Professora Antonella Galindo toma posse como vice-diretora da Faculdade de Direito do Recife
Arquivo pessoal
Professora Antonella Galindo toma posse como vice-diretora da Faculdade de Direito do Recife

A história da professora Antonella Galindo poderia ser facilmente roteiro de um filme de sucesso em que a protagonista muda completamente de vida e se torna um ícone representativo para várias pessoas. Desde criança, ela se sentia diferente , tinha fascínio pelo mundo feminino, pelas cores, vestuário e maquiagens. Não entendia enquanto criança por que não podia ter um cabelo comprido, usar uma saia ou uma sandália Melissa. Além disso, ouvia dentro de casa que “viado” seria motivo para levar uma surra ou ser posta para fora de casa, mesmo que nem soubesse o que isso significava.

Ela cresceu, se casou com uma mulher, teve filhos, começou a  se entender como uma mulher trans e há apenas oito meses, aos 47 anos, assumiu sua verdadeira identidade: Antonella. Na vida profissional era graduada, mestre e doutora em direito, concursada e agora se tornou a primeira mulher transgênero a ocupar um cargo de diretoria na Faculdade de Direito do Recife (FDR), a mais antiga do Brasil, com seus 195 anos.

Em entrevista exclusiva ao iG Queer , ela diz que esse feito representa muito porque o conservadorismo da academia pode ser percebido já no fato de que somente em 2007, após 180 anos, a FDR elegeu pela primeira vez uma mulher como diretora, a professora Luciana Grassano, que teve igualmente uma mulher como vice-diretora, a professora Fabíola Albuquerque. Agora, Antonella faz história em uma das universidades mais prestigiadas do país como a primeira mulher trans no cargo de vice-diretora.

“Penso que a representatividade disso é enorme. Enquanto somos estigmatizadas como pessoas ‘doentes’, com 'transtorno mental’ ou algo do tipo que historicamente tenha sido utilizado para nos marginalizar, um rol profissional muito restrito nos é oferecido. A maioria de nós está na prostituição ou em profissões muito específicas, como cabeleireiras ou maquiadoras. Deixo claro que não sou moralista nem tenho absolutamente nada contra essas profissões, muito pelo contrário”, avisa. “Porém, por mais dignas que possam ser, não se pode restringir as oportunidades profissionais de mulheres trans apenas a elas. Podemos ser prostitutas, maquiadoras, cabeleireiras, mas também podemos ser professoras, advogadas, juízas, médicas, enfermeiras, engenheiras, empresárias e o que mais tiver. É nesse contexto que é tão representativa e chamou tanto a atenção a minha eleição para vice-diretora da Casa”, comenta.

A docente acredita que esse feito depois de tantos anos seja sim o reflexo de uma invisibilização que a comunidade trans passa desde sempre e que tem mudado paulatinamente durante os anos. Antonella reconhece que muitas mulheres trans “extremamente guerreiras” , como prefere denominar, batalharam arduamente antes para que outras pudessem ter conquistas importantes em todas as áreas de conhecimento. Ela enumera nomes como Roberta Close , Rogéria , Letícia Lanz, Érika Hilton , Duda Salabert , Laerte , entre outras que deram a cara a tapa por dias melhores para as mulheres trans.

“Todas importantíssimas quando se colocam com tanta coragem em um mundo tão hostil a pessoas como nós. Aqui mesmo na FDR sou a primeira professora, mas antes de mim, Robeyoncé Lima , hoje servidora técnico-administrativa da Casa, foi a primeira aluna mulher trans e marcou época com sua presença ativa e ativista no ambiente acadêmico. Foi nome de turma, de grupo de estudos, depois codeputada estadual e por muito pouco não foi eleita para o Congresso Nacional, obtendo 80 mil votos em uma campanha sem dinheiro e quase artesanal. Sou devedora de todas elas”, ovaciona.

Antonella também prefere ressaltar o papel importante dos movimentos sociais ligados à causa LGBTI+ em geral, como a atuação da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e de outras organizações regionais e locais que são ainda mais fundamentais nas conquistas de seus direitos.

“Direitos não são concessões, mas conquistas. Muitos Stonewalls , grandes ou pequenos, foram e são necessários, muitas pagaram com a própria vida para que hoje pudéssemos estar onde estamos e dizer em alto e bom som que ‘sim, nós existimos, e queremos respeito e igualdade'. Tenho um dever moral de honrar essa luta e nela fazer a minha parte”, avalia.

De acordo com os dados levantados em 2018 pelo Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (GEMAA), apenas 0,3% dos alunos de universidades federais no Brasil se identificavam como pessoas trans, sendo 30% mulheres pretas e pardas, 28% homens pretos e pardos, 20% mulheres brancas e 22% homens brancos. Esses números são alarmantes e mostram que a comunidade trans ainda está muito distante de ter espaço no universo acadêmico.

A professora acredita que a academia reproduz muito do que está na sociedade e influencia nesta também, o que considera uma “via de mão dupla”. Antonella diz que se a sociedade é LGBTfóbica , em alguma medida, a academia termina sendo, pois professores a alunos podem reproduzir em suas condutas cotidianas atos desse tipo de preconceito.

“Porém, é também na academia que paradoxalmente as ideias de vanguarda começam não poucas vezes. Especialmente quando se preza pela liberdade de cátedra e se incentiva a inovação no ambiente científico”, lembra. “Debates e estudos acadêmicos no âmbito da psicologia, da psiquiatria e da medicina em geral forneceram luzes para a compreensão da homossexualidade e da transexualidade sem o obscurantismo de outrora. Muita gente importante e pioneira da academia jurídica puxou as discussões sobre a regulamentação das uniões estáveis e do casamento homoafetivo , da alteração do prenome das pessoas trans sem a necessidade de cirurgia ou ordem judicial , da criminalização da LGBTfobia, teses que iniciaram nos intramuros acadêmicos e resultaram em acolhimento delas pelo Supremo Tribunal Federal e por outros tribunais do poder judiciário.”

A professora Antonella se assumiu publicamente como uma mulher trans há apenas oito meses
Arquivo pessoal
A professora Antonella se assumiu publicamente como uma mulher trans há apenas oito meses

Pleito

Antonella foi eleita vice-diretora na chapa do professor Torquato de Castro Júnior, que ocupará o cargo de diretor nos próximos quatro anos (2023 a 2027). Entre os votos do corpo docente, eles tiveram apenas um voto a mais em comparação à chapa concorrente, mas obtiveram quase o dobro entre os votos dos alunos. Questionada se ela vê esses números como um conservadorismo da academia ou uma forma de transfobia velada, a vice-diretora acredita que tudo estava dentro do esperado.

“Na verdade, o resultado correspondeu às nossas expectativas. O corpo docente tende a ser mesmo mais fechado a inovações e o alunado é o oposto disso. Então, ter vencido entre os docentes, ainda que por apenas um voto, já foi algo muito bom. No alunado foi grande a vantagem, mas dentre os servidores e servidoras foi maior ainda: tivemos quase quatro vezes a votação dos concorrentes. E o corpo técnico-administrativo é quem sustenta o funcionamento da Instituição na sua base. Essa foi uma confiança que nos empolgou bastante e queremos muito corresponder a ela”, diz.

Agora, no cargo de vice-diretora, ela pretende fazer com que a universidade seja mais inclusiva observando também grupos vulneráveis como mulheres, negros e indígenas. Antonella analisa que alguns passos já têm sido dados nesse caminho, mas acredita que é preciso aprofundá-los, inclusive para trazer mais alunos, alunas e alunes trans para a sala de aula, criando condições apropriadas com bolsas e alimentação subsidiadas.

“A inclusão de pessoas trans em políticas de cotas me parece uma dessas formas de inclusão. E não digo isso em causa própria, até por que já sou professora efetiva concursada numa das melhores universidades do país, mas em razão de compreender como fundamental a presença de pessoas historicamente excluídas nos espaços de conhecimento, poder e decisão para trazer novos olhares sobre a questão.”

Em sua nova posição dentro da Faculdade de Direito do Recife, ela acredita que será mais cobrada justamente por ser uma mulher trans, pois qualquer falha será muito explorada pelos detratores de pessoas trans, mas deseja que seu trabalho traga mais respeito e visibilidade para essa parcela da população.

“Como ser humano que sou, inevitavelmente falharei em alguns momentos, mas desejo que os meus acertos sejam maiores que meus erros e que, ao final de nosso mandato, eu tenha a sensação de que contribuí com meu trabalho e minha competência para que mulheres trans e travestis sejam mais respeitadas e tenham mais oportunidades de mostrarem seus talentos nas mais diversas profissões. Que sejamos julgadas apenas por nosso caráter e competência, não por nossa identidade de gênero”, pontua.

Antonella Galindo já trabalhava na Faculdade de Direito do Recife como professora concursada
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Antonella Galindo já trabalhava na Faculdade de Direito do Recife como professora concursada

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