Para o psicólogo Daniel Amâncio, negros de pele clara não estão isentos de racismo.
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Para o psicólogo Daniel Amâncio, negros de pele clara não estão isentos de racismo.

O debate sobre colorismo é uma discussão complexa e que segue sendo revisada a partir do avanço das conversas sobre o racismo dentro da sociedade brasileira.  No centro de parte desta discussão estão as pessoas negras de pele clara, chamadas no Brasil de pardas, definição utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em suas pesquisas.

O problema mais latente relacionado de racismo estrutural que estas pessoas enfrentam é o que Daniel Amâncio, psicólogo e pós-graduado em Africanidades e Cultura Afro-brasileira pela Universidade do Paraná (Unopar), chama de “limbo identitário” e que está ligado diretamente “ao resultado negativo da criação do mito da democracia racial”.

No campo da afetividade e sexualidade, o psicólogo afirma que a pessoa parda acaba sendo afetada por um estereótipo de sensualidade muito marcado, como se ela representasse “o melhor das duas raças”.

“No âmbito da subjetividade no atendimento psicológico, vejo esta condição produzir o sentimento de não reconhecimento e não pertencimento, afetando diretamente a saúde mental. Muitos desses sujeitos não vão se reconhecer como negros, uma vez que o conceito de negro que temos no Brasil é muito truncado. Por muito tempo você ser reconhecido como uma pessoa negra era uma atribuição negativa, ligada à pobreza, à criminalidade, aos fenótipos que fugiam da construção social de beleza”, afirma o psicólogo.

De acordo com o IBGE, as pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas no Brasil saltaram de 53%, em 2012, para 56,1%, em 2021. Hoje, o instituto oferece estas duas opções de autodeclaração, para além de branco, indígena e amarelo.

Nos anos de 1976 e 1998, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD, o IBGE deixou a pergunta sobre raça em aberto, para que as pessoas pudessem dizer livremente como se identificavam. O resultado foi 136 e 143 nomes diferentes, respectivamente - o que demostra que o esclarecimento sobre raça no Brasil já era complexo em tempos recentes passados.

Negro demais para ser branco, branco demais para ser negro

Muitas pessoas pardas têm dificuldade de se reconhecerem como pessoas pretas de pele clara devido ao conceito de beleza ligado à moral que está impregnado na sociedade, de acordo com a doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília (UnB) e professora pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), Jaqueline Gomes de Jesus. A especialista cita Platão para aprofundar o tema.

“Platão dizia que ‘o belo também é bom e verdadeiro’. Quando ele fala isso, na concepção de verdade, para muitas pessoas na contemporaneidade, existe sutilmente a ideia do que o que é lido como feio é considerado incapaz, e o negro na sociedade ocupa esta posição. As pessoas lidas como bonitas, as brancas, são consideradas mais confiáveis”, comenta Jaqueline que reforça que este julgamento é acentuado quando falamos das  mulheres negras.

“Quando você entende que uma mulher só se sente bem quando sai maquiada, ou com um tipo de penteado e uma determinada roupa, isto fala muito sobre o aprisionamento destas mulheres. Na questão do cabelo, por exemplo, para mulheres negras este é um ponto central de afirmação de identidade e que traz um julgamento social de juízo de valor. O cabelo afro muitas vezes traz uma leitura de falta de segurança para as pessoas devido a esta construção do belo. Isso afeta especialmente as mulheres”, defende a especialista.


‘Cafuçu’: A fetichização de corpos negros de pele clara na pornografia LGBT+

'Cafuçu' é um termo utilizado nas buscas de pornografia LGBT+ que se refere a homens de pele negra clara.
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'Cafuçu' é um termo utilizado nas buscas de pornografia LGBT+ que se refere a homens de pele negra clara.



O psicólogo Daniel Amâncio, que também é mestrando no Programa de Estudos da Condição Humana pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), retoma o debate para a comunidade queer e traz uma reflexão sobre um termo comumente encontrado em conteúdos pornográficos feitos para homens gays : ‘cafuçu’.

A palavra tem origem em outro termo, ‘cafuzo’, que se refere às pessoas nascidas a partir da mistura entre índios e negros. Segundo Amâncio, no ambiente pornográfico gay brasileiro, esse termo é a “materialização da hipersexualização de homens não brancos, em sua maioria pardos”. 

“É o corpo negro de pele branca que serve para ser explorado sexualmente”, afirma. Para o especialista, parte do que contribuiu para que estes estereótipos sejam difundidos é o processo social a que pessoas pardas são submetidas, desde pequenas, que é “cheio de eufemismos”.

“Elas crescem sendo chamadas de ‘moreno’, ‘moreninho’, ‘mulata’, ‘marronzinha’. Isso afeta demais o reconhecimento individual da pessoa e, uma vez que o negro é considerado ruim na sociedade, essas pessoas acabam se aproximando mais de uma identidade branca, e podemos observar esse movimento em diversas intervenções físicas como alisamento de cabelo, além do clareamento da pele, axilas e partes íntimas”, diz.

Jaqueline de Jesus salienta que é importante olhar o desejo ao corpo negro de pele clara por duas óticas: o desejo sexual, “que chamamos de fetichização”, e o desejo amoroso, “que envolve o interesse afetivo”.

“Para pessoas negras de cor parda, essa experiência de ser lida como ser objeto sexual ou amorosa, é importante porque gera uma insegurança psicológica e um conflito em se colocar como uma pessoa mais embranquecida, o que permite mais mobilidade, mais capital humano e social, contudo, ao mesmo tempo isto não corresponde à imagem construída da pessoa socialmente, que não é lida como branca pela sociedade”, afirma.

Daniel resgata ainda o passado para entendermos porque estes estereótipos perpetuam na contemporaneidade, uma vez que o Brasil é fruto de uma colonização eurocentrada que valorizava corpos e traços brancos.

“A religião aceita era a branca [o catolicismo], Jesus Cristo é reproduzido como branco, os anjos são brancos. Todos estes códigos tornaram o oposto, a pele negra e tudo o que está relacionada a ela, sinônimo de ruim. A religião e a cultura negra são demonizadas, os corpos negros são lidos como perigosos, virulentos, sujos, fedidos e hipersexualizados”, explica.

O acadêmico ainda defende que o embranquecimento da população foi um projeto de país, que visava o apagamento e genocídio das populações negra e indígina.

“Acreditava-se que em até três gerações ia ser possível acabar com estas pessoas, gerando uma população apenas com indivíduos de peles brancas - um projeto genocida de tornar o Brasil uma europa tropical que foi mal sucedido”.

Negros de pele clara não estão isentos de racismo

“Os meios da branquitude sempre vão reconhecer os corpos não brancos, por mais que uma pele negra seja clara”, diz o psicólogo Daniel Amâncio sobre o racismo às pessoas negras de pele clara.
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“Os meios da branquitude sempre vão reconhecer os corpos não brancos, por mais que uma pele negra seja clara”, diz o psicólogo Daniel Amâncio sobre o racismo às pessoas negras de pele clara.


O psicólogo Daniel Amâncio chama a atenção para um ponto importante. Ser uma pessoa negra de pele clara não isenta este indivíduo de sofrer racismo, uma vez que “os meios da branquitude sempre vão reconhecer os corpos não brancos, por mais que uma pele negra seja clara”.

“As pessoas pardas podem não se reconhecer como negras, por uma ausência dos fenótipos demarcados, mas ao mesmo tempo elas passam por experiências que são estruturadas no racismo, como a hipersexualização, o encarceramento e os estereótipos”, diz o profissional que contrapõe o argumento defendendo que “na questão de identidade, os pardos podem não se sentirem acolhidos, nem pelo grupo branco e nem pelo negro de pele mais retinta, o que produz sofrimento psíquico e angústia”. 

“A rede de apoio é importante para a construção de identidade e até para o resgate ou a descoberta da identidade, como a autora Neusa Santos Souza fala sobre o processo político de torna-se negro. O ponto é que ainda não temos uma resposta única, sobre a problemática do colorismo, o que acaba virando uma ferramenta de uso do racismo, gerando ainda mais exclusão”, finaliza.


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