O major-general Abdulaziz Abdullah Al Ansari, presidente do Comitê Nacional de Contraterrorismo do Catar, disse que o país não toleraria manifestações LGBTQIAP+ com bandeiras dentro dos estádios. Em contrapartida, a Fifa afirmou que permitirá a presença de bandeiras arco-íris.
James Kirkup/Unplash e Montagem iG
O major-general Abdulaziz Abdullah Al Ansari, presidente do Comitê Nacional de Contraterrorismo do Catar, disse que o país não toleraria manifestações LGBTQIAP+ com bandeiras dentro dos estádios. Em contrapartida, a Fifa afirmou que permitirá a presença de bandeiras arco-íris.

Desde que o Catar, país localizado na península árabe, foi anunciado como sede da Copa do Mundo 2022, a atenção do mundo se voltou para as diferenças culturais que o megaevento, ao ser realizado em um país do Oriente Médio, poderia proporcionar.

O país - que faz fronteira com a Arábia Saudita, vizinho de outros países ultraconservadores, como os Emirados Árabes e o Iraque  -  é criticado pelas violações aos direitos humanos , em especial o tratamento dado aos trabalhadores imigrantes, que inclusive construíram os estádios que serão palco do evento, além da posição governamental e religiosa conservadora sobre os direitos das mulheres e das pessoas LGBTQIAP+, população que foi acusada de sofrer  “dano mental” , pelo Embaixador do Catar na Copa e ex-jogador da seleção de futebol do país, Khalid Salman.

Em uma entrevista à emissora alemã ZDF, Salman afirmou que o Catar tolerará visitantes homossexuais durante o evento esportivo, mas "eles têm que aceitar nossas regras". Ele ainda disse acreditar que a homossexualidade é um "haram" - pecado proibido no religião islâmica.


No mesmo dia que a entrevista foi veiculada, manifestantes se concentraram em frente ao Museu da Federação Internacional de Futebol (Fifa) em Zurique, na Suíça, para reivindicar que a segurança da comunidade LGBTQIAP+ seja garantida durante o campeonato.

Maurício Santoro, professor doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), acredita que o perfil conservador do país, alinhado aos limites geográficos, colocam em questão as decisões da Fifa, a partir da escolha do país para sediar o evento.

"Será um choque cultural muito grande um país tão pequeno e conservador receber um número grande de turistas, que se estima que pode chegar a um milhão, muitos destes vindos de países que têm outras tradições culturais e abordagens diferentes com relação à sexualidade", comenta o professor, que acredita ser muito provável que haja diversos conflitos envolvendo as questões de direitos humanos na Copa deste ano.

"Já vemos manifestações prévias do que pode acontecer durante o campeonato. Por exemplo, a seleção da Dinamarca pediu recentemente para treinar com uma camisa que teria uma mensagem sobre direitos humanos, o que foi vetado pela Fifa. Algumas seleções europeias, como a alemã, a francesa e a inglesa, já afirmaram que vão jogar com uma braçadeira com a bandeira do movimento LGBTQIAP+", diz.

Braçadeira do movimento 'One Love'.
Alex Livesey - UEFA/UEFA
Braçadeira do movimento 'One Love'.


A braçadeira faz parte da campanha 'One Love', liderada pela Federação Holandesa. As cores vermelho, preto, verde, representam origem e raça; já as rosa, amarelo e azul, identidade de gênero e sexualidade.

O adereço foi vetado pela Fifa, que se coloca como apolítica e, portanto, "não se manifesta sobre questões da política interna de cada país que sedia a Copa", informa o professor, que lembra ainda que o regulamento interno da instituição proíbe as manifestações políticas por parte dos atletas. 

Mesmo com a censura, alguns jogadores pretendem utilizar o símbolo de protesto, como o centroavante inglês, Harry Kane , que já costuma utilizar o adereço e afirmou que pretende usar durante os jogos, mesmo passível de punição.

Participação no evento pode abalar saúde mental da população LGBT+

Para entender o dano psicológico que a estrutura LGBTfóbica que o Catar oferece à população queer pode gerar é preciso avaliar duas premissas importantes, segundo a doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília (UnB) e professora pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), Jaqueline Gomes de Jesus.

"O primeira é se as pessoas LGBT+, que irão ao evento, têm a consciência do ambiente opressor que irão encontrar por lá. Se a pessoa vai com essa consciência, isso é um ponto significativo, porque ela compreende o risco que está correndo", afirma a doutora que salienta que essa consciência já é um tipo de violência, "porque gera uma ansiedade de saber que não haverá segurança".

A segunda premissa, se contrapõe à primeira: "Quem não tem plena consciência desses fatos, eu avalio que, provavelmente, são as pessoas que creem estarem protegidas por meio do dinheiro, do acesso, de recursos que, na condição de estrangeiros, as ajudarão a não serem afetadas por essa LGBTfobia estabelecida".

Para a especialista é obrigação da Fifa organizar ações que visam proteger os atletas, integrantes das delegações e turistas LGBT+ diante das ameaças à  segurança física e emocional.

"Uma vez que o Catar se posiciona, inclusive legalmente, contra a diversidade de orientações sexuais e identidades, cabe à Fifa promover mecanismos de segurança e de acompanhamento, inclusive psicológico, porque não é só a ação policial em caráter de proteção que vale, também é necessário a escuta e o aconselhamento, já que se trata de um ambiente violento e psicologicamente danoso à população LGBT+. A instituição precisa investir nestas questões", afirma.

Leonardo Peçanha, educador físico e doutorando em Saúde Coletiva pela Fundação Oswaldo Cruz (IFF/Fiocruz), corrobora com as críticas de Jaqueline à Federação.

"Ela [a Fifa] precisa, de alguma forma, garantir algum tipo de punição ou retaliação caso aconteça algo com a segurança dos atletas ou das pessoas da comunidade queer que estarão no Catar", afirma o professor, que salienta que a falta de posicionamento coloca nas pessoas, e não nas instituições, a responsabilidade por segurança.

"Quando se coloca pessoas de diversos lugares do mundo em um país que é contrário à expressão de diversidade, e nenhuma atitude é tomada, isso significa deslocar a responsabilidade de segurança para os próprios atletas, às delegações - que também podem ter pessoas LGBT+ - e aos torcedores da comunidade queer que estarão no campeonato", afirma.

Estrutura de sociedade conservadora

Protestantes se beijam em frente a sede da Fifa no Suíça.
Reprodução/Youtube AFP Português 09.11.2022
Protestantes se beijam em frente a sede da Fifa no Suíça.


O Catar é um país muito conservador e qualquer manifestação pública de afeto é mal recebida, independentemente da  orientação sexual e identidade de gênero. Contudo, para a comunidade queer a situação é mais grave.

Desde 2004 está sinalizado no código 1º do Código Penal do país que os tribunais podem aplicar a Lei Sharia – sistema jurídico do Islã – para impor pena de morte a homossexuais, segundo o  Relatório 2020 de Homofobia do Estado da International Lesbian and Gay Association (ILGA) (Associação Internacional de Gays e Lésbicas, em tradução).

Segundo a professora doutora de História Árabe do Curso de Árabe do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo (USP), Arlene Clemesha, para a sociedade catari não existe namoro e noivado. "Ou você casa, ou não casa", diz. A especialista ainda afirma que esses acordos fazem parte da estrutura conservadora que esta sociedade está baseada.

"E não é só no Catar, na Arábia Saudita é pior ainda. Os Emirados Árabes, mesmo que sejam muito receptivos com turistas e se apresentem como uma metrópole moderna, também têm uma sociedade em si muita conservadora, tanto quanto estes outros países do Oriente Médio", afirma a doutora, que faz um comparativo com o Brasil: "Não precisamos ir muito longe. Todos esses costumes são defendidos pela extrema direita brasileira".

Clemesha explica ainda que esses arranjos matrimoniais heterossexuais não são apenas fruto da tentativa de manter costumes conservadores vivos, mas que também têm ligação com a concentração de renda.

"É uma questão de acesso à renda do gás natural e do petróleo, grandes fontes que movimentam a economia do Catar. A elite casa entre si para que essa riqueza se perpetue nas mesmas famílias”, diz.

A professora conta também que a tentativa do Catar, bem sucedida neste ano, de realizar a Copa do Mundo, o que o tornou o primeiro país do Oriente Médio a receber o evento, é parte de uma tentativa de "internacionalização do país".

"É um país muito pequeno, que tem uns dividendos consideráveis do gás natural, e que vem há muito tempo, como parte da política de Estado, tentando sediar grandes eventos, conferências internacionais, grandes debates e mediações geopolíticas, como por exemplo, a mediação da retirada dos Estados Unidos do Afeganistão, que aconteceu no Catar [...] Ou seja, um pequeno país que se coloca na cena internacional, de igual a igual, mesmo que viva um dia a dia geopolítico complicado na região, especialmente com a Arábia Saudita, que é inimiga do Irã, país que o Catar apoia", finaliza.


Agora você pode acompanhar o iG Queer também no Telegram!  Clique aqui para entrar no grupo. Siga também o  perfil geral do Portal iG.

    Mais Recentes

      Comentários

      Clique aqui e deixe seu comentário!