O poliamor é um movimento que surgiu durante a década de 80, nos Estados Unidos. Sempre que o termo entra em evidência a polêmica é inevitável, justamente por ser um tipo de arranjo de relacionamento que se distancia da monogamia reproduzida como padrão dentro de quaisquer relacionamentos.
Marluci Tavares é psicoterapeuta e elenca e explica alguns dos moldes que fogem dos costumes enraizados de casais compostos por duas pessoas. Existem muitas outras formas de se relacionar além do que comumente é visto e expressado por meio de filmes, séries, livros e do próprio senso comum também.
Monogamia: “Modelo que tem como regra a exclusividade para a vida toda. Hoje em dia houve modificações nesse conceito, sendo estabelecida a monogamia consensual e séria. A escolha do parceiro (a) é feita por amor e o laço só será desfeito em caso de morte ou separação”.
Poligamia: “É um sistema social no qual é estabelecido que todos os indivíduos do mesmo gênero tenham os mesmos direitos. A poligamia está associada aos homens, que são os indivíduos que podem se casar com várias mulheres ao mesmo tempo. Em contrapartida, em outras sociedades, existe a poliandria, onde as mulheres têm o direito de se casar com vários homens ao mesmo tempo”.
Poliamor: “Essa palavra vem do latim e do grego e significa 'muitos amores'. São relações múltiplas, como um trisal, por exemplo. Alguns poliamores estabelecem a fidelidade como condição, ou seja, polifidelidade, onde os envolvidos só podem se relacionar entre eles”.
Relacionamentos Abertos: “O casal tem a liberdade de se relacionar com outras pessoas fora do casamento, sendo uma forma tolerante de relações extraconjugais”.
Não-monogamia: “É um leque de possibilidades. Qualquer estrutura de amor que não exija exclusividade. Então podemos dizer que poliamor e relacionamentos abertos são espectros da não-monogamia”.
Marluci ressalta ainda como todos os arranjos anteriormente descritos por ela não são aceitos, bem-vindos e bem compreendidos pela sociedade como um todo, em grande parte devido à falta de informação. “Toda forma de relacionamento que não seja aquela pré-estabelecida pela sociedade não é bem vista. Mas o fato é que são muitas variações sendo explicitadas ultimamente. A comunidade LGBTQIA+ encontra muitos obstáculos para serem compreendidos e aceitos pela sociedade e os relacionamentos não-monogâmicos estão sendo mais mencionados agora, mas muita gente nem sabe direito o que significa. Ainda existe um caminho muito longo a ser percorrido para que essas variações amorosas sejam compreendidas, mas, infelizmente, o preconceito sempre existirá”.
Íris Ribeiro, Isane Farias e Igor Almeida vivem um relacionamento poliamoroso. O trisal compartilha nas redes sociais fragmentos do dia a dia e conteúdos didáticos sobre a não-monogamia como uma forma de levar essa informação para mais pessoas e desmistificar as crenças e os estereótipos que giram em torno desses tipos de arranjo de relacionamento.
Isane conta que ela e Igor já tinham um relacionamento antes de conhecerem Íris e, naquela época, os dois pensavam em abrir a relação e começarem a explorar novas formas de afeto que fogem dos padrões e expectativas prévias.
“Há mais ou menos quatro anos atrás, nós [Isane e Igor] começamos esse movimento de querer abrir a relação, mas todo esse processo veio por meio de uma jornada de autoconhecimento com meditação, na qual começamos a questionar a forma como nós nos relacionávamos”. Igor acrescenta: “Pensamos na nossa liberdade e na nossa autonomia enquanto ser. Tínhamos muito esse diálogo”.
Isane continua, relatando que decidiram experimentar abrir o relacionamento e, dois anos atrás, conheceram Íris. A própria conta que também estava em uma relação aberta antes de conhecer Isane e Igor. “Eu também vinha de um movimento de relacionamento aberto, então já vivenciava a não-monogamia. Essa forma de arranjo foi descoberta por mim junto com a minha bissexualidade e quem conheci primeiro foi a Isa. Nós duas nos envolvemos e, posteriormente, conheci o Igor. Eu e meu companheiro da época rompemos nossa relação e nisso ficamos nós três. Já tínhamos envolvimento, amor e afeto”.
Íris acrescenta ainda que mesmo que eles já estivessem todos inseridos em contextos não-monogâmicos, a ideia de ter uma terceira pessoa dentro do relacionamento foi algo novo. “Até para nós levou um tempo. Pensamos: ‘Opa, e agora? Como vamos fazer isso?’”, confidencia. “Hoje nós estamos inseridos não apenas na não-monogamia, mas no poliamor, como trisal, há quase dois anos”.
A abertura do relacionamento, no caso do trisal, foi o ponto de partida para outras descobertas, embora isso não seja nenhuma regra. Marluci comenta alguns cuidados que devem ser tomados quando um casal pensa em abrir um relacionamento e destaca a importância do diálogo para que qualquer tipo de arranjo possa ser posto em prática com êxito e respeito.
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“Quando um casal decide abrir um relacionamento tudo precisa ser conversado, esclarecido, acordado. Quando há divergências tudo fica mais difícil colocar em prática. Para que isso aconteça, o essencial é a concessão de ambas as partes. Mesmo com essa concessão ainda terão arestas a serem aparadas na caminhada, pois é natural que surjam dúvidas, inseguranças, entre inúmeras questões que precisarão ser revistas ao longo do relacionamento. Um exemplo disso, é o ciúme”, explica.
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Quanto ao último fator citado, a psicóloga e CEO da PsicoPass, Rosângela Casseano , o inclui entre as principais dúvidas e suposições que as pessoas fazem acerca de relacionamentos não-monogâmicos e poliamorosos, deixando claro que, tratando-se do ser humano, impor regras e padrões nas formas de relação acaba sendo contraproducente.
“Para muitos, o ciúme ou as crenças na fantasia do relacionamento romantizado modelo mamãe, papai e filhinho podem estar rígidos nas mentes de um dos lados, mas somente um relacionamento fortalecido com pessoas maduras emocionalmente e de mente aberta, sendo suficientemente fortes para compartilhar seus desejos e fazer combinados e contratos seguros conseguirão ser felizes. A questão não pode ter uma resposta padrão, tudo que se refere a ser humano sempre terá as particularidades de cada pessoa e cada familia; não existe uma resposta pronta, o que se sabe hoje é que as pessoas estão cada vez mais abertas para confessarem seus desejos”, comenta.
Além do ciúme, a infidelidade é um termo que também ganha destaque dentro dessas discussões. Virginia Gaia, psicanalista e sexóloga holística, propõem que as pessoas reflitam sobre o que a palavra significa para elas e qual o sentido que ela possui -- ou possuiria -- dentro do relacionamento no qual esse indivíduo está inserido.
“Primeiro é preciso esclarecer o que significa infidelidade para cada pessoa. Discutir esses temas abertamente junto ao parceiro faz parte do processo necessário à abertura do relacionamento. Então, em tese, arranjos não-monogâmicos representam alternativas à infidelidade. Porém, também há casos de traição mesmo em relações abertas, que acontece quando alguém acaba infringindo uma regra da relação”, começa. “Precisa-se entender que um relacionamento aberto, como qualquer relação, é um acordo entre partes. Muitas pessoas ainda acham que relacionamento aberto é sinônimo de bagunça e promiscuidade, mas isso não corresponde à realidade. Para ser saudável, uma relação aberta precisa de regras a serem discutidas abertamente entre todas as pessoas envolvidas na relação”.
Para Rosângela Casseano, a sociedade ainda está embasada em princípios muito sólidos e enraizados, de modo que tudo que foge deles automaticamente gera rejeição e inquietude. Apesar disso, ela também pontua que estar fora dos padrões esperados desperta em muitos o desejo de refletir e se questionar sobre, o que pode ser assustador para algumas pessoas. “Estamos alicerçados em uma sociedade que prioriza questões de valores e moral: a “fidelidade” como um valor juridicamente tutelado, reforçando todos os valores rigidamente impostos pela sociedade e igreja. Mesmo sendo consensual, a relação poliamorosa parece descaracterizar o reconhecimento como entidade familiar de pessoas que decidam viver sua vida de forma mais realista e verdadeira, ou seja, é assustador qualquer novo modelo, pois na verdade ele faz cada um de nós nos questionar se teríamos interesse nessa jornada”.
A receptividade dos novos arranjos
Quando questionados sobre como os amigos e familiares lidam com o fato de formarem um trisal, Isane respondeu que com o círculo de amigos foi tranquilo. Houve bastante curiosidade e eles até incentivaram os três a abrirem o perfil que possuem atualmente no Instagram, já com as famílias o processo foi um pouco mais difícil.
“Quanto aos familiares, cada um teve uma reação diferente de acordo com as suas mentalidades”, explica ela. “Os mais religiosos apresentaram mais resistência, por exemplo. A minha família é a que mais está digerindo ainda, não entendem muito e preferem não conviver demais. Nós dialogamos e tentamos respeitar”.
O trisal comenta ainda sobre alguns dos principais mitos que a sociedade alimenta até hoje sobre relacionamentos poliamorosos. “Um deles é levar a questão sempre para o lado sexual”, Isane começa. “É algo sempre visto como bagunça porque todos estão acostumados ao padrão monogâmico e ao núcleo familiar composto por um homem e uma mulher heterossexuais, com filho, etc. Percebemos que quando falamos que temos um relacionamento a três muitas pessoas acham que não existe amor, apenas sexo, principalmente por conta dessa idealização de que ‘nós só conseguimos amar uma pessoa’”.
Íris emenda trazendo à tona como os indivíduos costumam relacionar um namoro a três com o ménage, que é extremamente fetichizado. “Além do fetiche, sabemos que a bissexualidade feminina ainda não é totalmente reconhecida e também a colocam muito em fetiches para os homens. Tudo isso faz as pessoas verem um relacionamento a três e remeterem a sexo”.
Ela continua pontuando que, além do fato de serem um trisal, eles possuem uma relação aberta. “Um relacionamento aberto poliamoroso nos permite ter envolvimento sexual e romântico com outras pessoas. Vemos que, além do preconceito de sermos um trisal, há também o preconceito com o relacionamento aberto até mesmo dentro do próprio meio poliamoroso porque a maioria das pessoas têm relacionamentos poliamor fechados”.
Eles contam também que além do Instagram possuem um perfil no TikTok e normalmente é por lá que recebem mais comentários negativos, por conta do maior alcance, comumente atrelados a questões religiosas e políticas. Quando questionados sobre os pontos principais que mais merecem reflexão quanto aos arranjos tradicionais de relacionamento, Isane destaca o questionamento do amor romântico idealizado.
“Acho importante a ruptura desse amor romântico exposto e perceber que sim, nós somos capazes de amar mais de uma pessoa. Também precisa-se entender que amor e sexo não são a mesma coisa, ou seja, você pode sentir atração sexual por outra pessoa e continuar amando o seu parceiro. A partir daí, é possível começar a ver esses arranjos não tradicionais de maneira mais naturalizada”, aconselha.
Íris reforça ainda o valor do autoconhecimento na relação. “Romper com esses ideais impostos é entender que nós fomos influenciados de todas as formas, por meio da cultura, da família e da religião, mesmo que de maneira indireta. Lidar com isso é bater de frente com muitas crenças, vivenciar inseguranças, o ciúme e o que ele de fato representa, o apego, etc., então é preciso disposição para lidar com tudo isso. Esse processo [autoconhecimento] ajuda a nos fortalecer”.
Igor emenda: “É um processo de desconstrução pelo qual precisamos passar. Até determinado ponto, aprendemos muita coisa, até o momento em que começamos a questionar. Será que é isso mesmo? Por que não pode ser de outra forma? Você vai ter que desconstruir tudo o que aprendeu, refletir e ver se realmente é isso porque prática e teoria são diferentes”.
Para quem realmente deseja romper com as amarras e experimentar novas possibilidades de relacionamento além do que é apresentado desde que se conhece por gente, Virginia Gaia ressalta: “Diálogo, diálogo e diálogo! E muito autoconhecimento de todas as partes envolvidas. Além disso, é fundamental entender que toda relação tem suas regras, monogâmicas ou não. Trair significa desrespeitar as regras da relação e não necessariamente manter relações afetivo-sexuais com outras pessoas. Tudo isso precisa ser esclarecido, evitando-se a saída tradicional que se faz há milênios, baseada em regras não estabelecidas para uma monogamia presumida, o que acaba sendo difícil de administrar para muita gente. Por fim, vale também a dica geral: ninguém deve abrir a relação por pressão do parceiro (a), nem permanecer em uma relação fechada que não esteja sendo satisfatória. Então, cada vez mais, o diálogo sobre diferentes modelos de relacionamento é necessário”, finaliza.