A estrutura cis-heteronormativa tenta reduzir a complexidade da comunidade LGBT para criar ferramentas que as marginalize mais intensamente
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A estrutura cis-heteronormativa tenta reduzir a complexidade da comunidade LGBT para criar ferramentas que as marginalize mais intensamente

Estereótipos  são conceitos ou imagens preconcebidas, padronizadas e generalizadas pelo senso comum, ou seja, alimentam determinadas expectativas que normalmente não condizem com a realidade. Tendo em vista isso, vale questionar de que modo a reprodução dos estereótipos impacta na comunidade LGBTQIAP+ , pois devido à quantidade de letras da sigla, há muita desinformação circulando. 

“O ponto mais relevante é entender que o estereótipo não é natural, ou seja, ele não cresce espontaneamente. Ele é construído socialmente, delimitado no tempo e no espaço”, pontua o sociólogo Jorge Miklos. “Outro ponto é entender que o estereótipo é sempre a construção de um ou uns sobre o outro ou outros. Ou seja, o estereótipo é uma construção que um determinado grupo social político constrói sobre pessoas que de alguma forma precisam ser rotulados ou subalternizados”. 

O especialista faz inclusive um resgate histórico do termo: “Olhando para a História vamos encontrar muitos exemplos de estereótipos. O mundo grecoromano (helenístico) chamava de ‘bárbaros’ os povos que viviam fora das fronteiras culturais desse mundo. Bárbaro era um estereótipo, uma maneira pejorativa de representar os povos germânicos”, explica Miklos. Seguindo essa lógica, os estereótipos alimentados acerca da comunidade LGBTI+ funcionam como uma ferramenta para subjugar essa parcela da população ao grupo dominante – heterossexuais e cisgênero. 

Para  Theo Souza, homem trans e preto, a estereotipação assume o papel de “higienizar” as identidades trans, ou seja, despi-las de suas particularidades. “Eu percebo que as expectativas vêm com um peso maior para quem é trans e negro. Quando uma pessoa olha para mim, ela já espera que eu seja de um determinado gênero, mas junto vem a subestimação do meu potencial. Que corpo é esse? O quão estranho ele é ao sistema? Eu já enfrentei e ainda enfrento muito os estereótipos”. 

Jorge Mikos volta a citar que os estereótipos são ferramentas de exclusão e ressalta ainda que, por meio deles, é possível abrir ainda mais a margem para justificar discursos anti-LGBT. “Os grupos LGBT, por serem diferentes, ameaçam a hegemonia dominante que busca por meio do biopoder o controle dos corpos e do desejo humano. Nesse sentido, a criação de estereótipos e estigmas recrudesce o ódio social contra esse grupo. O Brasil vive um período de reacionarismo de costumes. Após um breve período em que as pautas identitárias ganharam espaço de discussão na sociedade impelindo inclusive mudanças legais, grupos religiosos reacionários e conservadores, ocuparam o espaço público, midiático e político e passaram a atacar com violência a comunidade LGBTQIA+ reproduzindo preconceitos antigos, espalhando que essa forma de ser é uma ameaça à família e à sociedade”, aponta ele. 

Esse tipo de pressão social, por sua vez, impacta diretamente na saúde mental desta população, como comenta o psicólogo Filipe Colombini. “[Devido aos estereótipos] a pessoa pode se autojulgar, punir, até mesmo desenvolver a Síndrome do Impostor, pois não consegue se aceitar. Vira um ciclo vicioso porque o indivíduo não se sente adequado ao próprio corpo ou vivência e alimenta uma desconfiança contínua de si mesmo”. 

A síndrome sobre a qual o especialista se refere consiste no fato da pessoa sentir como se fosse uma fraude. Ela sente que mesmo que aparente ser algo por fora, mais cedo ou mais tarde aqueles ao redor irão perceber que ela não merece estar onde está. Os sintomas incluem, por exemplo, a autossabotagem, autocrítica excessiva, comparação e sentimento de não pertencimento. 

“A agressividade dos outros e consigo mesmo pode levar a tentativas de suicídio e autolesão”, continua Colombini. “O reforço dos estereótipos tende a reforçar os preconceitos. Nós criamos rótulos para nos compreender e compreender o mundo, mas existe um limite. Determinar como a pessoa deve ser ou agir perante uma característica pontual dela a prejudica muito”. 

“A transgeneridade já ultrapassa todas as caixinhas”, comenta Theo. Ele traz à tona que o fato de não se identificar com o gênero que lhe foi imposto já contesta todo o padrão cisgênero, mas “ainda assim nos colocam em caixas novamente”. A maior prova disso, ao ver dele, é que mesmo quando há iniciativas de inclusão, seja por parte do Estado ou de outras instituições, elas nunca se mostram interessadas em contemplar toda a complexidade das pessoas LGBT. 

“Querem que a gente se sinta incluído, mas só até certo ponto. As pessoas tentam reduzir a densidade da nossa existência. Quando é projetada uma expectativa sobre nossas vidas e corpos, normalmente a gente acaba internalizando, afinal fazemos parte desse sistema. Passamos por muitas crises com nossos corpos, nossa expressão de gênero e nossa sexualidade. Eu pessoalmente às vezes me pego muito mal com uma coisa que não é genuína. Ela não me incomoda de fato, mas existe uma expectativa grande sobre o meu corpo, então fico me perguntando se ele está errado”, diz. 

Filipe Colombini pontua que esperar que alguém desempenha um determinado papel de uma determinada maneira é o mesmo que estreitar as margens de desenvolvimento pessoal desse indivíduo. Junto a isso, há o risco de sofrer represálias se sair da linha, pois fugir de um padrão esperado socialmente e das expectativas parentais pode gerar punições que levam a vários sintomas de patologias psicológicas. O indivíduo precisa de muito suporte ao longo da vida, principalmente por meio da terapia. 

Theo Souza expande o debate ao citar que sexualidades que fogem do binário homem x mulher, como a bissexualidade , por exemplo, e as  relações não-monogâmicas que ultrapassam as noções “tradicionais” entram em um âmbito diferente de estereótipos em comparação à transgeneridade, por exemplo. Para ele, independentemente da vertente, o próprio sistema cis-heteronormativo e monogâmico não se sustenta nos argumentos que utiliza para excluir e invisibilizar essas vidas. 

“A estrutura social não está preparada para nada que fuja do binário ”, explica ele. “É muito complicado que entendam uma sexualidade que não seja monogâmica, e ter que se provar o tempo todo também é uma violência. Existem diversas configurações de sexualidade, identidades de gênero e relacionamento e as pessoas simplesmente surtam com isso. Elas querem limitar o debate e tentar resumir vivências complexas em pequenos rótulos, que são os estereótipos. Limitar a diversidade não faz sentido, pois vai justamente contra o sentido básico do termo”, conclui.

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