O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em março de 2018, por meio de uma votação histórica, pelo reconhecimento da não-obrigatoriedade da cirurgia de redesignação e a solicitação judicial para que pessoas transgênero estejam aptas a retificar o nome e o gênero no registro civil. No mesmo ano, em 29 de junho, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou o Provimento n° 73/201814, que regulamentou a retificação e todos os Cartórios de Registros de Pessoas do Brasil passaram a ter a obrigatoriedade de realizar a alteração de nome e gênero nas certidões.
Para o advogado Eder Serafim, este recurso mostra fundamental importância não apenas para a pessoa trans que recorre a ele, mas para a sociedade como um todo: “A retificação é importante em todas as esferas, tanto para a pessoa que solicita, uma vez que o nome, prenome e gênero fazem parte de sua identidade, de quem a pessoa é, como também é importante para a sociedade como um todo, pois é uma adequação de realidade, sanando uma lacuna que o Estado negligenciou por anos, sendo possível, por exemplo, realizar um levantamento de quantas pessoas trans vivem no nosso país. Dessa forma, pode-se pensar em políticas públicas adequadas”.
É importante ressaltar também que há uma diferença crucial entre nome social e a retificação do nome, como explica o advogado Luiz Carlos Corrêa. “Muitas pessoas acham que nome social e retificação de nome são a mesma coisa, mas não são. O nome social é uma política que permite que as pessoas trans utilizem os nomes pelos quais se identificam em diferentes instituições, como escolas (listas de chamadas), serviços de saúde (cartão SUS, prontuários e etc.) e em alguns documentos, como RG. O importante de ressaltar é que o nome social não muda o nome escrito na certidão de nascimento, ele apenas permite que o nome de identificação seja utilizado socialmente. Já a retificação de prenome e/ou gênero é o procedimento administrativo que permite a alteração do nome e/ou gênero nos documentos pessoais, substituindo o nome registrado na Certidão de Nascimento por aquele que a pessoa se identifica”, pontua.
Para dar início ao processo, a pessoa trans precisa procurar um cartório, de preferência o cartório no qual ela foi registrada quando nasceu. Após identificar-se e dizer que deseja fazer alteração de nome e gênero, o cartório solicita uma série de documentos necessários para a realização do procedimento, que são:
- Cópia atualizada da Certidão de Nascimento ou de Casamento
- Cópia do Certificado de Pessoa Fisica (CPF)
- Cópia de um documento que contenha foto e assinatura (CNH por exemplo)
- Cópia comprovante de endereço
- Cópia da carteira de identidade
- Cópia do título de eleitor (se tiver)
- Cópia do passaporte brasileiro (se tiver)
- Comprovante de Quitação Eleitoral,
- Certidões de antecedentes Criminal, Cível, Federal e do Trabalho dos últimos 10 anos
- Certidões negativas de antecedentes criminais e eleitorais estaduais
- Certidões negativas Federais criminais e cíveis e
- Certidão de Reservista (se houver)
Após entregar os documentos, o processo será colocado em andamento. O advogado Cassio de Ávila Ribeiro Jr. comenta sobre alguns dos imprevistos que podem surgir no meio do caminho, entre eles a postura que alguns cartórios podem tomar mediante à solicitação.
“Infelizmente, nos cartórios, de uma forma generalizada, cada um dos registradores têm um entendimento particular sobre as normativas e isso faz com que regras particulares, baseadas nestas divergências de entendimentos, passem a existir. Por isso, é difícil ser preciso quanto a tempo e gastos nestes procedimentos, pois isto pode variar de cartório para cartório – ainda que na mesma cidade e estado”, aponta. Ele ainda ressalta como esse procedimento acaba sendo mais difícil em cidades menores, especialmente devido à falta de informação.
“O imprevisto mais comum, que de tão comum deixou de ser imprevisto e se tornou previsível, é a falta de informação a respeito dos procedimentos por parte de cartório de cidades menores. Nas grandes cidades e capitais do país, este procedimento acaba sendo mais rápido e tranquilo, por não ser mais incomum ou desconhecido”, conta. Felipe continua, levantando a possibilidade de desconfiança quanto à falsidade ideológica, por exemplo. Devido a isso, é importante estar sempre atento à ordem e validade dos documentos solicitados.
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“Também não é incomum o registrador civil eventualmente suspeitar de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade ou simulação quanto ao desejo real da pessoa requerente. Isto tende a ocorrer com aquelas pessoas que estão protestadas ou com vários processos de execução pois, infelizmente, pessoas de má índole e criminosas podem usar este mecanismo para mudar de nome e praticar crimes de estelionato, fraude, etc. Assim, é muito importante estar munido de toda a documentação atualizada e em ordem para não levantar falsas suspeitas – e caso elas sejam levantadas, que possam ser esclarecidas”, explica o especialista.
Para evitar esse tipo de imprevisto, Cassio recomenda que o solicitante faça um contato prévio com o cartório e mantenha essa comunicação clara. “A sugestão é que sempre se entre em contato anteriormente com o cartório e que se solicite os documentos necessários e procedimentos que aquele cartório entende como necessários. Este breve contato antes de se iniciar o procedimento pode salvar muitas viagens. Em geral, os cartórios entregam, por papel ou por e-mail, um informativo a respeito do procedimento – que deverá ser seguido à risca por quem busca retificar seus documentos”, recomenda o advogado.
É importante que a pessoa transgênero se mantenha atenta à taxa requerida pelo cartório para realizar o procedimento. Eder Serafim comenta sobre a variável de valor, que não é fixo: “Geralmente tem que pagar as taxas de cartório, que podem variar de Estado para Estado, ficando entre R$ 45 e R$ 150, dependendo do cartório. Caso a pessoa não possua condições de pagar essas taxas, a mesma pode requerer o pedido de isenção por meio de uma Declaração de Hipossuficiência assinada por ela”, explica.
Assim como o valor da taxa, o tempo estimado para a retificação também pode variar, como explica Luiz Carlos Corrêa. “Uma ação de retificação de registro civil tem um prazo estimado de dois meses a um ano, dependendo do grau de complexidade da causa, volume de demandas do juiz e do local onde o processo irá tramitar”.
Apesar deste ser um serviço que deve ser oferecido pelos cartórios, Marcelo Válio, especialista em direito constitucional, destaca que ainda existem barreiras por parte do sistema. “A informação ainda é muito escassa, independentemente da existência do provimento do CNJ. A discriminação é uma barreira enorme na busca desta retificação. Diante desta ilegalidade discriminatória, o acesso em território nacional acaba não sendo igualitário”, diz.
Cassio de Ávila Ribeiro Jr. também explica um pouco mais sobre como o processo tramita dentro dos cartórios. “Os cartórios, por mais que sejam refutados por alguns, são uma excelente forma de desjudicializar procedimentos e torná-los simples, tal como é a retificação. Além disso, em razão de todo município obrigatoriamente ter um cartório de registro civil, torna o acesso, sobretudo no interior do país, mais fácil - mas para que isso aconteça as pessoas precisam saber que elas podem. Assim, como qualquer cidadão, a pessoa que desejar retificar sua documentação e cumprir com os requisitos para tanto, poderá exercer este direito. O procedimento interno no cartório é obrigatoriamente sigiloso e quando finalizado fará com que a documentação daquela pessoa seja 100% adequada à sua identidade”, finaliza.
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