A tatuadora Rose Anne Macfergus, 52, nasceu em Uruguaiana (RS). Ela conta que não tem nenhuma lembrança boa da infância. "Tive algum sossego até os sete anos de idade, até meus pais se separarem." Rose foi violentamente agredida desde muito nova, como conta no depoimento a seguir. No relato, fala como foi crescer sendo espancada em casa, na rua e na escola -- e os efeitos disso na vida adulta: "Ninguém tem sanidade para passar por tudo isso sem ficar doente, maluca."
"Até os meus sete anos de idade, meus pais brigavam muito. Depois que eles se separaram, eu me tornei o centro das atenções. Foi quando começou uma fase de terror na minha vida. Eu vivia sob constante vigilância. Qualquer sinal de feminilidade era punido com violência.
A forma como a minha mãe lidou com a minha transexualidade foi muito violenta. Só tenho traumas da infância. Não tenho nenhuma boa lembrança. Depois da separação, morávamos eu, ela, meu padrasto e três irmãos: dois mais novos e um mais velho.
Eu passava os meus dias tentando esconder meu comportamento feminino, mas, apesar de saber que era muito perigoso, não podia evitar. Eu nunca tive controle sobre isso, mesmo sabendo que eu ia ser arrebentada em socos. Qualquer gesto com um pouco mais de delicadeza era o suficiente para eu receber um pontapé, um soco, um tapa.
Fui agredida muitas vezes. Apanhei do meu padrasto, da minha mãe, do meu irmão mais velho, de primos. Uma vez, parei no hospital de tanto que apanhei deles. O meu irmão mais velho arrancou dois dentes meus me dando socos. A minha mãe me espancava com o que encontrava pela frente: cabo de enxada, mangueira, o que fosse.
Nunca tive brinquedos ou roupas diferentes dos meus irmãos, mas usava a criatividade para fazê-los. Se eu quisesse uma boneca ou uma roupinha diferente, eu tinha que fazer. Aprendi a costurar e fazia. Mas se alguém encontrava essas coisas, era motivo de tortura. Eu era uma criança que vivia isolada e com medo. Não brincava com ninguém ou na frente dos adultos.
Aos 12 anos, fui estuprada por um homem de 30 anos que era amigo da família. Ele frequentava a mesma igreja que nós. Como eu vivia trancada em casa, esse cara se aproveitou disso: entrou lá e me estuprou. Ele me machucou muito. Eu não sabia o que fazer. Eu já tinha todo tipo de problema com a minha família, que me via como uma pecadora, uma criminosa. Eles não podiam saber daquilo. Logo depois, tentei me matar.
Você viu?
Este mesmo homem que me estuprou, uma vez, estava com meu irmão mais velho e os dois me atacaram quando eu estava voltando da escola. Eles amarraram as minhas mãos e os meus pés, colocaram um saco na minha cabeça e me jogaram no porta-malas de um carro. Fiquei trancada do meio-dia até umas sete ou oito horas da noite. Eu sentia que tinha morrido. Nem sei dizer o que passou.
Fui resgatada porque a minha mãe achou que eu tinha fugido de casa e disse que chamaria a polícia. Meu irmão ficou com medo e contou onde onde eu estava. Quando me encontraram, estava desacordada. Eu acho que só não morri naquele dia porque o diabo não me queria, mesmo.
A gente morava longe da cidade. Eu só foi matriculada na escola aos dez anos de idade, mas não durou muito tempo. Tinha medo de andar sozinha pelo colégio. Com 14 anos, uns garotos mais velhos tentaram me estuprar no banheiro da escola. Arrancaram a minha roupa, um deles esfregou o pinto em mim, mas não conseguiram me penetrar porque, nessa época, eu já estava começando a aprender a reagir. Gritei e bati neles. Por causa disso, fui expulsa da escola.
Quando cheguei em casa, apanhei do meu padrasto, que me culpou pelo ocorrido. A culpa era sempre minha. Cresci sendo acusada, culpada e condenada por tudo. Depois disso, nunca mais voltei a estudar.
Com 15 anos, saí de casa. Não aguentava mais. Sem dinheiro, sem profissão, sem nada, preferi ir para a rua para não ser morta dentro de casa pelas mãos da minha família. Ninguém tem sanidade para passar por tudo isso sem ficar doente, maluca. Sou alcóolatra, depressiva e dependente química. Não durmo direito. Meus pesadelos me fazem até mijar na cama.
Essa é a história de mulheres trans e travestis no Brasil. Não foi uma raridade o que aconteceu comigo. Essa é a parte mais triste. Não conheço ninguém que é trans e que tenha 50 ou 60 anos, como eu, que não tenha passado por toda essa desgraça. Falo com a minha mãe no Natal e no aniversário, mas não tento me aproximar. Ela não se arrepende de nada. Diz que só queria me corrigir. Minha mãe foi muito maltratada, como ela fez comigo. A diferença é que eu tenho consciência e ela, não.
Se eu pudesse escolher, nunca escolheria ser trans. Tentei evitar isso a vida inteira. Quis ser qualquer outra coisa, menos eu mesma. Não queria ter passado pelo que passei e não queria que ninguém passasse. Não tenho futuro. Como trans, as opções são ser puta, criminosa. É viver desse jeito e ficar velha e sem nada, pensando que, a qualquer momento, posso voltar para a rua e morrer lá.”