As discussões acerca da religião e a relação com a comunidade LGBTQIA+ é ampla e polêmica. Enquanto alguns grupos discutem a importância da diversidade dentro de templos e igrejas, como a Rede Nacional de Católicos LGBT, outros líderes religiosos constantemente condenam relações homoafetivas ou promovem a “cura gay”, afirmando que, segundo a Bíblia, este comportamento não é moralmente correto.
De acordo com uma pesquisa Datafolha, mais da metade dos brasileiros são adeptos de religiões cristãs, sendo que 50% da população é católica, 31% é evangélica, 10% não tem religião, 3% é espírita e 2% segue religiões de matrizes africanas, como o candomblé e a umbanda. Entre os dogmas citados, os seguidores que mais realizam ataques aos LGBTQIA+ são justamente os que integram o cristianismo.
Sérgio Ribeiro Santos, mestre e doutor em Teologia e História, explica que o cristianismo como religião não é algo uniforme, visto que existem várias manifestações e interpretações sobre ele.
“Em primeiro lugar, podemos definir uma religião cristã como uma religião monoteísta independente da vertente dela, ou seja, a crença de que há somente um Deus e que Jesus Cristo é o filho de Deus. Alguns vão discutir o nível dessa filiação ou dessa divindade de Jesus, mas os seus ensinamentos centrais buscam de alguma forma interpretar e aplicar os ensinamentos de Jesus Cristo”, diz.
O especialista ainda discorre sobre os motivos que levam alguns líderes cristãos a reprovarem a comunidade LGBTQIA+. Ele salienta, no entanto, que o cristianismo não é homogêneo, portanto não é possível generalizar as crenças de todas as religiões e vertentes que fazem parte dele. O mesmo pode ser dito de religiões indígenas, de matriz africana ou budistas, por exemplo.
“Dentro do cristianismo e das expressões que se tem dele temos comportamentos diferentes. De um modo geral, ou historicamente e tradicionalmente, o posicionamento com as relações LGBT surge exatamente da própria interpretação bíblica. Então, um ponto fundamental é exatamente o relato da criação, quando Deus cria a humanidade a partir de um homem e de uma mulher. Ou o próprio povo de Israel na antiguidade porque existe uma condenação explícita. Quando se é colocado um padrão familiar, você tem uma referência ao que foi colocado logo no início da criação. Aquilo que seria uma base para a moral ou para a sociedade”, pontua.
Para explorar os demais pontos de vista e a receptividade de outras religiões com relação à população LGBTQIAP+, o iG Queer conversou com representantes do espiritismo, umbanda e budismo para esclarecer como essas vertentes enxergam a sexualidade e a identidade de gênero.
Espiritismo
Moacyr Vezzani Neto, educador e palestrante espírita, explica que o espiritismo em si não possui nada registrado oficialmente que se refira à comunidade LGBTQIAP+, justamente porque a sexualidade e identidade de gênero é algo que, na perspectiva dessa religião, não são considerados fatores determinantes da índole ou do merecimentos de coisas boas ou ruins.
“Ele [o espiritismo] fala de pessoas. E quando qualquer pessoa acha que as pessoas LGBTQIA+ tem menos valor ou são diferentes, ou que precisam de um tratamento diferente, essas pessoas podem ter entendido tudo, mas não entenderam o espiritismo e muito menos o cristianismo. Porque nem o espiritismo, tampouco Jesus Cristo, faz qualquer menção a ter algum tipo de preconceito ou intolerância, muito pelo contrário: Jesus acolhia a todos”, explica.
Moacyr explica também que normalmente, quando se leem textos espíritas que se referem à sexualidade ou identidade de gênero, não são os textos originais, e sim produções influenciadas por opiniões pessoais. Ele ainda destaca os principais pontos pregados pelo espiritismo.
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“O espiritismo fala de amor, caridade, benevolência, indulgência e de uma série de questões que faz com que todos nós possamos progredir moralmente, espiritualmente, para ter uma vida melhor. Agora, qual a relação da orientação sexual ou o gênero que a pessoa se identifica, como fato dela ser amorosa, caridosa, bondosa, tolerante, paciente, indulgente, benevolente? Não tem. E se você encontrar algum texto em relação à doutrina espírita, se posicionando em relação a isso, são opiniões pessoais”, esclarece.
Ciça Cintra, médium e criadora de conteúdo espírita, por sua vez, pontua ainda que o espiritismo não é contra quaisquer tipos de união e que o amor vem acima de tudo. “A importância é que o amor é a chave para tudo. Quando aceitamos as pessoas e as amamos, o que seria extremamente difícil, se torna um pouco mais fácil. Quando as pessoas entenderem que Deus é amor sem julgamentos, sem distinção de raça, cor, religião, gênero, sexo e sexualidade, aí sim vamos conseguir passar realmente para a regeneração”.
Budismo
Ícaro Matias, da Rainbow Sangha Brasil – um grupo LGBT+ de budismo –, ao ser questionado pelo iG Queer sobre a visão desta religião acerca da comunidade, esclarece que Buda jamais recriminou a homossexualidade. “De fato, as regras condenavam muito mais o sexo heteronormativo que o contrário. Para os leigos, entretanto, o Buda deixou regras de conduta sexual as quais precisavam ter em mente o sofrimento do outro. Qualquer ato sexual que tivesse como consequência o sofrimento de si ou do outro, deveria ser evitado e era julgado como imoral ou errado. Desta forma, podemos colocar questões como adultério, estupro ou até mesmo você colocar a si próprio em situações de risco envolvendo sexo”, explica ele.
Já com relação à identidade de gênero, Ícaro conta que o Budismo em si defende muito que não existe um “Eu” fixo, uma vez que o ser se modifica constantemente. Ele também explica que a ideia de um "eu fixo", ou seja, algo parecido com identidade, não existe e pode ser também considerada algo que pode levar ao sofrimento a depender do apego que temos a ideia deste nosso Eu que acreditamos ser fixo/imutável.
"Sendo assim, para o budismo, existem vários ‘eus’, que mudam a todo o instante. O eu de ontem não é o eu de hoje, que não será o eu de amanhã. E essa ideia de impermanência e insubstancialidade do Eu, ou seja, um Eu vazio de significados, se aproxima muito do conceito moderno de performatividade de gênero postulado pela teórica Judith Butler. Sendo assim, hoje muitos LGBTs+ têm se aproximado do budismo como um meio de aceitar sua condição queer e muitos budistas hoje têm feito uma leitura queer do budismo, o que hoje podemos chamar de Dharma Queer”, diz.
Ao ser questionado sobre relatos que já ouviu de pessoas LGBTQIAP+ que não foram bem recebidas em outras religiões, Ícaro explica que esse tipo de transtorno é bem comum, especialmente em vertentes ligadas ao cristianismo, catolicismo e religiões protestantes. Por outro lado, ele destaca a importância de não generalizar estas abordagens, uma vez que dentro delas também existem movimentos de acolhida a pessoas LGBT.
“Já ouvimos diversos relatos de opressão religiosa contra LGBTs, principalmente das várias vertentes cristãs, católicos ou protestantes. Uma vez que o cristianismo é majoritariamente a religião brasileira, é mais comum ouvir este tipo de relato vindo destas religiosidades. Mas ao mesmo tempo sabemos que existem alguns movimentos pró-LGBT+ dentro do cristianismo, principalmente entre os protestantes”, expõe.
Sobre a importância do budismo para a comunidade LGBT, Ícaro ressalta principalmente a liberdade dentro da religião, uma vez que Buda não condena as pautas abordadas pela comunidade. “A principal importância do budismo é dar sentido e propósito à vida dos LGBTs+, uma vez que para o budismo, toda e qualquer orientação sexual e expressão de gênero é possível e bem-vinda. Aos olhos do Buda, o caminho do Dharma é para todos, acolhe a todos. Não existe impedimento para a iluminação por causa de uma certa orientação sexual ou identidade de gênero. Não existe, nos discursos do Buda, nada que recrimine os LGBTs”, conclui.
Umbanda
Andreia de Oxum, youtuber e influencer umbandista, quando questionada pelo iG Queer sobre como a umbanda enxerga a comunidade LGBTQIAP+, ressalta que o que mais se preza neste meio é a igualdade de acolhimento e cuidado. “A umbanda fala que todos nós somos iguais perante ao sagrado, independente de cor, raça, etnia, orientação sexual ou gênero; todos somos filhos do mesmo Deus e que todos devem ser amados, respeitados e acolhidos”, começa ela. Andreia continua a discorrer sobre o assunto pontuando o quanto as problemáticas sociais (machismo, racismo, homofobia, etc.) estão enraizados na sociedade, e, em vista disso, ressalta a importância de mudar aos poucos essas concepções.
“A gente sempre viveu num regime machista, homofóbico e racista. Tudo isso está enraizado na sociedade até hoje. As famílias vieram educando seus filhos e formando seres humanos assim. Enquanto a sociedade não mudar esse pensamento preconceituoso e passar a educar seus filhos para serem pessoas livres de preconceitos, essa cadeia de ódio nunca vai acabar. A mudança só depende de nós mesmos para termos um futuro melhor”, diz.
Para além do acolhimento, Andreia ressalta que um dos princípios da umbanda é lutar contra a intolerância religiosa em si, além dos direitos iguais. “A umbanda é mais que uma religião, é uma família que luta contra a intolerância religiosa que luta pela paz pelos direitos iguais e trabalhamos para ajudar a quem precisa em nome da caridade por um mundo melhor”. Para concluir a explicação, ela dá o veredito: “A umbanda é uma religião de acolhimento. Se não tem respeito, amor e acolhimento, não é umbanda”.