Segundo dados do I LesboCenso Nacional: Mapeamento de Vivências Lésbicas no Brasil, 73% afirma sentir medo, receio ou constrangimento em falar que é lésbica durante consultas médicas
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Segundo dados do I LesboCenso Nacional: Mapeamento de Vivências Lésbicas no Brasil, 73% afirma sentir medo, receio ou constrangimento em falar que é lésbica durante consultas médicas

“Em 2018, sofri uma agressão policial durante a caminhada lésbica de São Paulo. Um carro avançou em cima de uma das lésbicas e eu fiquei na frente do automóvel, para não deixar o motorista fugir. Chamei a polícia, relatei o que estava acontecendo, mas os agentes defenderam ele, é claro, e uma policial feminina me agrediu. Ela me jogou no chão, enfiou a mão dentro da minha boca para me tirar da faixa de pedestre, me arrastou e, quando ela me jogou no chão com bastante violência, eu bati e trinquei o cotovelo”. Este relato de violência é contato por Agnes Aguiar, uma gerente de projetos lésbica de 33 anos.

Em entrevista ao iG Queer a gestora contou que a adrenalina do momento a fez permanecer na marcha, embora ela estivesse com muita dor.

“Fui ao hospital no dia seguinte, no interior, onde moro, em Campinas. Na época eu tinha plano de saúde, então fui a um hospital particular. Recebi o atendimento e na hora que cheguei relatando a dor, a primeira reação do médico foi que ele tinha certeza que eu tinha me envolvido em alguma briga.”

“Ele já me atendeu com esse esteriótipo de lésbica agressiva, raivosa, que sai batendo nas pessoas”, denuncia Agnes. “Relatei o que ocorreu, ele tirou um raio-X, olhou o exame por três segundos, e foi passando ‘assim’ as folhas na minha frente. ‘Ah, isso é uma luxação, não é nada, bota ali uma tipoia, pode ir pra casa’”.

Contudo, o caso não era uma mera luxação. Após dias de analgésicos que não surtiram efeito, a ativista da causa lésbica retornou à unidade hospitar e, com sorte, foi atendida por outro profissional, agora mais atento.

“Ele fez um novo raio-X e afirmou que não se tratava de uma luxação, mas sim que o osso havia trincado. ‘Se a gente não engessar pode correr o risco de quebrar, piorar e você até ter que fazer cirurgia na sua articulação do cotovelo’”, disse o novo médico, segundo Agnes, que afirmou que o profissional de saúde ficou impressionado.

“'Como te liberaram com uma luxação se você está com o osso trincado? Isso está errado’.”


Médico não tocava a paciente

O primeiro médico que atendera a gerente de projetos já havia examinado a paciente em outras ocasiões e todas, segundo Agnes, foram atravessadas pela  lesbofobia.

“Na época eu estava passando por um processo de burnout, então ia com frequência nesse hospital, que era muito próximo da minha casa. Eu tinha muitas dores no corpo todo e esse médico não levava a sério as minhas reclamações”, conta a mulher. “Ele sempre falava que o que eu estava indo buscar lá era um atestado, que eu não queria trabalhar e coisas do tipo. Ele já tinha um histórico de me tratar muito mal, de não querer tocar no meu corpo. Eu tinha muitas dores na coluna, ele nunca encostou em mim. Nunca quis se aproximar de mim”.

Infelizmente o caso de Agnes não é isolado. Segundo dados do I LesboCenso Nacional: Mapeamento de Vivências Lésbicas no Brasil , divulgado no último dia 21,79% das mulheres entrevistadas afirmaram já terem sofrido algum tipo de  lesbofobia.

A pesquisa ouviu 22 mil mulheres lésbicas de todo o país durante o ano de 2022 e apontou ainda que 25% das entrevistadas já sofreram discriminação em atendimento ginecológico. A grande maioria (73%) relatou sentir medo, receio ou constrangimento em falar que é lésbica durante as consultas.

“Eu reagia. Pedia para ele me examinar. Falava para ele que eu continuava com dor. Eu perguntava o que mais eu poderia fazer. [...] Eu fiquei cerca de um ano investigando esse burnout.”

A Profª. Dra. Suane Soares, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ativista lésbica afirma que “ainda que existam certos preconceitos que atravessam toda a população LGBTQIAP+ , em algum momento, os preconceitos específicos sobre cada uma das letras precisa ser estudado para compreender que tipo de situação afasta esses pacientes do consultório e que tipo de preconceito os próprios profissionais da saúde possuem com o tratamento que cada um desses grupos precisa”.

A função do equipamento de saúde como um todo não é construir juízos morais sobre a população. É entender a população e poder cuidar dessa população, salienta a pesquisadora.

Mulheres que fazem sexo com mulheres: um termo frágil

Pesquisadora aponta equívoco no uso do termo 'mulheres que fazem sexo com mulheres'
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Pesquisadora aponta equívoco no uso do termo 'mulheres que fazem sexo com mulheres'



A pesquisadora ainda aborda um equívoco na utilização do termo “guarda-chuva” “mulheres que fazem sexo com mulheres”, quando pensado para criar medidas de atendimento à saúde de mulheres LGBTs.

O problema em utilizar o termo é que, por exemplo, a saúde, especialmente a sexual, de mulheres lésbicas e bis tem suas particularidades, embora ambas façam sexo com outras mulheres. Este é um ponto que deve ser encarado com cuidado por profissionais de saúde, defende a professora.

“Por um lado [o termo é] muito útil, mas por outro falha porque perde as especificidades de quem são essas pessoas. É um termo frágil, mas é preciso entender que a sociedade não é o que a academia produz”, salienta Suane.

“É evidente que em um posto de saúde, de uma cidade do interior, a enfermeira que está lá atendendo, ao se deparar com o termo ‘mulheres que fazem sexo com mulheres’, vai ter uma ferramenta para facilitar que ela atenda de forma muito mais acolhedora uma diversidade de pessoas. Isso precisa ser levado em consideração na hora de construir políticas e espaços de saúde, atendimentos, protocolos, e uma série de questões”, acrescenta.

“A tomada de consciência sobre o que é direitos humanos e sobre o que é inclusão social precisa vir desde a pré-escola”, analisa Suane. “Não adianta isso surgir simplesmente como uma matéria eletiva, ou ainda que obrigatória, em um currículo de formação da graduação porque não dá conta”.

Compreensão do que são as lésbicas

A Dra. Profª. Suane Soares, pesquisadora da UFRJ, durante audiência pública da CPI do Feminicídio
Suellen Lessa/ Alerj
A Dra. Profª. Suane Soares, pesquisadora da UFRJ, durante audiência pública da CPI do Feminicídio


A ativista defende ainda que antes de se debater sobre a saúde de mulheres lésbicas é preciso entender quem são as mulheres que fazem parte deste grupo que, de acordo com a pesquisadora, “são mulheres que constroem suas subjetividades e suas afinidades político-socioculturais em torno de outras mulheres”, o que para o patriarcado “é muito grave”.

“Quando a mulher, desde pequena, questiona, não se enquadra, sofre uma série de questões de vulnerabilidade, de opressões relativas à falta de identificação com esse padrão, geralmente ela se sente uma pessoa muito solitária dentro da sua própria família, por exemplo.”

“A menina lésbica, diferente do menino gay, vive desde muito cedo com dois preconceitos: o de ser mulher e o de ser lésbica. É importante lembrar que quase 90% das meninas sofreram algum assédio na infância e na juventude, incluindo estupros.”

Segundo a quarta edição da pesquisa Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil, realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, cerca de 18,6 milhões de mulheres brasileiras sofreram algum tipo de violência em 2022. O número equivale a um estádio de futebol com capacidade para 50 mil pessoas lotado todos os dias.

Outro dado alarmante, divulgado no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, aponta que em 2021, 85,5% de menores de até 13 anos vítimas de abuso sexual foram meninas.

“Ao longo da infância e da adolescência, nós lésbicas vamos encontrando espaços de escape desses processos [de assédios e lesbofobias], e geralmente são lugares em que não há nenhum tipo de supervisão para aliviar essas tensões, que são complexas”, afirma Suane. 

“Um menino gay, se decide chegar mais tarde em casa porque não quer se estressar com o padrasto que é homofóbico, a mãe vai ficar preocupada, mas não vai ficar desesperada. Se for uma menina lésbica, ela vai ficar muito mais desesperada [...] O ser mulher acarreta em uma vigilância, preocupação e fragilidade maiores.”


Outro caso de lesbofobia sofrido por Agnes

A gestora de projetos, Agnes Aguiar, retorna à reportagem e relata mais um caso de lesbofobia que sofreu em um atendimento médico. Este agora em outro estado, a Bahia; em outra especialidade, a ginecologia; e por outro gênero, uma mulher. Na pandemia, a gerente decidiu se mudar para o sul do estado nordestino, e escolheu a cidade de Ilhéus para viver novas experiências e se aproximar do mar.

Alguns problemas de saúde foram surgindo e no início deste ano, Agnes decidiu procurar ajuda médica. Sua menstruação estava desregulada e ela chegou a menstruar por 40 dias seguidos.

“Entre janeiro e abril fui semanalmente à clínica fazer exames e acompanhamento do resultados. Fiz mais de 80 análises de sangue. Também fiz exames invasivos, aqueles que necessariamente eu precisei ficar de pernas abertas para a médica olhar dentro da minha vagina”, afirma Agnes, que diz que foi durante alguns destes exames que as agressões lesbofóbicas mais ocorreram.

“A médica se recusou a fazer o exame papanicolau, porque eu sou peluda. ‘Você não tem que olhar dentro da minha vagina? O exame não é no colo do útero? O colo do útero não tem pelo, então não estou entendendo’”, indagou Agnes à médica, o que iniciou uma discussão.

“Ela acabou aceitando fazer [o exame], mas fez reclamando e falando o tempo todo que se eu tivesse que refazer o exame, teria que me depilar e que ela não garantia os resultados com qualidade já que eu estava peluda.”

Antes do exame, Agnes relata que a médica, em uma série de perguntas, disse que não havia “nada para investigar aqui”, quando a gerente revelou que era uma mulher lésbica e, portanto, não fazia sexo com homens.

“Não vai ter nada na sua vagina porque não acontece com ela”, continuou a ginecologista com as agressões lesbofóbicas, segundo a gerente de projetos. “‘[A desregulação menstrual] deve ser porque você não se relaciona com homens, por isso você está assim’.”

Agnes continua o relato e revela uma parte ainda mais agressiva. “Quando cheguei para fazer um exame de ultrassom interno, com outra médica, entrei na sala, ela me olhou e falou: ‘Coloca o roupão, faz xixi e deita com a perna aberta’. Senti que ela estava sendo ríspida comigo. Antes, enquanto eu estava na sala de espera, eu via como ela acolhia as outras pacientes, heterossexuais no caso, e o tratamento não era igual.”

“Eu falei: ‘Mas, como assim, faz xixi? Eu posso me limpar depois do xixi? Tem que ficar suja? O que eu faço? Me dá mais instruções que eu não estou entendendo’”, prossegue Agnes.

“Eu deitei na maca, fiquei com os joelhos flexionados, mas juntos, e ela ordenou: ‘Você tem que abrir a perna. Separa os joelhos, mas os mantêm flexionados’. Eu fiquei semiaberta e aí ela veio com tudo e empurrou o meu joelho para baixo com força. ‘Eu falei para abrir’”, disse a médica na sequência, de forma agressiva, relata a gestora.

“Ela pegou o equipamento com formato fálico, colocou um preservativo, encheu de lubrificante, e apenas colocou direto na minha vagina, sem nenhuma licença, sem nenhum cuidado, sem ser devagar, ela só enfiou ‘com tudo’ o negócio. Ela ficava com uma mão mexendo esse equipamento dentro da minha vagina e a outra segurando em um dos meus joelhos, e falando: ‘Nossa, você precisa muito verificar isso, viu? Esse monte de pelo que você tem, por que que você é tão peluda?’”

Agnes Aguiar
Arquivo pessoal

A gestora de projetos Agnes Aguiar revelou uma série de violências lesbofóbicas à reportagem

“Quando fui buscar o resultado dos exames, voltei na médica que tinha me atendido primeiro. Ela começou a olhar o resultado e me pediu para deitar porque queria examinar alguma coisa. De novo toda aquela cena. Ela ficou sentada na mesa olhando para mim, olhando para minha vagina, e eu ali deitada, e ela virando as páginas dos exames. Foi aí que ela começou a gritar comigo. A cada página que ela virava, ela chacoalhava os papéis no alto para eu ver. ‘Olha a situação do seu útero, isso daqui pode ser câncer, pode ser um monte de coisa, seu útero está destruído, a sua vagina está horrível, você está muito doente.”

“‘Você acha que só não se relacionar com homens é suficiente? Vocês lésbicas são muito relapsas! [...]  Ela perguntou: ‘Quando foi a sua primeira relação sexual? Aí eu falei: ‘O que que você chama de relação sexual?’ Porque eu já tinha entendido que ela não entendia o sexo lésbico como relação sexual."

"‘Vai me dizer que você não sabe? Todo mundo sabe quando é a primeira vez. A primeira vez que você transou com um homem'. E aí eu falei: ‘Eu nunca transei com um homem’", afirma Agnes, que reproduz a reposta da médica na sequência. "‘Como não? Nunca transou com o homem?’". A ativista lésbica então respondeu que já havia sido estuprada diversas vezes. "'Você quer saber quando foi a primeira vez que eu fui estuprada? Eu tinha seis anos'."

"'Teve a primeira relação sexual aos seis anos de idade. Você é prodígio, né?’", teria respondido a médica em tom de ironia. Agnes conta que gastou entre 6 e 7 mil reais, em cerca  de dois meses, só com exames médicos.

"A hipótese que as médicas que me consultei depois levantam é que essa clínica em Ilhéus só queria que eu gastasse dinheiro. Cada consulta que eu ia, eu pagava também", finaliza o relato.

Como a saúde pode ser menos normativo e LGBTfóbica?

Mariana Lyrio, a ginecologista "que fala de saúde LGBTQIA+", respondeu à reportagem algumas perguntas sobre os principais equívocos no atendimento de saúde a mulheres lésbicas.

iG Queer:  Como você percebe que é o primeiro contato com as pacientes lésbicas? Elas costumam relatar que sofreram lesbofobia em outros consultórios ou que têm receio de sofrer discriminação em consultas ginecológicas? Elas também relatam que escolheram o seu atendimento por ser especializado em saúde LGBT+?

Mariana Lyrio: "Na maioria das vezes sim, e não só mulheres lésbicas, mas mulheres bissexuais também. A maioria delas sempre chega com o relato de algum tipo de violência sofrida em espaços de saúde anteriores. Não necessariamente com ginecologista, mas em espaços de saúde no geral [...] E às vezes nem são violências tão explícitas, mas são aquelas sutis que quando você questiona as pessoas falam: ‘Nossa, mas nem foi na intenção’."

iG Queer: Quais são os principais tabus relacionados à saúde ginecológica e sexual de mulheres lésbicas? E sobre os métodos de prevenção, quais são os principais equívocos que profissionais de saúde precisam parar de cometer quando se trata da saúde lésbica?

Mariana Lyrio: “Primeiro eu acho que o principal mito é o de que o sexo com pessoas que têm vulva não transmite doença sexualmente transmissível. Isso é uma loucura, até porque a gente sabe que muitas doenças e infecções são transmitidas por mucosa, e se elas são transmitidas às vezes até no sexo oral, por que não seriam transmitidas no sexo entre pessoas com vulva? [...] O médico às vezes não explica e a paciente às vezes realmente acha que não existe. E enquanto isso a gente tem um monte de gente pegando IST devido a desinformação.”

“Um equívoco em relação à saúde sexual lésbica é achar que a paciente, porque não tem penetração peniana, não precisa coletar preventivo. Sabemos que hoje o HPV é um desses vírus que passa por contato de mucosa [...] É importante sim fazer essa coleta, é importante sempre orientar a vacinação contra o HPV, explicar que elas também estão suscetíveis a pegar o vírus e ter câncer de colo. Como essas pacientes estão mais afastadas do sistema de saúde, por medo de sofrer lesbofobia, essas doenças se tornam potencialmente mais graves porque quando chegam no consultório estão em um estágio mais avançado.

“A gente precisa urgentemente que a saúde pare de ser tão heteronormativa, principalmente a ginecologia. As pessoas entram no consultório e o profissional de saúde já está ali inferindo, sem fazer nenhuma pergunta, de que essa pessoa que entrou é uma pessoa cis heterossexual e que ela precisa de um anticoncepcional. Na maioria das vezes isso não é verdade."

iG Queer:  Você acredita que o sistema de saúde ainda tem dificuldade de entender as demandas específicas da saúde LGBT+, em específico das mulheres lésbicas?

Mariana Lyrio:  "Sim, totalmente. A própria educação médica formal tem muito pouco espaço para falar sobre a saúde da população LGBTQIA+. E falando especificamente das mulheres lésbicas, no caso da ginecologia, a gente tem pouco espaço de formação onde a gente fala da saúde das mulheres lésbicas. A gente comete muitas vezes o erro de achar que ‘Ah não é tudo mulher? E tem tudo vulva? Então é tudo igual.' E não é!".

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