A Rebelião de Stonewall
, que ocorreu dia 28 de junho de 1969, em Nova York, Estados Unidos, originou-se após uma invasão policial no bar Stonewall Inn, muito frequentado pela comunidade LGBT da região. Graças a este evento, a organização política e social da comunidade começou a tomar forma no mundo todo em prol de difundir as necessidades e marginalizações vivenciadas por esta parcela da população.
De lá para cá, as demandas da comunidade se consolidaram e muitas ainda não foram devidamente sanadas, embora seja possível apontar alguns avanços. Contudo, o que não muda é o fenômeno de “sair do armário” – se assumir. Este é um processo que marca a vida e a história de qualquer pessoa LGBTQIAP+, pois revelar para a família que ela possui uma sexualidade ou identidade de gênero que diverge da norma hétero-cis é o mesmo que arriscar o pouco de estabilidade que permanecia vigente na vida destes indivíduos.
Em decorrência desse fenômeno, a expulsão de casa e a falta de amparo familiar apresenta risco real, ou seja, ser LGBTQIAP+ no país representa a perda de muitos pontos de apoio – isso na melhor das hipóteses. De acordo com o dossiê do Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil de 2022, o número de mortes violentas da população LGBT cresceu 33% em 2021, sendo a maior parte das vítimas mulheres trans e travestis e homens gays. Além disso, no ano passado, o Brasil registrou a média de uma morte LGBT a cada 27 horas.
Para aprofundar como se assumir e se colocar perante à sociedade como uma pessoa LGBTQIAP+ é um processo por vezes doloroso e que exige muito do psicológico dessa população, o iG Queer colheu diferentes relatos de membros da comunidade que se dispuseram a compartilhar as próprias trajetórias.
A negligência por parte da Justiça
“Desde a adolescência, eu sabia que era diferente. Tinha pensamentos e desejos diferentes do que era considerado ‘normal’. Eu olhava e desejava as meninas. Meu sentimento pelos meninos era de amizade, queria ser livre como eles: correr, cair, andar de bicicleta, subir em árvore, ralar o joelho. Passei minha adolescência reprimindo quem eu era. Tive alguns relacionamentos, todos eles tóxicos, abusivos e sempre achei que o ‘problema’ era eu, que eu quem não servia para me relacionar com os homens. Me tornei adulta, casei com um homem, me tornei mãe, mas ainda faltava alguma coisa.
Não estava sendo eu mesma. Apesar de ser feliz por ter realizado o sonho da maternidade, me sentia incompleta. Até que conheci uma moça lésbica assumida no trabalho e todas aquelas sensações da minha adolescência, que estavam bem guardadas, voltaram com força. Ela começou a me rodear, conversar… vivia me enchendo de elogios. Até que um dia ela me roubou um beijo e, naquele momento, minha vida mudou completamente.
Enfim entendi a mim, aos meus desejos e principalmente o motivo pelo qual me sentia tão incompleta: aquele beijo ressignificou cada momento que eu tinha vivido. A partir daí, nada foi fácil: apanhei e fui estuprada pelo meu então meu marido. Cheguei a ir até a delegacia da mulher para prestar queixa e fui atendida por um homem que disse: ‘Você não apanhou à toa. Certeza que você não cumpriu com algum dever enquanto esposa’. Resultado: queixa arquivada.
Fiz um aborto, pedi o divórcio e, por não aceitar, meu ex-marido pediu a guarda integral da nossa filha, alegando que meu ‘estilo de vida’ oferecia risco de morte para ela. Ele, com uma situação financeira abastada e distribuindo dinheiro para qualquer pessoa que depusesse contra mim, ganhou na justiça – a justiça que tira uma filha de uma mãe por puro preconceito, uma criança que ainda mamava no peito.
Meu romance com a moça que me fez entender quem eu era não durou muito, mas foi o suficiente para que eu começasse um movimento de ser quem eu era para que minha filha se orgulhasse de mim e que ela pudesse ser e se relacionar com quem quisesse.
Quase 12 anos depois, após muito choro, distância e vendo minha filha apenas em fins de semana – decisão tomada pelo juiz preconceituoso que alegou que ‘viver do jeito que eu tinha escolhido traumatizaria minha filha, então era melhor que ela tivesse pouco contato comigo’ –, tenho orgulho da mulher que me tornei e dos valores que consegui passar para a minha pequena.
Minha filha e eu temos uma relação incrível de mãe e filha, de amigas. Ela respeita quem eu sou e, mais do que isso, respeita todas as pessoas julgadas diferentes por não seguirem o padrão heteronormativo. Inclusive, ela não admite qualquer tipo de preconceito e defende as pessoas e ensina as outras sobre não agir de forma violenta. Nosso cotidiano foi restabelecido e hoje eu sou mais feliz: sou mulher, sou mãe e sou lésbica”.
Carol Amaro, mulher lésbica
Falta de amparo e as consequências quanto a saúde mental
“É no mínimo estranho o conceito de se assumir. Isso é intrínseco à população LGBTQIA+, já que ninguém espera que um indivíduo heterossexual e cisgênero se assuma. O fato de se assumir gera um período muito grande de estresse, ansiedade e medo, já que a sociedade não está preparada, não cria indivíduos para serem quem eles querem ser, mas estabelece papéis bem definidos desde o nascimento.
Se assumir é declarar para toda uma sociedade machista e falocêntrica que você não seguirá o que foi treinado para seguir desde o seu nascimento; é destruir os sonhos de seus pais, entrar em um mundo novo onde nada nos prepara, dominado pelo preconceito e pelo fundamentalismo.
Eu passei por essa situação duas vezes: quando descobri minha orientação sexual e quando descobri minha sexualidade – sim, são coisas diferentes. No ápice da minha adolescência, comecei a perceber desejos sexuais por pessoas do mesmo sexo. O sentimento de atração que havia conseguido ignorar com muito sucesso até então, se tornava cada vez mais forte, de uma forma que não conseguia mais disfarçá-lo.
Foram meses de muita luta, medo, falta de compreensão e pensamentos suicidas. Em 2005, as pautas LGBTQIA+ não eram tão difundidas, a internet começava a tomar forma e não tínhamos tanta informação como temos atualmente. Lutava para tentar me entender e aceitar que não havia nada de errado comigo. Tinha medo de não receber apoio e de ter todos os preconceitos legitimados no seio da minha família.
Foi então que me apaixonei. E como todo adolescente, achei que seria para a vida. A decisão de contar aos meus pais e à minha família veio. Lembro-me de chegar para cada um particularmente, falar ‘eu sinto atração por homens’ e esperar a pancada. Essa veio de muitos lugares – primos, tios, pai. Ouvi muitas sugestões de castidade, de ter tempo de sobra para pensar, de estar sendo influenciado por pessoas que nem conhecia. Mas nem tudo foi ruim. Lembro-me também de minha mãe demonstrando total apoio: ‘Quero que seja feliz, independentemente de quem estiver do seu lado’, disse ela. E, assim, eu me assumi pela primeira vez. Muitas das relações sociais que tinha na época se desfizeram, dando lugar a olhares tortos de quem jurava me amar. Prefiro não pensar nessas pessoas.
Anos depois, o sentimento de vazio, de não se sentir completo, de ainda estar usando uma máscara imposta em meu nascimento ganhava força. Em 2018, já com o auxílio da internet, descobri que aqueles sentimentos que eu tinha eram compartilhados por muitos. Descobri o conceito de não-bináio: a forma de ser englobando aspectos masculinos e femininos ao mesmo tempo. Percebi que não era gay, mas sim bigênero. Novamente vieram os sentimentos de medo e ansiedade junto com a grande dúvida: ser quem eu sou e encarar o preconceito vindo de todos os lados ou me sujeitar a viver uma vida infeliz, mentindo para mim todos os dias, apenas para ser melhor aceito socialmente? Escolhi a mim mesmo. Escolhi ser honesto comigo, com aquilo que eu sabia que existia e vivia dentro de mim.
Novamente veio a fase de se assumir, de abrir minha alma para a sociedade e dizer quem eu era e o que eu queria me transformar nos anos seguintes. O sentimento fora agridoce: poucas pessoas me apoiando e a maioria com duras críticas preconceituosas.
Os comentários raivosos se juntaram com a disforia de gênero e deram lugar a mais um grande momento de depressão. Três meses deitado em uma cama, sem me reconhecer, sem saber o que seria de mim. Talvez esse seja o preço que a comunidade LGBTQIA+ tem que pagar para podermos ser quem somos. Abrir nossas almas para serem dilaceradas em uma sociedade hipócrita, machista e falocêntrica.
Hoje, já consegui superar tais eventos traumáticos e sigo como qualquer ser humano, tentando viver a minha vida da melhor forma possível”.
Allis Matos, pessoa trans não-binária
Alguns dos maiores desafios são enfrentados no mercado de trabalho
“Meu processo de autodescoberta começou em 2012, escrevendo de forma anônima na internet e começando a conhecer novas pessoas enquanto me apresentava já no gênero masculino. A princípio, eu pensava que isso era só uma forma de garantir o anonimato nesses sites e fóruns, mas aos poucos fui me ligando mais à vida virtual do que à ‘real’.
Eventualmente, levei para fora das telas a identidade que eu vivia on-line. Sempre me senti melhor ao usar pronomes masculinos, roupas masculinas e o que mais parecesse fazer sentido com esse ideal masculino — ainda que, futuramente, eu acabasse percebendo que nem tudo combinava realmente comigo. Mas o início foi de aprendizado e repetição de padrões.
Depois de me entender como homem trans, começaram as intermináveis saídas de armário. Primeiro para os amigos, no trabalho e, por fim, para a família. Não tive problemas com meus amigos, apenas um curto período de tempo para se acostumarem com o novo nome e pronomes. No trabalho, foi um pouco mais complicado; avisei a todos os colegas e líderes e tive a gerência do meu lado, mas não foi o suficiente para que mudassem o nome em tudo – crachá, quadro de avisos etc. –, pois o problema era a dona, que não permitia. Foram vários conflitos envolvendo uniforme – masculino vs. feminino –, crachá – tampei meu nome com adesivo, já que não iriam mudar –, e outros colegas – uma pessoa ou outra se recusava a me tratar corretamente e isso acabou sendo levado para a gerência também.
Em casa, fui tirado do armário por um erro de cálculo da minha parte. Já estava na faculdade e lá era possível usar meu nome social. Isso significava que algumas cartas da faculdade chegariam na minha casa com o nome Alex. Meu pai e madrasta viram uma dessas correspondências e me chamaram para conversar de forma um tanto acusatória, porque achavam que se tratava de algum roubo de identidade ou algo do tipo. Agora parece engraçado lembrar, mas na hora foi confuso e assustador ao mesmo tempo. Por fim, eu consegui explicar tudo e meu pai foi muito apoiador e aberto a entender melhor. Ele sempre deixou claro que me amava e eu me senti à vontade para seguir com outras questões da transição, isso já em 2016. Fiz a retificação do nome no cartório e iniciei a terapia hormonal.
Daí para frente, e tendo saído do emprego anterior, qualquer novo contato que eu fizesse já era ‘fora do armário’. É claro que LGBTs, especialmente pessoas trans, acabam tendo que ‘sair’ de novo e de novo eternamente, porque as pessoas continuam esperando a cis-heteronormatividade. Mas agora não é mais algo que eu tenho que resolver ou explicar e sim um problema delas para entender”.
Alex Fernandes, homem trans e produtor de conteúdo e coordenador de mídias sociais na EDB Comunicação
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