Os números são chocantes, mas 90% das travestis e mulheres transexuais do Brasil têm a prostituição como fonte de renda. De acordo com dossiê de 2020 emitido pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), de Salvador, na Bahia, "o mercado de trabalho ainda enfrenta desafios internos para a contratação ou efetivação de pessoas trans".
Para reverter esta realidade, algumas iniciativas oferecem capacitação e apoio para inserir pessoas trans e travestis no mercado de trabalho. É o caso do Capacitrans, TransEmpregos e Curso Es(trans)geiros.
Ao iG Queer, seus fundadores explicaram como as iniciativas funcionam e como foram criadas.
Capacitrans
A cabelereira, maquiadora e microempreendedora Andrea Brazil, 48, usou a transfobia que sofreu no mercado de trabalho como o ponto de partida para a criação do Capacitrans.
O projeto, sediado no Rio de Janeiro, capacita pessoas LGBTQIA+ para que elas não dependam da prostituição ou de empresas que não sejam inclusivas para sobreviver.
"As exclusões, os preconceitos em ambientes corporativos, todo tipo de discriminação que eu já passei na vida me transformam, primeiro, em uma empreendedora", disse a travesti que, no ano 2000, se tornou cabelereira e abriu um salão de bairro no Rio.
Hoje, o Capacitrans oferece diversos cursos relacionados a beleza e moda, áreas nas quais Andrea tem formação e experiência. "De uma forma geral, a gente tenta ajudar todo mundo a empreender", explica a fundadora do projeto, que já passou fome e precisou se prostituir antes de ter o seu próprio negócio.
Além dos cursos oferecidos, o Capacitrans tem um site para divulgar o trabalho de pessoas LGBTQIA+. O projeto também fecha parcerias com várias empresas, mas atendendo apenas "empresas que a gente sabe que, realmente, combatam a exclusão de pessoas trans e travestis e que trabalham com a diversidade desde o topo, desde a chefia", diz Andrea.
TransEmpregos
A advogada e empresária Márcia Rocha, 56, por outro lado, não sofreu na pele com a transfobia no mercado de trabalho, pois começou sua transição depois de já estar estabilizada profissionalmente, em 2011. Em parceria com a cartunista Laerte Coutinho, a consultora Maite Schneider e a psicanalista Letícia Lanz, ela criou a TransEmpregos .
"Eu não sofri nada em mercado de trabalho, porque eu sou empresária e me assumi depois de já ter empresas, ser advogada e ter uma situação estabilizada", conta Márcia, explicando que, antes de se garantir profissionalmente, dificilmente teria coragem de transicionar.
Mesmo não sofrendo com a discriminação na pele, ela sempre conversava com pessoas trans sobre empregabilidade. "Tantas pessoas que a gente conhecia que queriam se assumir, fazer a transição e não podiam porque perderiam o emprego. E outras que conhecíamos que tinham transicionado e que não conseguiam se colocar de jeito nenhum", contou.
A TransEmpregos foi criada em 2013 com o objetivo de garantir emprego e dignidade a pessoas trans e travestis. No início, o trabalho consistia em juntar currículos e apresentá-los nas empresas para possíveis contratações. Mas, com o tempo, o projeto passou a oferecer, também, auxílio às empresas na criação de um ambiente acolhedor. Atualmente, a TransEmprego trabalha em parceria com empresas que querem fazer mudanças sociais em suas estruturas.
Curso Es(trans)geiros
O jornalista e professor Thiago Peniche, 23, fundou um curso de inglês que oferece bolsas de até 100% para trans e travestis. O projeto começou timidamente em abril de 2019, em um igreja no centro do Rio de Janeiro. O Es(trans)geiros, agora on-line por causa da pandemia, é feito por e para pessoas trans, mas também tenta ajudar pessoas de baixa renda e que estejam desempregadas.
Thiago se assimiu trans muito cedo e em um contexto em que não existiam figuras públicas que eram homens trans, como o ator Tarso Brant ou vereador de São Paulo Thammy Miranda. "Foi nesse momento da minha vida que eu fui tentar o meu primeiro emprego como professor de inglês. Naquela época, eu cometi um grande erro que foi colocar meu nome de registro no currículo", conta em seu Instagram.
Quando finalmente foi contratado, ele pediu que a coordenadora da escola o chamasse de Thiago. Apesar de ter topado em um primeiro momento, no dia seguinte ela disse que chegou à conclusão de que "seria muito ruim para a imagem da empresa ter um professor trans porque você ele ia lidar com crianças e pais, que muitas vezes são transfóbicos". A profissional justificou que a escola não poderia perder clientes e que, se Thiago fosse uma mulher lésbica, "seria mais fácil".
Precisando de dinheiro, Thiago se submeteu àquelas condições, sem encontrar outras oportunidades de emprego. Depois de alguns meses de pressão e transfobia, o professor acabou se demitindo e tendo como resposta de sua chefe: "Se eu soubesse que você era trans, eu não tinha te contratado".
Hoje, o Es(trans)geiros conta com cinco professores, três deles trans. Thiago diz que uma das formas de ajudar o projeto é apadrinhando uma pessoa para que ela possa estudar no curso. Além disso, ele também está sempre divulgando vaquinhas para arrecadar fundos e conseguir tocar o projeto, que aborda questões sociais, de gênero e raça nas aulas.