A dificuldade de se relacionar por fatores ligados à transgeneridade está presente na vida de pessoas trans das mais diferentes faixas etárias, principalmente por conta de fatores biológicos como a genitália, pela qual muitas pessoas cisgênero se guiam para ler o gênero de outras pessoas. Fatores biológicos e expressão de gênero são relativos quando se trata de identidades trans, pois cada um tem uma relação com seu corpo que vai desde sentir ou não necessidade de fazer alterações , até a forma como a pessoa se veste.
Levi Martin Cezar, bacharelando em ciências econômicas e pessoa trans não-binária agênero, explica como esses estereótipos e a pautação do gênero pela genitália reflete na forma como pessoas transgênero se relacionam, são vistas e lidam com a exclusão dos seus corpos.
“A ideia de gênero ter uma ligação com a genitália faz parte não só do estereótipo, mas de como a nossa sociedade tem uma visão completamente binária e raízes fundadas na hétero-cis normatividade. A comunidade segue definindo o gênero das pessoas pelas genitálias, o que exclui duas vezes as pessoas trans não-binárias. Ou seja, normalmente um homem hétero e cis, quando se relaciona com uma mulher trans ou travesti e percebe que ela é trans, tende a se distanciar por levar a genitália em consideração para a definição de um gênero. Os homens cis gays tendem a se distanciar de homens trans ou alguns tipos de pessoas NB [não-binárias], justamente pela assimilação de gênero com genitália. Para uma pessoa trans isso é cada vez mais desgastante. É uma completa invalidação de seu gênero e existência”, conta.
Desse modo, a forma de vivenciar experiências românticas e sexuais fica limitada para pessoa trans, uma vez que, usando-se de argumentos transfóbicos (como relacionar gênero ao genital), pessoas cis se recusam a manterem relações com indivíduos transgênero. A sexóloga Carla Geane, da INTT, ressalta como a experiência sexual vai além da genitália.
“É superproblemático se limitar. Os problemas maiores são quando a pessoa entende que sexo é feito apenas com penetração porque elas deixam de aproveitar uma série de oportunidades prazerosas durante o sexual, como por exemplo, o beijo no corpo todo, inclusive na genitália e o toque com as mãos, então quando a gente limita sexo à penetração, perdem-se oportunidades de sentir e de proporcionar mais prazer”, conta.
Por outro lado, Adilon Harley, médico e psicoterapeuta do Espaço Arquétipo, destaca que as pessoas trans são paradoxalmente hipersexualizadas, principalmente por meio da pornografia. De acordo com um relatório do PornHub de 2018, a busca mundial por pornografia trans subiu 167% entre os homens e 200% entre visitantes acima dos 45 anos. Já em 2020, o Brasil ocupou a 11ª colocação em acessos a esse tipo de conteúdo na plataforma, com crescimento de 98% na tendência de pesquisa pelo termo ‘transgender’ (“transgênero”), maior número em todo o mundo. Harley diz ainda que transfobia de pessoas cis também está muito ligada ao não reconhecimento do gênero como algo que vai além da genitália.
“Pensar na genitália como fator impeditivo para um relacionamento é reduzir a discussão, pois caso fosse, não teríamos o Brasil como recordista de consumo de pornografia trans no mundo. Este dado nos leva ao entendimento que o desejo ao corpo trans e à genitália existe e na maioria das vezes é realizado incógnito, restrito às fantasias ou ao anonimato. O que interfere diretamente na decisão de pessoas cis em se relacionarem com pessoas trans é a estrutura binária da sociedade e todos os preconceitos relacionados a este pensamento, principalmente considerando os aspectos religiosos”, explica ele.
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Carla Geane reintegra essa questão e acrescenta ainda que, além da limitação das experiências sexuais, pessoas trans também passam por um grande sofrimento emocional devido à transfobia enraizada e usada por muitas pessoas cis que se recusam a relacionarem-se com elas mesmo que a atração e o desejo existam.
“Acredito que a maior forma de transfobia que pessoas cis comentem é quando elas deslegitiam pessoas trans, dizendo frases do tipo: ‘Mas ela não é uma mulher de verdade por não ter uma vulva’, ou ‘ele não é um homem de verdade porque não tem um pênis’. A maioria das pessoas cis ainda acreditam que genitália define quem somos e com quem deveríamos nos relacionar. Não é só a violência física que praticamos contra pessoas trans, mas violência emocional, na maioria das vezes, por falta de conhecimento”, diz.
Harley também chama a atenção para os reflexos emocionais que a falta de conhecimento e sensibilidade por parte de pessoas cisgênero pode causar na vida de pessoas trans. Ele ressalta principalmente o sentimento de não pertencimento que pode levar a trasntornos como depressão e até culminar em tentativas de suicídio.
“A pessoa trans, devido ao preconceito, pode ter seu corpo restrito ao desejo oculto, em que o sexo só será realizado no anonimato, de forma fetichizada. Um corpo como objeto dos desejos reprimidos e não elaborados do outro e isento das possibilidades de ascender em relacionamento e de sentir. Isso subtrai a experiência das relações, do afeto, do sentimento de pertencimento, interferindo diretamente na saúde mental das pessoas trans, podendo levar à depressão, ansiedade e muitas vezes ao suicídio”, esclarece.
Considerando todas essas questões, Levi relata que costuma se relacionar com outras pessoas trans ou pessoas que estejam dentro do espectro LGBTQIAP+ e que, mesmo quem está dentro da comunidade, também aprende constantemente sobre identidades trans e suas demandas.
“Tendo a me relacionar mais com pessoas trans. Também me envolvo com pessoas cis, mas todas LGBTs -- não que seja um inibidor de preconceito. Apesar que todas essas pessoas anteriormente desconheciam a minha identidade de gênero e ainda processam muito sobre, mas seguem se relacionando comigo de maneira romântica ou sexual, seja quem me conheceu antes ou durante a transição”, conta.
Além disso, Levi conta também que, para além da genitália, estão os estereótipos de masculinidade e feminilidade abertamente reproduzidos e incentivados que, por sua vez, alimentam problemáticas como o próprio machismo e a masculinidade tóxica.
“A ideia de que o homem precisa exalar masculinidade, ser patriarcal, menos vaidoso e mais braçal acaba desencadeando uma masculinidade tóxica e o machismo. Logo, tudo o que a sociedade interpreta como homem precisa estar dentro desse modelo, e homens afeminados ou homens trans e pessoas NB naturalmente são excluídos nesse processo, e cada um vive a marginalização com uma intensidade”, explica.
O ponto principal para que pessoas cis compreendam como essas condutas são recheadas de transfobia é deixar claro, entre outras possibilidades, que se relacionar com pessoas trans não modifica automaticamente a sexualidade, como explica a sexóloga Carla Geane. “Outro ponto que as pessoas precisam aprender é que um homem hétero que se relaciona com uma mulher trans não deixa de ser hétero, tampouco uma mulher lésbica que se relaciona com uma mulher trans deixa de ser lésbica. Ou ainda, uma mulher hétero que se relaciona com uma homem trans não é menos hétero por isso e um homem gay não deixará de ser gay por se relacionar com um homem trans”.
Para que essas alegações transfóbicas sejam dissolvidas e as pessoas cisgênero comecem a repensar sobre esses posicionamentos, Levi traz à tona a necessidade de reflexão, afinal a sexualidade diz para onde o indivíduo direciona a atração por outras pessoas, e não pelas genitálias delas.
“As pessoas precisam conhecer mais sobre si mesmas. Elas sentem afetividade ou atração pelo gênero da pessoa ou pela genitália? Todo mundo tem o direito de não sentir atração por determinado gênero ou genitália X, porém é transfóbico e hipócrita dizer que gosta de um gênero e de se relacionar com essa pessoa por não possuir a genitália X. Isso as pessoas não têm direito de fazer”, conclui.