A escola é um dos ambientes mais importantes no desenvolvimento humano. É nela que cada indivíduo fortalece o conhecimento e a convivência com o outro, o que influencia no respeito e na empatia. Porém, no cenário brasileiro, muitos temas ainda precisam ser debatidos para que a educação seja de fato transformadora; e para que certas práticas sejam incluídas na agenda escolar, não somente difundidas na teoria.
Paula Beatriz de Souza Cruz, 51 anos, é pedagoga e a primeira diretora transexual de uma escola pública de São Paulo. No cargo, ela tem como propósito conciliar a prática e a teoria de uma educação eficiente na Escola Estadual Santa Rosa de Lima, espaço em que está à frente desde 2003 como diretora. No entanto, seu processo de "exteriorização" (termo que prefere utilizar em vez de transição) iniciou anos mais tarde e foi finalizado em 2013, quando retificou seus documentos para o gênero feminino e alterou seu nome civil.
A educação sempre fez parte da vida dela. Quando a tia de Paula peguntou a ela enquanto brincava, aos oito anos, qual profissão seguiria, ela respondeu que seria professora. Dito e feito. Paula, foi uma das únicas sobrinhas que cumpriu o objetivo de permanecer na educação, pois enxerga nela possibilidades de mudança. Por isso, leva para os alunos da faixa etária entre seis a 10 anos a necessidade e importância do conhecimento. Isso inclui tratar de assuntos como educação sexual e de gênero.
“Enquanto meu corpo, de uma transexual, estiver no campo acadêmico, isso mostra que, de fato, a gente pode tudo que quer. Agora precisa-se ter a garantia do direito fundamental, que é vida, e o da educação para todos”, diz a diretora.
“Se as pessoas tem esse direito garantido de estar na escola e de permanecer nela, não apenas como um número mas como pessoa, ela consegue trilhar o seu caminho, planejar o seu projeto de vida e ser quem ela quer ser; independente de gênero, raça, etnia e classe social. Mas, evidentemente, a gente tem que entender que para algumas pessoas se torna mais fácil e para outras mais difícil. Na verdade, teria que ser o contrário, para todas deveria existir essa facilidade”, completa.
Sua trajetória na rede de ensino começa aos 18 anos quando começa a lecionar, em 1989, na Escola Estadual Presidente Kennedy. A partir disso, ela começou a fazer mudanças. Isso porque o ativismo também sempre esteve presente na sua vida. No entanto, é só quando põe para fora a Paula que começa ser mais patente as lutas da comunidade LGBTQIAP+ em sua vida.
“Eu sempre fui de não aceitar as coisas assim como ‘pronto e acabado’. Eu sempre fui uma pessoa de refletir e buscar informações nos livros. Estudava para entender e compreender os assuntos, até porque a gente tem que ter argumentos para quando a gente concorda e quando a gente discorda”, explica Beatriz.
“Quando a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo noticia que eu sou a primeira diretora transexual de uma escola pública, isso levantou muitos debates, porque a escola também expulsou muitos desses corpos ao longa da história. É nesse momento que eu abraço esse compromisso enquanto ativista, porque não basta eu ter retificado meu nome, ter exteriorizado Paula. Eu estou inserida no mercado de trabalho sabendo que isso não está acontecendo com muitas iguais a mim. A gente precisa ir à luta, não podemos cruzar os braços. Juntamente com outras pessoas, eu sigo lutando para que esse caminho mude e para que haja uma mudança histórica, científica, social e econômica para as pessoas LGBTQIAP+”, adiciona a pedagoga.
Escola enquanto espaço acolhedor
“ Se não for a escola para trazer esses assuntos quanto a diversidade sexual e de gênero, não tem outro espaço. E pensando de maneira geral, há sempre os contrários, que acreditam que escola vai ensinar alguém a ser LGBTQIAP+, sempre colocando a sigla como uma situação problema. Pelo contrário: quando nós falamos de gênero, estamos pontuando também as questões da mulher. Estamos com um índice altíssimo de feminicídio, sendo preciso pensar o que leva esse feminicídio, ao machismo, sexismo e misoginia”, explica a diretora.
Paula fala que a escola em que trabalha acolhe os corpos LGBTQIAP+ e que todas as outras escolas deveriam fazer o mesmo. É a partir do princípio de respeitar que ela adminstra todo o local. “Como eu estou lá, eu busco ensinar para que todos possam entender e compreender. Se há alguma questão, eles terão a quem recorrer, que sou eu. E isso serve tanto para os alunos, os responsáveis e os funcionários. Os espaços e os territórios não podem e não poderão ser repressivos, a LGBTQIAP+fobia é crime".
O acolhimento também se estende para fora. Paula conta que os responsáveis dos alunos não são rudes com ela e que formam uma bela relação. Ela chegou até a ganhar o seu nome estampado em uma das travessas da favela do Jardim Mitsutani, no Capão Redondo, onde está localizada a escola. A travessa recebeu o nome de Professora Paula Beatriz.
“Esse processo e minha relação com todos acaba colaborando para haver o respeito, porque afinal a escola sendo pública, ela é laica e nessa laicidade a gente tem que dar a equidade de direito para que as pessoas possam realmente seguirem seus caminhos. Caminhos esse que são possíveis de chegar ao fim, de atender seus objetivos, e não de criar barreiras”, enfatiza.
“A educação só será positiva quando tivermos um governo que coloque a educação como primeiro plano, primeiro foco, primeiro em tudo. Se a educação não for tratada como prioridade em propostas de governo, os problemas nas áreas da saúde, segurança, assistência social, cultura, esportiva e econômica vão permanecer”.
Gestão na pandemia
Paula narra que, durante a pandemia, foi muito dolorido ir para um espaço e que antes era cheio de vida e vê-lo vazio.
“Eu falava assim: ‘Estou indo pro cemitério’, porque tudo era muito morto. E eu vendo os noticiários, tantas vidas, que hoje já passam de 665 mil, que se foram com essa doença. Eu chegava naquele espaço e vê-lo naquele silêncio, aquele ambiente fúnebre, era um cemitério para mim, pois não era uma escola. Uma escola é vida, ela produz todos os desejos, sonhos e realizações. Aqueles momentos não foram fáceis porque a gente precisava lidar com tantas histórias de perdas de pessoas muito próximas, familiares, e também no sentido de ver as pessoas em um desespero por conta de não ter um pão para por na mesa”.
Enquanto diretora, ela precisava sempre transparecer para as pessoas uma força, mas conta que precisava teatralizar, pois, na verdade, ela só sentia uma dor enorme e só queria poder se emocionar. Os únicos momentos que fazia isso era com pessoas íntimas. “Deixei esses momentos muito individuais, porque também precisava falar para alguém para poder continuar trilhando. Felizmente consegui e vi que muitos que também conseguiram seguir em frente”.
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