Na quinta e última reportagem da série “TRANSformando o Esporte”, o iG Queer reúne profissionais de diversas frentes para abordar em que pé está a inclusão de atletas trans do ponto de vista sociopolítico – levando em conta, principalmente, as discussões públicas e legislações. O cenário é repleto de entraves que podem determinar a manutenção da exclusão no âmbito esportivo a longo prazo.
O pesquisador Leonardo Morjan Britto Peçanha é formado, licenciado e bacharel em educação física, especializado em gênero e sexualidade, mestre em ciência da atividade física e doutorando em saúde coletiva. Peçanha aponta que, atualmente, o tom da discussão política acerca do tema é considerado preocupante.
“Um dos impactos mais negativos no momento são os projetos de lei que começaram a surgir Brasil afora para a proibição da participação de atletas trans no esporte – algo que nem é um direito previsto por lei. Atualmente, só temos uma atleta de alto rendimento no país”, afirma o pesquisador. Ele se refere à jogadora de vôlei Tiffany Abreu, que atualmente joga pelo Osasco São Cristóvão Saúde. O iG Queer tentou contato com Tiffany, mas, de acordo com a assessoria da atleta, ela estava em período de férias durante a apuração das reportagens.
O pesquisador salienta que a posição majoritária, principalmente de bancadas conservadoras, é de impedir que atletas trans possam competir profissionalmente nos esportes, levando em consideração uma suposta questão de vantagem biológica – assunto que foi abordado anteriormente ao longo da série. Essas vertentes de argumentação, no entanto, excluem a complexidade do tema e, além disso, legitimam ataques transfóbicos contra esses atletas.
“As pessoas verbalizam palavras na tentativa de ferir mesmo, de machucar de propósito”, começa. “Não é só uma questão de desconhecimento porque a maioria das pessoas que estão discutindo sobre esse assunto não são leigas. Às vezes, se a conversa for com pessoas que não têm tanta vínculo com o debate esportivo e trans, ela vai entender melhor do que esses caras conservadores. De repente, todo mundo virou fisiologista, entendedor de anatomia… falam um monte de besteira pautada em questões morais”, declara.
“É importante destacar o quanto a pauta é utilizada por políticos de direita e extrema direita na disseminação de suas plataformas eleitorais, em um fenômeno que ocorre Brasil afora. Nos Estados Unidos, por exemplo, a prática se tornou comum para dar suporte a uma base política conservadora, aparentemente insegura com os avanços liberais e progressistas”, explica a deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL-SP), que acompanha as demandas de pessoas trans no esporte, ao iG Queer.
Um levantamento realizado pela agência Lupa em junho de 2021 aponta que desde o ano de 2019 foram registrados sete projetos de lei (PLs) apresentados na Câmara dos Deputados, cujo objetivo é impedir a participação de pessoas trans em disputas oficiais. Em âmbito estadual, pelo menos 13 proposições tramitaram em 11 estados.
O primeiro dos sete PLs foi apresentado em 10 de abril de 2019 pelo deputado Pastor Sargento Isidório (Avante-BA), e tem linguagem agressiva. No texto, ele se refere às mulheres trans como “homens transvestidos ou fantasiados de mulher” e aponta a transgeneridade como uma “distorção ou deformidade psicológica” – vale lembrar que em 2018 a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a transexualidade da lista de transtornos mentais.
“É sabido que homem e mulher, sexos criados por Deus, têm compleições físicas diferentes, haja vista que além do aparelho reprodutor, a altura, os músculos, o tônus muscular, a capacidade de força é muito maior para o homem do que para a mulher”, escreveu o deputado.
Os demais projetos possuem tom mais ameno, mas igualmente excludente. É o caso do PL 2.596/2019, que fala em “assegurar a igualdade entre forças” e nega “intenção preconceituosa contra os transgêneros”; o PL 2.639/2019, que questiona as “injustas vantagens comparativas” de atletas trans, porém “sem qualquer juízo de valor acerca das opções da vida privada”; e o PL 3.396/2020, da deputada federal Bia Kicis (PSL-DF), que por sua vez, diz que caso a sociedade continue ignorando o que chama de “tirania do politicamente correto”, em breve “teremos seleções femininas compostas basicamente por transexuais”.
Entre todos os PLs apresentados nas Câmaras dos Deputados até 2019, o que mais ficou conhecido foi o projeto de lei 346/2019, apresentado à Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) pelo deputado estadual Altair Moraes (Republicano). Na época, a deputada estadual Malunguinho realizou uma audiência pública com profissionais de diversas áreas para promover conhecimentos e debater sobre o assunto.
“Procuramos oferecer uma sessão pautada na qualidade argumentativa de especialistas, como pesquisadores, endocrinologistas e educadores físicos, para de fato promover uma análise científica sobre o tema, em contraponto ao PL 346/2019, do deputado Altair Moraes, que se baseou nos mitos e preconceitos que cercam a abordagem tradicional de exclusão da população trans de todo e qualquer círculo social”, explica a parlamentar.
“Fazer política, em sua plenitude, significa expandir diálogos para uma esfera vivencial, trazendo à tona o verdadeiro significado de representatividade. O fluxo de informações, quando pautado nesse sistema, tende a ser natural o bastante para atrair os maiores interessados ao diálogo, e essa foi a tônica da organização dessa audiência”, acrescenta.
A atleta de vôlei amador Danielle Nunes, ativista pela inclusão de pessoas trans no esporte brasileiro, lembra ainda que foram realizadas duas assembléias públicas no Congresso Nacional sobre o tema, em 2019. Na ocasião, Tiffany Abreu foi uma das convidadas para integrar a bancada a fim de discutir os critérios de inclusão no alto rendimento.
“Algumas pessoas que estavam presentes criaram narrativas mentirosas e acabaram convencendo ainda mais aquelas que não querem mudar”, lembra Danielle. Ela se recorda que, entre os argumentos, houve comparações entre homens cis e mulheres cis em competição com pessoas trans, principalmente criticando a performance das mulheres trans que, supostamente, implicaria em uma vantagem sobre as mulheres cisgênero. “Foi muito ruim”, define a atleta.
No entanto, o próprio Comitê Olímpico Internacional (COI) aborda que, até o momento, não existe comprovação de desvantagens que impeçam pessoas transgênero de competir, desde que os níveis de testosterona estejam abaixo dos 10 nmol/L. “O fato de não ter desvantagem é uma vantagem para determinados grupos, porque, assim, a narrativa pode ser distorcida”, aponta Danielle.
A atleta acrescenta que as reproduções de informações falsas ou sem definições científicas concluídas – como a própria questão de vantagem, cujo tema é ainda pouco estudado para chegar a um resultado concreto – são espalhadas, principalmente, por meios de comunicação relacionados aos partidos de extrema direita. “Percebemos que não é uma questão de ciência, é político-ideológica”, afirma a ativista.
“O COI [Comitê Olímpico Internacional] não formulou isso da noite para o dia. Os critérios de inclusão são baseados em estudos com mais de 10 anos de duração. Nada surgiu em uma conversa de bar. Foram mais de dez anos de estudo. No entanto, isso é anulado e se volta aos mesmos conceitos binários e biologizantes – os tais cromossomos XX e XY –, sendo que nenhuma dessas pessoas entende nada de biologia”, continua.
Precarização do esporte feminino
Danielle afirma que, ao contrário de narrativas fomentadas por algumas atletas mulheres cisgênero, as mulheres trans não têm interesse em retirar o espaço das competidoras cis, tampouco conseguir vantagens em competições. O desejo é apenas de jogar de acordo com a identidade de gênero com o qual se identificam.
A jogadora de vôlei afirma que as mulheres trans não devem ser vistas como ameaça, mas como novas parceiras para somar em uma demanda mais antiga: a precarização de atletas mulheres e de times femininos, um cenário generalizado em todas as modalidades e níveis de atuação – incluindo o alto rendimento.
“Muitas dessas atletas não recebem nem um salário. É um time que compete na Série A e se ouvem relatos de lugares insalubres para se preparar, falta de alimentação e de acompanhamento”, afirma a ativista. Sheilla chama a atenção para a urgência de mudança de postura e perspectiva por parte dos órgãos esportivos e dos hábitos de consumo do esporte, uma vez que jogos femininos não possuem a mesma visibilidade que os masculinos.
“Precisa-se difundir conhecimento em relação a isso para que tenhamos mais liberdade, pois somos muito perseguidas, ao ponto que os que têm vontade de ingressar no esporte se privam por conta das dificuldades que são impostas, tanto para mulheres trans quanto para mulheres cis. Nós temos Libertadores, Sul-Americano, temos Campeonato Brasileiro. Me diga quando tudo isso foi televisionado pela última vez. É muito difícil, essa é a questão. Nós do esporte feminino nos entristecemos com isso. Não apenas a forma de pensar deveria mudar, mas a de agir também”, diz.
Particularidades mais amplas
A ponderação relacionada às pessoas trans no esporte vai além do alto rendimento e envolve uma série de questões de direito ao exercício da cidadania, bem como da manutenção da saúde e do bem-estar social dessa população. Tratam-se de demandas que são negadas em diversos âmbitos e que, com a dificuldade do acesso à prática esportiva, negligenciam a inserção desse grupo de forma equitativa.
“A questão das pessoas trans no esporte é só a ponta do iceberg. Precisamos levantar outros pontos igualmente fundamentais, como habitação, educação, emprego e renda, por exemplo", afirma Danielle, que continua ao declarar que as propostas atualmente em tramitação vão contra o Artigo 217 da Constituição Brasileira, que prevê “a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto à sua organização e funcionamento”.
Além disso, as iniciativas violam o Artigo 2º Lei nº 9.615/1998, mais conhecida como Lei Pelé, que garante ao esportivo os direitos individuais da soberania, democratização, liberdade, educação, equidade e autonomia – este último direito sendo “definido pela faculdade e liberdade de pessoas físicas e jurídicas organizarem-se para a prática desportiva”.
O Artigo 217 da Constituição ainda determina que “é dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais”, o que aponta para uma outra lacuna nas práticas esportivas por pessoas trans: a criação de um plano nacional de esporte que garanta a autonomia, acesso e segurança de crianças e adolescentes ao realizarem práticas esportivas – o que toca às demandas da infância trans, período em que essa população já tem o acesso negado aos exercícios físicos.
Independentemente do desejo de serem atletas ou não, as crianças transgênero e cisgênero precisam ter o direito de acessar e participar da educação física escolar para o desenvolvimento corporal e complementação da saúde. O tema já foi abordado na terceira reportagem da série do iG Queer.
No caso dos atletas de alto rendimento, Danielle e Peçanha destacam ainda que, ao barrar a participação em torneios e campeonatos, retira-se também a possibilidade de acesso desse atleta ao ambiente de trabalho. Sem fomentos ou a abertura de espaços para desempenhar este papel, as pessoas trans voltam a ser marginalizadas – e, lembra Danielle, empurradas para ocupações precárias, principalmente a prostituição.
“Já que a preocupação maior é com o alto rendimento, então as pessoas que levantam a bandeira para excluir e separar esses profissionais estão colocando pessoas trans na marginalização novamente, agora retirado do esporte”, aponta o educador físico.
“Ser atleta é um ofício. O corpo do atleta é a mão de obra física de trabalho, e quando se nega a presença de pessoas dentro dos esportes no alto rendimento, se está negando a possibilidade dela trabalhar. Para nós, em uma perspectiva coletiva, trabalhar é algo muito caro, assim como o lazer e o esporte. A gente se preocupa mais em estar vivo, ter um trabalho, se alimentar e ter um lugar para morar. Os conservadores atacaram onde a gente não estava olhando com tanta atenção, pois não se tinha tanta preocupação com espaços esportivos”, acrescenta.
Também se negligencia o papel do esporte amador como forma de dar continuidade ao desenvolvimento físico e mental da população trans. “É uma possibilidade de acesso ao lazer, à socialização com outras pessoas, sejam elas LGBT ou não. Para pessoas que não são LGBTs esse acesso é facilitado. Para pessoas trans não, pois isso está atrelado a questões sociais, burocráticas, familiares e de falta de acesso”, pontua Peçanha.
Marcelo*, homem trans, pratica jiu-jitsu desde antes da transição, chegou a ser medalhista na modalidade e atualmente trabalha como treinador. Ele comenta ao iG Queer sobre um episódio que chegou até o conhecimento dele envolvendo o despreparo das federações em receber atletas trans.
“Já chegou até mim o caso de uma federação que não sabia como lidar com o atleta trans e jogou a questão de volta para a pessoa porque ela queria se filiar e ser tratada conforme o gênero com o qual se identifica. A federação admitiu que nunca tinha feito isso antes e que não sabia como proceder, até pediu para a pessoa enviar mais informações no intuito de proceder da melhor forma”, conta.
“São essas falhas de comunicação que atrapalham o movimento, então seria bom se existisse uma regulamentação mais estabelecida para atletas trans a fim de evitar essas intercorrências”, continua.
O treinador ainda destacou que a falta de pesquisas aprofundadas e respaldo científico não respinga apenas nos órgãos esportivos e competições em si, mas principalmente nos próprios atletas, que na falta de orientações claras podem encontrar dificuldades para se preparar e conseguir tocar a carreira adiante.
“A falta de pesquisa deixa os próprios atletas trans desamparados porque se eles quiserem competir não vão saber como se preparar para estar em pé de igualdade, então é muito complicado. No momento, ainda é uma questão embrionária e rasa. Acho que esse é um dos maiores motivos de termos tão poucos atletas de trans conseguindo competir ativamente”, explica.
Marcelo aponta ainda que a movimentação por parte da comunidade já está acontecendo, mas é preciso que a iniciativa seja tomada por alguma das partes envolvidas para que as mudanças possam se concretizar e suprir todas as lacunas existentes na área.
“É muito fácil olhar apenas para o nosso problema atual e afirmar que é preciso ter igualdade, mas o ponto principal é como fazer isso, quais são as saídas possíveis e quem precisa tomar a frente dessa iniciativa. A comunidade está se movimentando sobre isso e identificamos a problemática, mas o que falta são ações concretas”, declara.
Danielle questiona se a revisão do esporte precisa acontecer na base devido ao alto número de depoimentos de casos de racismo, transfobia, homofobia, misoginia e demais violências contra corpos dissidentes no esporte. “Vamos na raiz do problema: será que os clubes que formam jogadores estão aptos para fazer uma formação completa de um cidadão sobre essas questões? Ainda existem muitos treinadores com pensamentos conservadores”, afirma a atleta.
"Precisamos ir atrás de onde pode haver essa desconstrução, que é nas casas legislativas, criando uma bancada para chamar de nossa, com cada vez mais representatividade para conseguirmos, por meio da lei e do direito, habitar de forma segura todos os espaços – sejam as quadras, as câmaras municipais ou mesmo a laje da vizinha. A gente também quer uma vida social”, conclui Danielle.
Apesar de ser entendido socialmente como uma atividade para todos, Peçanha afirma que o esporte é uma ferramenta para pensar outras possibilidades; no entanto, na maioria das vezes, não inclui todas as pessoas. “A questão é que essas mudanças vão mexer na estrutura, e esta não quer ser mudada. Isso porque quem se beneficia atualmente não vai mais poder se beneficiar – geralmente são homens cis brancos, heterossexuais e cristãos que estão por trás de instâncias esportivas”, aponta Peçanha.
“Por isso se fala tanto em representatividade”, começa Malunguinho. “Isso diz respeito à influência, ao empoderamento real. Toda e qualquer pauta que se opõe ao status quo é imediatamente silenciada, incluindo a questão das pessoas trans no esporte. O mesmo ocorre, sem grandes espaços de negociação, quando se coloca à mesa a necessidade de medidas por igualdade social, por proteção das populações marginalizadas, entre tantos outros temas”.
*O nome desta fonte foi alterado para preservar sua identidade.
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