Um grupo de amigos gays, em 1990, que tinha como paixão em comum o futebol decidiu criar um time. Naquele ano nasceria o Real Centro, o primeiro time inclusivo do Brasil, que tinha encontros e treinos realizados no Parque do Ibirapuera, na zona sul de São Paulo. “Frequentávamos um bar e, a partir disso, decidimos criar um time só com homens gays”, conta Joseano Alves, 45, conhecido como Jô entre os colegas.
O administrador de empresas está à frente do Real Centro desde o início e, com 33 anos de existência, o time tem como foco principal, ainda hoje, o futebol. Mas, no começo, foi preciso que o grupo omitisse a orientação sexual de seus membros nas competições para evitar xingamentos e outras violências, inclusive a física.
Em uma época que a homofobia era visível, eles abriram possibilidades para outros times e coletivos esportivos LGBTQIAP + surgirem no Brasil anos depois, mesmo que tenha demorado mais de uma década para eles se posicionarem como um coletivo de homens gays no futebol.
De acordo com um levantamento feito pela Nix Diversidade, em parceria com a Nike , há 127 coletivos LGBTQIAP+ que praticam alguma modalidade esportiva no Brasil. Ainda segundo o estudo, 85,3% da comunidade afirma que o preconceito no esporte é bastante presente ainda hoje.
“O indivíduo LGBT tem que ocupar o seu espaço, é um direito. As pessoas gostam de praticar esporte e elas não têm que deixar de praticar devido à questão sexual e, graças aos coletivos que estão expandindo pelo Brasil, isso já é uma realidade”, defende Jô.
Em 2008, surge o Angels Volley, outro time LGBTQIAP+, mas agora com foco na modalidade de voleibol em busca de abraçar a representatividade de maneira eficaz dentro do vôlei. Com 15 anos de história, o Angels é único projeto da modalidade com todas as siglas representadas, no qual os participantes jogam nos lugares que se identificam.
“Precisamos ocupar lugares que durante décadas fomos negligenciados, esquecidos, silenciados e até proibido de estarmos. Além de termos total capacidade, temos direito igualitário a qualquer padrão heteronormativo”, argumenta Willy Montmann, 38, gestor na Secretaria de Esportes do Município de São Paulo e criador do Angels Volley.
O projeto conta hoje com 183 pessoas e, desse total, 53 são mulheres trans e travestis, sendo um dos maiores projetos esportivos de mulheres trans e travestis do Brasil . Elas assumem papel de protagonistas, conta Willy, que reflete que dentro de todas as siglas que existem no coletivo, a letra T ainda tem menos oportunidades, acesso e que ainda carrega muito estigmas preconceituosos na sociedade.
“Nossas meninas são assistidas dentro e fora de quadra, tendo diversos auxílios para que elas voem cada vez mais alto. O esporte é apenas uma porta que abre inúmeras outras oportunidades por meio do projeto.”
Sete anos depois surgiria, em 2015, o Unicorns Brazil, o primeiro grupo poliesportivo e cultural voltado à comunidade LGBTQIA+ no Brasil. Poliesportivo porque o Unicorns conta com práticas de futebol, corrida, treinamento funcional, esgrima, vôlei, e mais recentemente, o e-sports. Fundado por um grupo de três amigos, o Unicorns já tem hoje mais de 200 integrantes.
“As pessoas da comunidade LGBT+ são ensinadas a, desde cedo, que o espaço do esporte, com algumas exceções, não é para elas. Quando você percebe que aquele espaço pode e é seu, você liberta a prática do esporte. E mais que quebrar barreiras para o mundo hétero, nós estamos quebrando barreiras para nós mesmos”, pontua Filipe Manetta Marquezin, 37, fundador e presidente do coletivo Unicorns Brazil.
Já em 2019, viria o Fadas Handebol, o primeiro time LGBTQIAP+ da modalidade em São Paulo. O projeto iniciou os treinos com o objetivo de trazer um espaço alternativo às pessoas que gostavam de jogar handebol e fossem da comunidade e, com o avanço dos treinos, cada vez mais o time se estabeleceu como uma organização que trouxesse um espaço de acolhimento, respeito, diversidade e de fomento ao handebol; que muitas vezes foi difícil encontrar.
“Para nós, a importância [de ocupar uma categoria esportiva] é enorme, não somente pelo handebol, que dentre as modalidades de quadra quase não possui espaços e apoio, mas também para a diversidade e acolhimento das pessoas, que em algum momento da vida se sentiram acuadas em outras equipes”, comenta Danilo Lysei, 26, jornalista que jogou no Fadas por três anos e agora está à frente da comunicação do time.
Danilo explica que, como são uma equipe mista, eles contam com homens e mulheres (cis e trans), gays, lésbicas e bissexuais.
“Todos, todas e todes podem jogar e encontrar um coletivo que equilibre as bandeiras da comunidade e da modalidade. É encontrar um lugar que cada um de nós aprenda a jogar, auxilie o outro, compartilhe nossas lutas e se apoie. Você pode saber tudo sobre o handebol, ou nunca ter batido uma bola em quadra, no treino do Fadas você será recebido da mesma forma: com amor e braços abertos”, diz.
No mesmo ano, em 2019, surge o T Mosqueteiros, coletivo de futebol formado somente por pessoas transmasculinas e homens trans . Tatto Oliveira, 42, presidente do time, criou ele a partir de uma demanda pessoal que inquietava ele.
Por ser ativista pelos direitos LGBTI e trabalhar em um equipamento público voltado a população, ele organizou o primeiro evento para que o grupo, que ainda não tinha nome, pudesse jogar na quadra da Casa Florescer, um centro de acolhida para mulheres trans e travestis, localizado na Zona Norte de São Paulo. Foi a partir daí que a equipe virou uma ferramenta de transformação na vida dos garotos.
“Muitos meninos saíram do isolamento e buscaram, por meio da socialização com outros meninos trans, compartilhar suas vivências e estabelecer novos pensamentos e recortes sobre suas vidas e a transição de gênero”, expõe Tatto.
Já em Diadema, outro time de pessoas transmasculinas e homens trans surgiria em 2020, o Spartanos, primeiro time da região do Grande ABC formado inteiramente por pessoas trans.
Focado na modalidade de futsal, o grupo nasceu também com o desejo de abraçar tanto as pessoas que não tinham habilidades na modalidade, quanto as que já praticavam, mas agora com um diferencial por ser um espaço de acolhimento para os homens trans e transmasculinos.
“Quando era mais novo, eu não era bem-visto por jogar bola com homens cis porque tinha o corpo lido como feminino. Também não podia jogar bola com meninas cis porque eu sempre joguei com meninos e tinha uma postura diferente. Por isso, o lugar que ocupamos é político e é muito importante que haja cada vez mais espaços e, principalmente, incentivo para que novos coletivos surjam, e não só no futsal como em outros esportes. Nossos corpos em movimento representam muitas coisas”, defende Júnior Lima, 26, fundador do Spartanos.
O Fut das Parças, focado em mulheres também nasce em 2020, mas com uma diversidade de orientações sexuais: bissexuais, lésbicas e pansexuais são destaque na equipe, mas há também a presença de mulheres héteros, explica Mariah Balsini, 27, que está à frente do coletivo que nasceu para ser um espaço seguro para as mulheres.
“Somos muito livres para ser quem somos, algumas mulheres vão acompanhadas com as suas parceiras e é muito incrível isso. A diversidade nos ensina a criarmos mais empatia e eu acho que essa é a beleza de termos ambientes assim, inclusive no esporte”, reflete.
Em clima de competição
Futebol, voleibol, handebol, futsal e entre outros, independentemente da prática esportiva, as pessoas LGBTQIAP+ querem ter a possibilidade de ocupar todos os espaços, seja no esporte ou fora dele. Como todo time, há competitividade e cobrança.
Filipe do Unicorns conta que, sem o espírito competitivo, a competição acaba não existindo. Mas diferentemente do que é comum ver entre os “homens viris”, sobretudo os cis-héteros, os “xingamentos não existem. No máximo um: ‘aiiii, viado’...”.
Tatto, do T Mosqueteiros, conta que na hora da competição e para fugir dos xingamentos depreciativos, os meninos têm apelidos carinhosos e fazem questão de sempre se elogiarem. “Uns se chamam de 'gostoso', 'lindo' e muitos adjetivos carinhosos que fazem muita diferença no dia a dia”.
O Fadas, Angels Volley, Spartanos e Fut das Parças também entram em consenso quando falam sobre os xingamentos na competição: são inaceitáveis. E, pela ideologia dos coletivos, qualquer tipo de desrespeito é reprovável.
“Fazemos questão de expressar em nossos treinos e competições que não é tolerável nenhuma fala ou ato que configure racismo, LGBTQIAfobia, assédio ou misoginia dentro ou fora do nosso grupo. E no nosso dia a dia, a harmonia, integração e o acolhimento devem ser presentes”, resume Danilo, do Fadas Handebol.
Não há distinção
Todos os times jogam de igual para igual quando competem com outros times, sejam eles de pessoas LGBTQIAP+ ou de cis-hétero. O Angels, com o vôlei, tem as mulheres cis e trans competindo juntas, seguindo as normas do COI (Comitê Olímpico Internacional). Tanto que as meninas do Fut das Parças também já competiram com um time de mulheres trans, mas no futebol.
“Jogamos de igual para igual, sendo um adversário hétero ou gay e os outros times percebem isso. O nível é igual, a vontade de ganhar é igual. Os dribles, as falhas são as mesmas e o grito de gol também. É tudo igual”, enfatiza Filipe, do Unicorns.
Mas, todos os times reforçam que, independentemente de identidade de gênero ou orientação sexual, o que deve ser considerado deve ser a atuação em jogo.
“É o mínimo que desejamos, pois já fomos silenciados e violentados de toda forma, seja por agressão física ou verbal o que impactou na saída de muitos dos meninos das quadras", lembra.
Hoje, o T Mosqueteiros joga na Nossa Arena, um espaço que além de acolher sempre pensa em "propostas que impactam nas nossas vidas e na das pessoas que acessam o espaço, isso é grandioso”, completa Tatto.
Além do T Mosqueteiros, a Nossa Arena também recebe o coletivo Fut das Parças. Já o Fadas treinou no Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa (COTP) e agora no Conjunto Esportivo Baby Barioni. Já o Real Centro, treina na Quadra FutShow. Todos em São Paulo.
“O esporte, sem preconceitos, é libertador e acolhedor”
Tatto relembra que já chegou a se emocionar lendo os relatos dos meninos após entrar em contato com o time. “Saber que o futebol tem salvado vidas é a certeza de que estamos no caminho certo e correndo contra a maré”, defende.
Júnior expõe que o esporte para corpos dissidentes representa muita coragem e força. Para ele, estar em coletivo fortalece suas lutas individuais e processos de construção de suas identidades.
Willy também divide que, dentro do Angels, percebeu que o esporte resgatou muita gente em depressão. Além de ser um lugar para curar traumas ou frustrações de quem já sofreu bullying em aulas e não teve a chance de ter sua orientação sexual/identidade de gênero alinhada com o direito de ocupar espaços esportivos.
“O esporte, sem preconceitos, é libertador e acolhedor. Então, ter um grupo como o Unicorns, com esses espaços seguros, é fazer jus ao que o esporte deve ser”, finaliza Filipe.
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