Michele Seixas e Paola Ferreira contam como os termos direcionados a lésbicas atravessam a vida delas
Colagem/iG Queer/Acervo pessoal
Michele Seixas e Paola Ferreira contam como os termos direcionados a lésbicas atravessam a vida delas

“O L está na frente na sigla, mas, infelizmente, a letrinha L, a  comunidade lésbica do Brasil, as mulheres lésbicas são ainda as únicas que não têm nenhuma política pública específica, direcionada somente para nós”, afirma Michele Seixas, 37, assistente social e especialista em direitos humanos, gênero e sexualidade.

A invisibilidade de mulheres lésbicas na comunidade LGBTQIAPN+, as dificuldades que enfrentam no dia a dia, entre outras problemáticas, faz com que muitas delas não se sintam reconhecidas e respeitadas de maneira digna, tanto social quanto politicamente. Entre as problemáticas, uma delas são os termos relacionados à comunidade lésbica  no Brasil, desde xingamentos a reconhecimento de violências e a nomenclatura correta para um relacionamento entre duas mulheres. Para quem está fora da comunidade, pode parecer irrelevante, mas para quem está dentro, é algo extremamente importante.

A fotógrafa Paola Ferreira, 21, conta que os xingamentos lesbofóbicos chegaram na vida dela antes de se reconhecer como uma mulher lésbica: “Infelizmente, já passei por algumas situações assim e já vi muitas amigas passarem também. Mas algo que me marcou muito foram comentários na minha infância dizendo que eu era ‘maria-macho’ acompanhados por caretas, só pelo fato de eu gostar de brincadeiras e vestimentas socialmente ditas masculinas”, afirma Paola.

Isso fez com que ela parasse de usar as roupas que gostava por um tempo para se proteger. Até as brincadeiras que praticava quando criança ela abdicou para não ser mais alvo.

Sapatão, sapatona, fancha, caminhoneira, maria-macho, mulher-homem, machona e tantos outros termos foram usados, e ainda são, para estigmatizar mulheres lésbicas. Porém, graças ao movimento lésbico brasileiro, muitos deles foram reapropriados pela própria comunidade.

“Eu só fui ter noção que os termos, principalmente sapatão, foi ressignificado e que para nós, sapatonas, ele não é um xingamento quando eu entrei de fato no movimento de mulheres lésbicas”, completa Michele, que também coordena a área de política nacional na Articulação Brasileira de Lésbicas (ABL) e é diretora-executiva do Grupo de Mulheres Felipa de Sousa e Instituto Brasileiro de Lésbicas.

Ressignificados internamente, os termos só devem ser  usados entre as mulheres lésbicas. A partir do momento que uma pessoa que não faça parte da comunidade lésbica use, sobretudo com um teor negativo, vira uma violência verbal lesbofóbica, mesmo que seja uma pessoa que faça parte de outra letra da sigla GBTQ+ (gays, bis, transgêneros e queer).

Assim como Michele, Paola também só percebeu que os termos usados como xingamentos foram ressignificados quando começou a seguir mulheres lésbicas nas redes sociais e consumir conteúdos lésbicos/sáficos.

“Eu vi algumas mulheres que tinham a aparência que eu gostaria de ter usando termos como ‘desfem’ [que significa desfeminilizada], e percebi que realmente há alguns termos que são muito pejorativos, como ‘maria-macho’, ‘bofinho’, entre outros. Estes são termos ruins, pois associam as mulheres lésbicas a homens, e nós não queremos isso, apenas não queremos performar feminilidade. Termos como ‘desfem’ caem muito melhor para nós”, completa Paola, que enfatiza também que existe alguns termos que são sempre dirigidos às mulheres lésbicas, sobretudo as não femininas: “Dificilmente é dito de uma forma agradável por pessoas de outras orientações sexuais”.

Os termos “desfem” e “fem” buscam retratar as mulheres lésbicas "femininas” e as "não femininas”. Paola se afirma como uma mulher lésbica desfem, já Michele reconhece que nunca foi vista como uma mulher lésbica dentro dos padrões sociais; por isso, abarca o lado fem. “Como eu não performo o que eles acham que é o padrão do que é ser lésbica, eu tenho a dita passibilidade”.

A estigmatização entre as mulheres lésbicas fem e desfem também ganha pesos diferentes. Como Paola já performava uma certa fuga da feminilidade, essas violências lesbofóbicas disfarçadas de piadas atravessaram a vida dela mais cedo.

“Era sempre associando a forma como eu me vestia e na maioria das vezes de uma forma ruim. Eu me retraí por muito tempo, porque não queria ser algo ruim como insinuavam. E só quando eu cresci que percebi que gostar de outra mulher não era algo ruim, que é algo lindo, normal, natural e que eu só seria feliz com uma. Foi quando comecei a me aceitar.”

Já Michele conta que percebeu sua sexualidade por meio de uma amizade próxima que teve com uma amiga. Ela pôde ter seu momento de descoberta de maneira mais íntima e sem atravessamentos das violências lesbofóbicas. Todavia, seja uma desfem ou fem, todas são vítimas de um ideal heteronormativo que não contempla as vivências lésbicas.

“Quando uma menina muito feminina diz que é lésbica, as pessoas sempre vão esperar que ela apareça com um homem a qualquer momento e sempre invalidam a sexualidade dela. Já as mulheres não femininas, as pessoas sempre vão ter a expectativa de que ela assuma o papel de um homem dentro da relação, assim como as relações heteronormativas, que somente ela faça as coisas sexuais, que ela leve flores, compre presente, abra a porta do carro etc”, completa Paola.

A utilização dos termos corretos

“As pessoas de fora da comunidade dificilmente sabem disso, dificilmente se esforçarão para saber dessas informações. Por isso, se ainda forem usar esses termos da forma pejorativa que sempre usaram, e com o mesmo peso que costumava ter, não é adequado que digam. Acho que o primeiro passo é passar a chamar a gente de lésbicas. Por mais legal e importante que seja ter outros termos associados a nós, somos lésbicas acima de tudo”, compartilha Paola.

Michele argumenta que é preciso uma mudança jurídica mais eficaz para de fato haver mudanças, pois não há nada que as lésbicas possam fazer para que as pessoas parem de usar termos lesbofóbicos para se referir a elas. “Se não tem uma política pública de combate à lesbofobia, ao lesbocídio [assassinato de lésbicas], não tem campanhas contra a violência lesbofóbica, a gente não tem o que fazer. É como o racismo, não é um problema de pessoas pretas combater o racismo, mas da sociedade, da branquitude”.

Além disso, Michele pontua a importância da utilização do termo correto quando as vítimas de violência foram as lésbicas. “Eu creio que usar os termos corretos para tipificar as violências sobre os nossos corpos seja de suma importância; uma vez que usam o termo homofobia, você direciona somente a homens gays. E a  lesbofobia é para nós, as violências que nós mulheres lésbicas sofremos. A gente ainda se depara com esse apagamento. Até para isso tem a invisibilidade das nossas demandas”, afirma.

Termos usados para xingamentos devem ser abolidos do vocabulário de pessoas que não façam parte da comunidade lésbica. E até dentro é preciso usar com consciência, já que nem todas as  vivências lésbicas são iguais. Quando a violência for direcionada para essa comunidade, é sempre importante pontuar que as vítimas foram as mulheres lésbicas, e não abarcar tudo dentro da homofobia, como também ocorre com as mulheres trans, que sofrem transfobia, e pessoas bi, que sofrem bifobia.

Palavras que coloquem as mulheres lésbicas, sejam elas fem ou desfem, como alguém de identidade de gênero masculina também devem ser evitadas, tanto dentro quanto fora da comunidade, já que identidade de gênero é diferente de orientação sexual. Dizer que uma mulher lésbica é “machona”, “bofinho” etc é uma violência dupla, por atacar não só sua orientação, como também sua identidade de gênero enquanto mulher.

Além disso, outro debate que surge é acerca do uso do termo sáfico, que evidencia um relacionamento entre duas mulheres. Mas, não necessariamente ele é adequado quando a relação é de fato com duas mulheres lésbicas, sendo sempre preferível usar com mulheres bissexuais para também não apagar a sexualidade delas.

O termo “sáfica/sáfico” surge de uma ilha na Grécia antiga, a ilha de Lesbos e tem à frente a poetisa Safo como figura, pois ficou conhecida por seus poemas que exploravam temas como o amor entre mulheres, sociedade e gênero. Paola expõe seu ponto de vista e afirma ser importante ter um termo que abrange um casal de mulheres, em que uma das duas, ou as duas, não gostem apenas de mulher. 

A palavra sáfica surge como um termo guarda-chuva, pois pode-se dizer que lésbicas são sáficas do mesmo jeito que bissexuais e outras orientações sexuais que sentem atração por outras mulheres, mesmo que não exclusivamente.

Já o termo lésbica é entendido como uma mulher que se sente atraída exclusivamente por outras mulheres. Por isso, algumas pessoas preferem usar o termo “relacionamento sáfico” a “relacionamento lésbico” justamente porque não é possível saber se uma delas é bissexual.

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** Julio Cesar Ferreira é estudante de Jornalismo na PUC-SP. Venceu o 13.º Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão com a pauta “Brasil sob a fumaça da desinformação”. Em seus interesses estão Diretos Humanos, Cultura, Moda, Política, Cultura Pop e Entretenimento. Enquanto estagiário no iG, já passou pelas editorias de Último Segundo/Saúde, Delas/Receitas, e atualmente está em Queer/Pet/Turismo.

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