quartel sendo LGBT assumido, a tendência é que as pessoas se afastem. É aquela velha história: é preciso mostrar sua capacidade para que as pessoas te respeitem”, lamenta.
Sobre a necessidade de autoafirmação, Jordhan reforça o quanto essa questão é rotineira e faz parte do processo pelo qual esses indivíduos precisam passar para conquistarem o reconhecimento dos colegas de trabalho.
“Temos que provar o tempo todo que somos tão capazes e profissionais quanto qualquer um dos nossos pares. É desgastante demais termos que lutar o tempo todo para legitimar as nossas existências tanto como pessoas quanto como agentes da lei”, pontua.
Mário também destaca que muitos policiais LGBT são submetidos a Processos Administrativos Disciplinares (PADS), instaurados com desvio de finalidade para oprimir e retaliar esses profissionais. Ele elenca alguns pontos importantes para garantir que a vivência de policiais LGBTQIAP+ seja mais saudável e segura dentro dos quartéis e das instituições em geral. Além da desmilitarização, ele pontua a importância do investimento na formação permanente dentro das academias para que os policiais estejam atualizados para todas as alterações legislativas e conquistas LGBTQ+ nas jurisprudências, além de atender às recomendações sobre como respeitar as identidades LGBT.
“É importante que seja levada informação a esses policias dentro das academias de polícia, no momento da formação. Muitas vezes os profissionais agem por puro preconceito no momento da atuação e, para elas, o ideal é que sejam acionadas as corregedorias. Para outros, os comportamentos abusivos e os preconceitos vêm da falta de informação, e o esclarecimento e a propagação de informação para desconstruir essas posturas deve partir dos gestores, pois essa é uma responsabilidade deles”, esclarece.
Os novos horizontes dos defensores públicos LGBTQIAP+
Lucas conta que a resistência nesses locais está se dissipando com a chegada de pessoas novas, mas os membros mais velhos apresentam pensamentos mais retrógrados. De acordo com ele, as discussões dentro da instituição estão se expandindo.
“Eu comparo a realidade atual com a de 5 anos atrás. Hoje as coisas já estão bem diferentes; dentro dos quartéis existem algumas conversas sobre diversidade que nunca aconteceriam no passado. A realidade está mudando, mas ainda há muito para melhorar. Existem inúmeros casos de pessoas LGBT saindo das corporações por não aguentarem a pressão de trabalhar com pessoas que possuem um pensamento contrário à sua existência”, explica.
Paulo Vaz , homem trans, gay e policial, comenta sobre a evolução dos debates LGBTQIAP+ nas corporações e explica que há três anos, mais ou menos, os boletins de ocorrência eram majoritariamente feitos com os nomes que constavam nos documentos de identidade, o que excluía vivências trans, por exemplo. Ele conta que, no caso dele, não teve grandes problemas trabalhando neste ambiente.
“Acredito que ter entrado na área já com os documentos retificados e hormonizado me ajudou bastante. Como policial, em termos de visão macro quanto à área, cotidianamente falando, uma das coisas que o Brasil precisa ajustar é o seu protocolo, que vem de uma burocracia engessada e demorada. Atualmente, os sistemas estão mais atualizados, e a formação de novos policiais também. Na última quinta-feira, inclusive, foi inaugurada a ' Delegacia da Diversidade On-line ', feita para melhorar a eficácia dos crimes contra LGBTs”, finaliza.