Toda mulher trans sabe o quanto é difícil passar pela transição
e ser alvo de olhares e comentários por todos os lados. Eu não lidava bem com minha transgeneridade. Por mais que a minha cidade inteira soubesse, não era algo que saía da minha boca. Eu não gostava de falar para as pessoas que sou trans, era muito insegura com relação a isso, tal como muitas meninas também são. Esse processo inicial é bem difícil. Acho que os primeiros anos são os mais difíceis e, no meu caso, durou até cinco anos até melhorar.
Eu me formei na faculdade de Biologia em 2014. Procurei emprego na minha área, tinha o sonho de me tornar professora , mas eu não tinha acesso a esse tipo de trabalho. Nasci e fui criada em Catalão, no interior de Goiás, uma cidade pequena, de pouco mais de 100 mil habitantes, próximo à divisa com Minas Gerais. Lá, todo mundo me conhecia, já tinha passado pelo processo de transição, mas meus documentos não eram retificados .
Eu me passava muito por uma pessoa cis e não falava por nada sobre a minha sexualidade. As pessoas sabiam, mas não era da minha boca e elas nunca tiveram coragem de vir na minha frente e perguntar na cara. Era sempre por meio de fofocas, cochichos, dedos apontados e era horrível. Tinha gente que gritava de longe. Era terrível! De todo modo, eu tinha uma casca muito grossa e, se alguém viesse falar torto comigo, brigava e era muito reativa. Era uma forma de me defender.
Foi então que resolvi tentar arrumar emprego em uma cidade maior, em Uberlândia, em Minas. Consegui um trabalho em uma empresa grande, foram dois anos ali trabalhando como analista de pesquisa internacional – o nome parece ser chique, mas eu era apenas uma telemarketing backoffice, analisando documentos para um banco. Durante esse período, sofri muito assédio moral no trabalho. A minha supervisora me perseguia muito por eu ser trans. A máquina de bater ponto, por exemplo, exibia seu nome em uma tela grande e meu nome morto ficava exposto para todo mundo ver. Aquilo me dava muito gatilho. Certa vez, essa supervisora chegou a me dizer que eu “me importava demais com coisas que não precisam”. É aquela velha história de gente cisgênero querendo opinar sobre a vida das pessoas trans, sendo que elas não sabem o que é se sentir assim.
Algumas pessoas de outros setores sabiam que eu era trans, pegavam os amigos, vinham passando no meu setor e apontavam para mim mostrando “aquela menina é trans”. Eu me sentia em um verdadeiro circo, juro por Deus. Ou poderia ser um bicho que estava em um zoológico. Nunca me chamaram no masculino, mas sempre tinham essas questões dos olhares.
A partir daí fui desenvolvendo ansiedade crônica e tive uma crise de pânico imensa. Percebi que, toda vez que eu acordava, fazia uma contagem regressiva de forma negativa até ir trabalhar. Meu coração acelerava, eu passava mal, comecei a desenvolver gastrite nervosa por causa disso, tremia muito. Me lembro que, dentro do ônibus, em direção ao trabalho, eu queria me esconder, não queria que me vissem e o fim do expediente era a melhor hora do meu dia. Quando chegava em casa era um alívio, mas ficava deprimida ao pensar “amanhã tenho de voltar para lá”. Tinha dia que eu ia para o banheiro chorar. Por este motivo, decidi sair desse trabalho e voltei para minha cidade natal.
Eu tinha muito medo de ficar sem emprego porque eu teria de voltar a morar na casa do meu pai e nossa relação não era muito boa. Naquela época eu não tinha medo de cair na prostituição porque meu pai me ajudava muito, por mais que tivéssemos uma relação conturbadíssima. Me prostituir (algo infelizmente comum entre mulheres trans que não conseguem um emprego) não era algo que eu ia precisar. Sinceramente, hoje em dia eu tenho mais medo disso porque já não moro mais com o meu pai, não dependo financeiramente dele, e tenho medo disso.
Virada na vida
Certo dia, veja só a loucura que me aconteceu: um amigo meu resolveu tirar o tarô para mim. Nessa época, eu ainda não me aceitava como uma mulher trans e não queria lidar com isso. Quando ele foi descendo o baralho na mesa, apareceu a carta da torre para mim. No contexto, ele me disse que eu “deveria aceitar quem eu sou ou tudo iria ruir”. Esse foi o momento-chave da minha vida. Foi muito libertador para mim.
Fui embora pensativa, estava sofrendo com as várias formas de transfobia que eu vinha sofrendo e procurei um outro amigo e fiz uma proposta:
- Você topa me ajudar a produzir um vídeo sobre transfobia?
- Você tem certeza?
- Tenho. Não aguento mais ficar presa dentro de mim mesma.
A Mandy Candy era a única youtuber trans que tinha e eu a assistia muito. Me ajudou demais a me entender, me abrir e ter coragem para isso. Quando eu a via, ficava chocada que ela falava abertamente sobre as questões dela. Foi muito importante para mim. Eu ainda não tinha meu canal e pensei “o que vou fazer da minha vida?”. Eu gostava de assistir aos vídeos, era atriz formada e pensei que poderia unir essas duas áreas.
Decidi fazer meu primeiro vídeo sobre transgeneridade: uma pequena esquete, que deu bastante visualização, mas – por eu ser uma trans passável – as pessoas começaram a elogiar “nossa, que legal você fazendo um vídeo sobre as vivências que não são suas”. Percebi que as pessoas estavam entendendo tudo errado justamente porque eu não estava sendo clara. Foi nesse momento que resolvi começar a falar sobre esse assunto mais abertamente.
No Youtube , eu fui me abrindo, me aceitando mais. Foi algo bizarro! A partir daí, tudo começou a acontecer. Nunca me senti tímida para fazer meus vídeos. Sempre me senti muito à vontade, como uma forma de desabafo, para me libertar daquilo, para colocar para fora tudo o que era angústia aqui dentro.
Depois daquela carta da torre, a minha vida ficou muito melhor. Não só por ter me impulsionado a criar meu canal no Youtube, mas a minha relação comigo mesma melhorou muito. Eu entendi que estava tudo bem ser quem sou. O mundo é que estava errado!
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