Lila e Aline se consideram lésbicas e adotam uma identidade mais 'masculinizada' na visão de senso comum, conhecida como 'bofe' ou 'desfem'
Reprodução/Instagram 07.03.2024
Lila e Aline se consideram lésbicas e adotam uma identidade mais 'masculinizada' na visão de senso comum, conhecida como 'bofe' ou 'desfem'



As lésbicas “bofe”, chamadas também de lésbicas “desfem” (abreviação para a palavra "desfeminilizada"), são aquelas que desafiam os padrões de gênero e feminilização impostos pela sociedade patriarcal e machista.

Muitas vezes, elas têm cabelo curto, usam roupas largas, fazem pouco ou nenhum uso de maquiagem e têm estilo mais despojado, que se afasta do ideal de feminilidade esperado da mulher.

Aline Custódio, junto da sua esposa, Alessandra Oliveira, administram a "Maternidade Sapatão", página no Instagram em que compartilham a rotina com os dois filhos, Jamal e Jawari.

Aline, que adota uma aparência desfeminilizada, se considera "bofe" desde a infância, mas só aos 14 anos teve coragem de parar de tentar se adequar ao padrão feminino vigente.

"Hoje tenho 27 anos, imagina como eram as coisas há 13 anos? Eu já lidava com o racismo na escola e logo depois comecei a lidar com a lesbofobia. Por mais que tenha sido difícil, foi também um processo de libertação, de realmente sair do armário", conta.



Ela revela que passou por dificuldades no mercado de trabalho, e as atribui ao preconceito . "O mercado de trabalho não quer nos dar oportunidades dignas que de fato nos acolha e sem a gente ter que entrar dentro de um padrão", denuncia.

"Quantas sapatonas pretas e periféricas estão nas linhas de frente das grandes empresas? Quantas lésbicas 'desfem', assumidamente lésbicas, estão trabalhando dentro dos consultórios médicos, escritórios ou até mesmo como uma simples recepcionista? Nenhuma", desabafa a influenciadora.

Ela também comenta sentir medo, levando em conta a sua realidade com Alessandra e os filhos.

"Acredito que as maiores dificuldades que nos cercam [como uma família], é que além de sermos um casal de mulheres, nós também carregamos o recorte de raça e classe. Ser mãe preta de quebrada são 'outros 500', ser mãe de dois meninos pretos em um país que simplesmente mata meninos e homens negros é aterrorizante", revela.

Lila Santiago, atriz e arte-educadora em São José do Rio Preto, interior de São Paulo , é negra e lésbica, e sente que os dois preconceitos, tanto o racismo quanto a LGBTfobia , incidem de forma diferente, porém combinada, em sua vida.

A educadora também se considera uma pessoa não-binária , contudo, mesmo assim, devido a sua expressão de gênero, ainda é vítima de preconceitos muito semelhantes aos enfrentados por mulheres cis lésbicas “bofes”.

“[Minha identidade] nunca foi uma escolha, eu apenas me expressava assim, sempre buscando uma 'neutralidade', pouco feminina e nunca masculina. Contudo, o meu jeito de ser sempre fez com que as pessoas tenham uma leitura de Lila como uma sapatão masculinizada”, conta.

Ela acredita que essa visão parte de leituras estereotipadas da realidade por parte da população em geral. Perguntada sobre como é lidar com a realidade de “duplo preconceito”, Lila enfatiza a incidência de ambos os estigmas, — o racismo e a LGBTfobia —, em seu cotidiano.

“É uma linha tênue entre o racismo e a LGBTfobia, porque a gente não é expulsa da escola por ser negra, mas é excluída por ser lésbica; em casa não somos expulsas por sermos negras, mas somos por sermos lésbicas”, explica.

Ela continua: “Hoje, as pessoas ainda se assustam quando me afirmo negra e não-binária porque, para um país racista, eu ainda sou apontada pelo tom da pele, e para um país LGBTfóbico, eu não sou compreendida como não-binária, mas sempre como a que quer parecer ou ser homem”, conclui.

Identidade 'bofe'

A Dra. Profª. Suane Soares, pesquisadora da UFRJ, durante audiência pública da CPI do Feminicídio
Suellen Lessa/ Alerj
A Dra. Profª. Suane Soares, pesquisadora da UFRJ, durante audiência pública da CPI do Feminicídio


Suane Soares, formada em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é pesquisadora sobre o tema, e explica que a identidade lésbica é inseparável do termo “bofe”.

“É difícil a gente falar sobre reconhecimento de uma identidade desfeminilizada em qualquer contexto, porque falar sobre lésbicas é falar sobre 'bofes'. Não tem como falar sobre lésbicas sem falar sobre 'bofes'”, explica.

Para Suane, a definição de lésbica, além de representar a sexualidade, também diz respeito a mulheres que desafiam a ordem vigente. “Lésbicas não foram socializadas dentro desse papel de subserviência [ao homem], ao contrário, foram construídas a partir de um papel de autodeterminação.”

“As lésbicas 'bofes' são aquilo que a gente vai entender como uma expressão, uma explicitude desse processo [de desafio à ordem vigente]. São pessoas que são explicitamente e cotidianamente rompidas [confrontadas] com esse lugar, e portanto, são pessoas que se tornam ícones dessa luta”, diz.





Orgulho de ser 'desfem'

Para Aline Custódio, da Maternidade Sapatão, a identidade lésbica e a consciência diante dela a trouxe liberdade, apesar das dificuldades e estigmas. "Ser 'desfem' não me afeta em nada, inclusive amo! Minha vida mudou, me sinto livre, me sinto potente", conta.

Ao relembrar sua formatura do Ensino Fundamental, em que foi influenciada pela mãe a usar um vestido, — o que lhe causou uma má lembrança —, ela expressa o desejo de realizar uma nova formatura, agora, sem amarras.

"Hoje tudo o que eu mais quero é ter outra formatura só para usar qualquer roupa, menos uma roupa dita feminina. Para falar a verdade, as únicas pessoas afetadas pela minha falta de feminilidade são [as da] sociedade preconceituosa e patriarcal que a gente vive", afirma.

Lila também encara sua identidade como uma forma de libertação: "Como Audre Lorde sabiamente escreveu: 'Eu não sou livre enquanto outra de mim não for, mesmo se suas correntes forem diferentes das minhas'".

"Não temos uma luta de um tema só, porque não vivemos vidas de um só tema. Nossas experiências são múltiplas e com vários recortes”, finaliza.

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