A falta de pesquisas sobre o câncer e o preconceito da classe médica pode fazer com que pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ desistam de procurar por prevenção e tratamento da doença
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A falta de pesquisas sobre o câncer e o preconceito da classe médica pode fazer com que pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ desistam de procurar por prevenção e tratamento da doença


É celebrado nesta segunda (8/4) o Dia Mundial da Luta Contra o Câncer, importante data que joga luz ao tema. Para a comunidade LGBTQIAPN+ , a ida ao consultório médico pode incluir uma série de dificuldades, geradas principalmente pelo preconceito  e falta de preparo da comunidade médica para lidar com essa população.

Uma pesquisa publicada no ano passado pela revista “Clinics” indicou, por exemplo, que pessoas pertencentes à comunidade queer fazem consideravelmente menos exames de prevenção ao câncer que pessoas cisgênero e heterossexuais.


Entre as mulheres cis e heterossexuais, a realização de exames como o papanicolau e a mamografia, importantes para a prevenção do câncer de mama e colo de útero, chega a 75%. Entre as mulheres  lésbicas e bissexuais , esse número diminui para apenas 39% e 40%, respectivamente.

Ainda segundo a pesquisa, essa disparidade também fica evidente na detecção do câncer colorretal: apenas 50% das pessoas LGBTQIAPN+ fizeram exames nesse sentido, enquanto esse número sobe para 57% para as pessoas não pertencentes à comunidade.

Estudos como este são raros entre os pesquisadores da área médica. Segundo Luís Felipe Vantine, médico oncologista no Hospital Israelita Albert Einstein, há uma deficiência nos bancos de dados nacionais e internacionais quando o assunto é câncer entre pessoas LGBTQIAPN+.

“Na maior parte das vezes os bancos de dados de pesquisas sobre câncer não contemplam os registros de orientação sexual e identidade de gênero, o que denota uma certa invisibilidade da comunidade queer nos dados oficiais de saúde da população”, explica.

O oncologista alerta para a importância da realização dos exames de prevenção, como a mamografia, o papanicolau e a vacinação precoce contra o papilomavírus humano, o HPV — potencial causador de câncer de colo de útero, câncer de ânus e canal anal, além de alguns cânceres na garganta.

O especialista alerta para a falta de preparo dos hospitais e da classe médica para receber essa população, o que dificulta a realização dos exames preventivos e pode explicar o resultado obtido pela pesquisa da revista Clinics.

“Acredito que a principal dificuldade na prevenção e tratamento de câncer na população LGBT é o fato dos serviços de saúde e os profissionais não estarem preparados para lidar com a nossa comunidade”, relata.

Ele continua: “Seja na falta de protocolos específicos ou até no preconceito e homofobia, o que faz com que muitos indivíduos LGBTs não se sintam acolhidos e acabem não realizando exames de rastreamento que são tão importantes no diagnóstico precoce do câncer.”

O câncer é a segunda principal causa de mortes pelo mundo, segundo a OMS.
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O câncer é a segunda principal causa de mortes pelo mundo, segundo a OMS.

O preconceito e suas consequências

A dificuldade apontada por Luís Vantine se traduz não só entre oncologistas, mas na classe médica em geral. Gabriel* (nome fictício), pessoa  transmasculina não-binária entrevistada pela reportagem, foi desrespeitado por um cirurgião que se recusou, em primeiro momento, a fazer a cirurgia de mastectomia no rapaz.

“Ele falou que olhava para mim e não via uma pessoa trans. Ele olhava para mim e via uma menina que estava sendo influenciada por diversas razões para fazer uma cirurgia que ‘agora é moda’, que ele não se sentia confortável fazendo cirurgia e não estava confiante na minha identidade”, relata.

“Eu já estava me achando muito masculino quando eu fui para lá. Eu fui com a minha roupa mais masculina, eu fui pronto, sabe? Eu engrossei a minha voz e tal. Eu saí [do consultório] e chorei. Meu namorado estava comigo e questionou o médico: ‘Quem você acha que é para dizer isso?’”, conta.

O preconceito deixou marcas profundas em Gabriel*. “Eu sempre vou conhecer pessoas novas esperando algo ruim, eu nunca espero que alguém vai ser acolhedor para mim”, finaliza.


Maria Matheus Bortoleto Cury é estudante da Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto, e se identifica como transmasculino não-binário assim como Gabriel*. O estudante relata ter esperado muito tempo para ir a um ginecologista, por medo do constrangimento que poderia ser gerado pelo seu nome e escolha por pronomes masculinos.

“Eu fiquei um bom tempo sem ir ao ginecologista, por desconforto [...] Eu não me sentia confortável de ir em clínicas do meu plano de saúde ou clínicas particulares. Eu já tinha ido nelas aqui em Ribeirão Preto e eu não me sentia confortável para ir novamente, porque eu não tinha tido uma boa impressão”, conta.

Matheus só se sentiu seguro quando utilizou o serviço oferecido pela universidade aos alunos, a Unidade Básica de Saúde (Ubas): “Essa foi a única forma que eu consegui ir ao ginecologista, mas eu fiquei um ano e pouco sem ir, sendo que eu tenho questões médicas que me fazem ter que ir ao médico com frequência.”

Possíveis soluções

O Brasil dispõe da Política Nacional de Saúde para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais e Travestis, instituída em 2011. O documento, atualizado pela última vez em 2013, reconhece as dificuldades vividas pela comunidade e procura estabelecer protocolos de atendimento para essa população.

O esforço da comunidade médica como um todo para adotar os protocolos é tão importante quanto a elaboração de políticas governamentais. O Núcleo de Medicina Afetiva (NuMA), da cidade de São Paulo , é uma iniciativa que reúne médicos de várias especialidades interessados em tratar a comunidade LGBTQIAPN+ com a dignidade e o respeito necessários.

Psicólogo no NuMA, Henry Jorge Bartholomeu acredita que o tratamento humanizado começa por reconhecer o sofrimento e as necessidades do paciente de forma abrangente.

“Nos termos da ética do cuidado, o profissional deve estar sinceramente presente e afetado por aquele encontro, além de estar ciente de suas próprias questões para poder oferecer um cuidado de qualidade para quem o procura”, explica.

Henry oferece um caminho, indicando algumas diretrizes: “O tratamento humanizado para a comunidade LGBTQIAPN+ inclui perguntar qual pronome a pessoa prefere utilizar, respeitar o uso do nome social e entender que cada indivíduo tem o direito de definir sua orientação sexual, identidade de gênero e expressão de gênero.”

O psicólogo ainda reforça a importância do oferecimento de serviços voltados especificamente a essa população, tanto no setor público quanto no setor privado. Para o profissional, a medida incentiva a comunidade a procurar por ajuda profissional na área da saúde.

“Além disso, é importante buscar profissionais treinados em práticas afirmativas, especializados no cuidado dessa população, ou profissionais que façam parte da própria comunidade LGBTQIAPN+”, ressalta.

Vinícius Lacerda Ribeiro é médico-cirurgião do aparelho digestivo no NuMA e assistente do ambulatório de doenças infecciosas do ânus e do reto do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Ele corrobora com as informações de Henry.

“Eu, como médico cirurgião do aparelho digestivo, atuo no cuidado de doenças que atingem o trato digestivo, ânus e no reto, que podem dificultar a relação sexual anal passiva. Normalizar e despatologizar tal prática sexual é algo que todos da minha área deveriam seguir, e eu acho que a maioria dos profissionais de saúde não está devidamente preparada para atender essa população”, relata.

O médico-cirurgião reafirma a importância do cuidado médico, independentemente da área de especialidade. “O atendimento é um momento em que o paciente está fragilizado e vulnerável, e responsabilizar seus agravos em saúde baseado em sua orientação sexual, identidade de gênero ou práticas sexuais só contribui para piorar o estresse que essas minorias sofrem”, finaliza.

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