A reprodução das violências provoca o adoecimento e faz com que os indivíduos cresçam reprimidos e cultivando auto ódio
iG Queer
A reprodução das violências provoca o adoecimento e faz com que os indivíduos cresçam reprimidos e cultivando auto ódio

O Brasil comemora em 12 de outubro o  Dia das Crianças , data que inspira principalmente o  cuidado e atenção às infâncias – sim, no plural, pois existem muitos tipos. Desde o começo da vida, os indivíduos são subjulgados ao  sistema heterossexual e cisgênero que é imposto com todos os seus estereótipos e violências , Tendo em vista essa realidade, no Mês da Criança o iG Queer veicula a série “Pequenos Arco-Íris”, composta por três reportagens que visam debater de que forma as infâncias e juventudes LGBTQIAP+ ainda são negligenciadas, bem como as consequências da construção cis-heternormativa. 

O objetivo deste conteúdo é principalmente provocar reflexões sobre de que forma a LGBTfobia se manifesta desde a primeira infância, levando em conta os dois principais pilares de formação: a família e a escola. Para conseguir acompanhar este debate desde a origem, vale introduzir a princípio de que forma o lar, a estrutura familiar e as repreensões e reproduções da LGBTfobia estrutural contribuem para consolidar na cabeça das crianças a noção de que o “certo” é ser heterossexual e cisgênero. 

“A infância é uma fase muito importante de desenvolvimento porque nosso cérebro absorve mais facilmente alguns tipos de aprendizado durante essa faixa etária” , explica o psicólogo Miguel Bunge. “É uma ‘fase esponja’: a criança está apta para aprender plenamente, por isso é importante aproveitar essas janelas de desenvolvimento. Privar a criança de determinadas referências torna mais difícil que ela as adquira depois”. 

De acordo com o profissional, o acolhimento durante esse período da vida tem um papel crucial, pois é por meio dele que a criança começa a cultivar os próprios sentimentos e percepções de maneira mais saudável. “Por exemplo: o menino que chora. É muito comum que ele seja chamado de ‘chorão’, que ele seja repreendido, que sejam reforçadas ideias como ‘isso é frescura’, ou ‘não pode chorar’. O ideal é que os pais estejam abertos a ouvir ao invés de punir o comportamento dos filhos”. 

Porém, levando em consideração que muitas crianças crescem em ambientes que reforçam estereótipos de gênero e reproduzem constantemente a heteronormatividade como o único modelo possível, existem indivíduos que desde muito cedo se reprimem. Vale lembrar que há pesquisas norte-americanas, por exemplo, que apontam que o primeiro contato com a atração sexual pode ocorrer entre os oito e os nove anos. 

Embora não exista consenso sobre uma idade exata em que a sexualidade começa a se manifestar, é importante manter em mente que ela pode sim surgir na infância, e uma vez que as repreensões começam em tenra idade, fica mais difícil para o indivíduo se desenvolver sem o medo de represálias. “A nossa cultura é homofóbica”, pontua Bunge. “Isso na cabeça de uma criança traz muitos impactos. Quando ela começa a buscar pela própria forma de afeto e vê que aquilo é visto como errado, a tendência é que ela comece a negar a si mesma”. 

O também psicólogo e palestrante Edson de Paula, por sua vez, ressalta que a forma como muitos pais privam os filhos de qualquer contato com a representatividade LGBTQIAP+, além de impedir que os indivíduos cresçam e se desenvolvam de forma a abordar tais temas com naturalidade, diz muito sobre a indisposição desses pais e dessas mães de enfrentarem o assunto. 

“Existem muitos preconceitos concebidos no berço familiar, principalmente aquelas mais tradicionais e que possuem uma formação de caráter muito rígida, que por sua vez dá origem a pais superprotetores. Eles privam os filhos de certos assuntos achando que é uma forma proteção, mas eu costumo dizer que quanto mais proteção você dá para uma criança, mais você inibe ela de crescer e se desenvolver”, explica. 

“Além disso, essa proteção é falsa porque, no fundo, é uma forma de defesa para evitar ser incomodado pelo outro. A partir do momento em que se cria alguém com base nos próprios preconceitos e essa pessoa tenta ultrapassar essa parede, os pais respondem de forma violenta”, ressalta o especialista. 

Miguel Bunge discorre que a consequência mais extrema a curto prazo da constante repressão inclui o suicídio logo na infância. “O preconceito gera uma criança que tenta se esconder e reproduzir comportamentos que não condizem com quem ela realmente é. Eu vejo crianças que tentam usar um tom de voz mais grave para falar, por exemplo, e fazer comentários para meninas dizendo ‘olha, que gostosa’, sendo que nada disso parte deles, e sim de uma projeção externa do que eles supostamente deveriam ser”. 

“Há casos de crianças que se suicidam e deixam relatos dizendo que sentiam medo de frustrar os familiares. O pior desfecho para isso [LGBTfobia enraizada] é uma criança que se mata porque não consegue se encaixar – e ela não tem que se encaixar, e sim ser quem é”, acrescenta. 

Para compreender de que forma as privações e a reprodução dos ideais heterossexuais e cisgênero ganham forma na mente da criança, o Edson de Paula propõe alguns exemplos. “Quando a criança ouve o primeiro ‘não’ da vida dela, ela sente que está sendo rejeitada. Com isso, ela começa a criar imagens e associações. É o mesmo quando a criança cria percepção da própria sexualidade”, esclarece. 

“Se ela gosta de brincar de boneca com as primas, por exemplo, a mãe diz que não pode porque ‘menino não brinca com boneca’, ou ‘menina não brinca de carrinho’ e outras associações como ‘azul de menino’ e ‘rosa de menina’, conceitos que são medíocres hoje em dia”, continua o especialista. “Todos esses impedimentos são formas de violência. Os pais não têm noção do quanto esse ‘não’ possui impacto na criança, porque ela vai criar imagens em cima disso”. 

E quando a escola entra em cena?

Junto à ação da família em casa, as escolas desempenham um papel muito importante na construção do indivíduo, seja de maneira negativa ou positiva. A professora, dinamizadora de leitura e escritora Liliane Mesquita ressalta alguns dos papéis deste ambiente, em especial do ponto de vista da individualidade de cada um. “O ambiente escolar é um espaço propício para o aluno despertar sentimento de pertencimento, estimular o autoconhecimento, na construção da identidade e para o convívio com o grupo e o reconhecimento da diversidade”, destaca.

Para ela, quando uma criança não é devidamente acolhida na escola, as consequências que se desenrolam atingem não só o âmbito acadêmico, mas principalmente a saúde emocional e mental do indivíduo. 

“Independentemente do espaço social, quando uma pessoa não se sente pertencente a um grupo e vive em um ambiente hostil, os danos podem ser profundos, tais como: transtornos emocionais, baixa autoestima, o pensamento que há algo de errado com ela, desestímulo para os estudos, que pode ocasionar a evasão escolar, queda no rendimento, ansiedade, depressão e problemas psicossomáticos e/ou comportamentais”, salienta. 

“Vale lembrar que a educação é um direito de todos”, traz à tona para o debate o professor José Francisco Aparecido. “Nesse sentido, não se trata simplesmente de inclusão, mas sim de direito pautado na Lei Federal nº 8.069, de 13 de junho de 1990. O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) diz em seu Art. 3º: ‘A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros, meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade’”, relembra. 

Para ele, criar ambientes saudáveis é uma premissa básica de qualquer escola, levando em consideração que é onde o indivíduo tem a primeira experiência de socialização. “A promoção de ambientes inclusivos e saudáveis devem ser considerados pelas escolas as principais ações efetivas a serem oferecidas a fim de promover o bem-estar de todos, educadores e alunos, tendo como lema o respeito ao ser humano”, diz. 

Uma vez que não existem políticas públicas que regularizem a abordagem de pautas LGBT para crianças na escola, os preconceitos tendem a continuar sendo difundidos. O escritor e homem gay Eduardo Dias conta que a experiência dele com a homofobia começou ainda nos primeiros anos escolares. 

“Foi na pré-escola”, explica ao iG Queer. “Eu me interessei por um menino da minha classe. Era encantado por ele e não sabia explicar o motivo. Quando eu comecei a sofrer bullying por causa disso foi uma época bem confusa. Eu já tinha ouvido essa palavra [gay], mas não sabia o que era. Para mim, gays eram como travestis, então foi um momento conturbado devido ao meu pouco entendimento”. 

Ele ressalta ainda que a falta de amparo e respaldo para enfrentar as represálias deixou marcas que se perpetuaram por muito tempo. “Foi uma fase bem solitária porque é um momento em que você não pode se abrir com ninguém. De certa forma, você sente que tem ‘algo de errado’ porque não pensamos igual aos outros. Eu não olhava para as meninas da mesma forma que os meus amigos. Eu também nunca gostei de falar sobre carros ou jogar futebol, por exemplo. Todas essas questões só foram se encaixar quando eu me descobri de fato, depois dos 20 anos”, esclarece. 

Herbe de Souza, por sua vez, diz que descobriu o conceito de preconceito na escola. A professora trans compartilha que foi quando ela saiu do ambiente familiar e começou a socialização de fato que sentiu os primeiros requintes de violência. “Na pré-escola, um menino com seis anos me chamou de pederasta [homem que faz sexo com outros homens mais jovens] na saída da escola. Só depois de mais velha que eu lembrei dessa ocasião e fui começar a pesquisar sobre para entender pelo que eu tinha passado”. 

Ela destaca ainda que a imposição de rótulos e pressões externas, além do preconceito em si, não dá espaço para que a pessoa LGBT se descubra e se compreenda de maneira tranquila e saudável. Ela já cresce sentindo que há algo de errado em si mesma. “Eu tenho 42 anos hoje. Na época em que estudei, não tínhamos muita informação. O termo travesti, por exemplo, era totalmente ligado à prostituição. Eu só fui me assumir aos 35 anos porque eu não queria ser aquela imagem marginalizada que me foi ensinada na infância”. 

Enquanto educadora, ela pontua que o papel dos professores e da escola em si é ter um olhar sensível para as vivências dos alunos, justamente para evitar que essa criança seja discriminada e violentada. “Pelos trejeitos, posicionamentos e atitudes, as crianças estão sujeitas a sofrer certas violências na escola, então cabe a nós garantir proteção. Na escola onde eu trabalho, por exemplo, nós já naturalizamos algumas questões desde cedo: há professores homens, professoras mulheres e eu, que sou travesti. As crianças convivem com a gente, nos veem e percebem que somos diferentes e está tudo bem. Enquanto professora, eu explico essas diferenças e que cada um é de um jeito, mas que ninguém merece ser violentado por isso”. 

Contudo, ainda existe resistência para que temas relacionados a gênero e sexualidade sejam trabalhados abertamente em sala de aula, principalmente por parte de pais conservadores. Herbe contra-argumenta com o fato de que para a criança não existem segundas intenções. “Para alguns pais é natural apoiar que o filho de três anos tenha uma namoradinha, por exemplo. ‘Ai, com três anos e já é um garanhão’”, diz ela. “E na verdade as crianças gostam de afeto. Às vezes, elas só estão reproduzindo o que veem em casa entre o pai e a mãe. Só que o adulto vê na criança uma maldade que não existe. As crianças chegam na escola sem preconceito, mas os adquire, muitas vezes, por conta das crenças da família”. 

Sobre o papel da escola na luta por desconstruir a cis-heteronormatividade e promover ambientes mais saudáveis, seguros e abertos para diálogo, o psicólogo Gilmaro Nogueira ressalta que é preciso diferenciar debates sobre sexualidade de sexualização, pois são duas situações completamente opostas e às vezes propositalmente confundidas para impedir que o assunto seja abordado. 

“É preciso entender que a defesa de um ambiente de inclusão não significa a defesa do ensino sexual para a criança, como alguns dizem”, pontua. “Pensar em espaços inclusivos consiste em acolher as diferenças, ou seja, a escola precisa entender que desde cedo os sujeitos vão demonstrar identificações e afeto por pessoas do gênero oposto ou do mesmo gênero. Essas instituições precisam desfazer quaisquer ideias não científicas de que apenas uma orientação sexual é normal ou melhor e ressaltar que as pessoas precisam ser respeitadas independentemente da sexualidade”. 

O especialista aponta também o fato de que debater diversidade é um processo complexo e que merece atenção e acompanhamento, pois se trata de vivências delicadas e sujeitas a passar por violências que deixam marcas graves. “É preciso ter sensibilidade”, explica. “Nem sempre isso [sexualidade e identidade de gênero] vai ser verbalizado e demonstrado, uma vez que quem é reconhecido como LGBT+ é socialmente violentado ou desconsiderado, então a escola deve propiciar um espaço de conversa sobre direitos humanos e respeito às diferenças”. 

“Falar sobre isso na escola não é influenciar”, Eduardo Dias se posiciona. “É sobre tentar fazer com que as crianças se sintam seguras de estar em um ambiente em que possam ser elas mesmas, caso contrário é muito destrutivo. Eu lembro que tinham professores na minha escola que também faziam comentários homofóbicos. Você está em um lugar de formação, e se a formação que você recebe diz que você está errado ou que só há uma forma de existir, as taxas de suicídio vão continuar subindo. Se as pessoas se preocupam tanto com as crianças, deveriam se preocupar também em gerar espaços seguros”, conclui.

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