Os atores Romulo Alves e Victor Marinho
1. Diego Dias Gomes/2. Breno Chempe
Os atores Romulo Alves e Victor Marinho

O Brasil foi o último país a abolir a escravidão e, quando fez, não houve nenhum tipo de assistência para a população negra, fazendo com que precisassem continuar vivendo em condições precárias e desumanas. Ao longo dos anos, essa falta de assistência socioeconômica se refletiu em todas as áreas que essa população está inserida.

No contexto LGBTQIAPN+, a população negra também sofre com os resquícios históricos e estruturais do racismo  porque, ou os insere em um lugar de preterimento, ou em um lugar de sexualização. E, para além disso, há ainda uma grande cobrança da sociedade que os enxerga de maneira negativa, tanto por serem pessoas negras e LGBTQIAPN+.

Na indústria cinematográfica, não é diferente : estes corpos, embora estejam inseridos em mais espaços na atualidade, ainda são colocados em situações desagradáveis. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que 54% da população se autodeclara negra, entretanto, a participação de atores negros nas produções não reflete essa maioria da população, pois são poucos. E, quando tem, a maioria dos papéis que representam são de empregados domésticos, cozinheiros, faxineiros, bandidos, jogador de futebol e entre outras representações de estereótipos racistas.

Romulo com uma camiseta branca e cueca branca
Diego Dias Gomes

Ator Romulo Alves, 22, já participou de "Amor de Mãe" e "Dom"

Romulo Alves , 22, ator negro gay, conta que percebe essa realidade em sua carreira. O jovem já participou da novela “Amor de Mãe”, da Globo, e da série “Dom”, do Prime Video, além de produzir conteúdo nas redes sociais.

“Ser negro e ator sempre foi muito difícil porque muitos dos papéis que o audiovisual tem são para negros representarem escravizados ou bandidos. Isso é uma loucura porque somos mais que isso. Nós também podemos ser um príncipe, um vilão e não apenas um escravizado. Em ‘Dom’ fui um personagem do tráfico, mas optei em realizar para ter material e experiência”, diz.

Em sua trajetória, ele sempre teve interesse pela arte desde a infância, porém sua família nunca acreditou que ele poderia conseguir algum trabalho na área.

“Éramos uma família muito pobre, só que eu nunca desisti, mesmo sendo uma criança, fazia de tudo para me encaixar. Foi aí que encontrei minha produtora, sendo a mesma até hoje, e com ela pude ser inserido nas obras em que participei”, conta o artista.

De acordo com uma pesquisa feita em 2016 pela Agência Nacional de Cinema (Ancine), há apenas 13,3% de atores negros fazendo parte do elenco principal, enquanto os homens brancos são maioria em diretores (75,4%) e produtores (59,9%). Quando o foco são as mulheres negras, elas não aparecem nem como diretoras ou roteiristas e, embora apareçam na lista de produção-executiva, ainda é em equipes mistas, que representa 4%, e não quantifica quantas mulheres negras são essencialmente.

Romulo reflete que a sua sexualidade não impacta tanto no seu trabalho, pois a sua etnia é sempre colocada à frente. E, mesmo conseguindo trabalhos, há ainda uma reprodução de violências racistas. “Houve uma vez que uma marca queria me contratar, mas ela pediu para eu diminuir o volume do meu cabelo”, relembra.

“Inclusive, em testes que somos convocados, percebemos que uma pessoa branca, na maioria das vezes, não tem nem o perfil para aquele papel. Só pelo fato dela ser uma pessoa branca, bonita e com olhos claros, ela será escolhida. Já nós, atores negros, seremos recusados ou colocados em elenco de apoio”, defende.

Apesar de ter orgulho de ser quem é, “eu sou gay e muito bem resolvido comigo e com minha família, que me ama do meu jeito e eu sou muito grato por isso”. Ele argumenta que a maior dificuldade que enfrentou para alavancar sua carreira foi conseguir patrocínios. “Procurei até a prefeitura do meu bairro, porém sempre recebia o 'não' deles", conta.

Apesar disso, ele tem convicção e aconselha que outros, assim como ele, não desistam: “Não é fácil, não será nunca, mas aceite o ‘não’ como um aguarde. Tenho para mim que quando alguém me diz 'não', ele está me desafiando. Aí mesmo que vou insistir até conseguir. Por isso, não desistam e foquem em seus objetivos”, pontua o ator.

Em outro contexto, surge Victor Marinho , 26, que para sair deste lugar de falta de representatividade ou da representação estereotipada, focou em produzir suas próprias produções enquanto ator, fotógrafo e produtor audiovisual. O jovem tem seu canal “Deu M”, no Youtube com os sócios Carlos Matheus, Sara chagas e Mateus Scalabrini.

Victor com uma calça jeans e um cropet rosa com mangas
Breno Chempe

O ator Victor Marinho, 26, posta suas obras em seu canal "Deu M"

Lá, ele publica algumas de suas produções, como o filme “No Sigilo” e “Você é o Melhor Para Mim” e vários outros filmes e webséries, com a maioria de atores negros e focados em uma temática LGBT+.

Para ele, ser um ator negro gay é ter que lutar todos os dias e correr atrás dos sonhos e se dedicar muito. “Produzo meus próprios conteúdos porque eu vi que precisava contar as minhas próprias histórias e colocar nas minhas histórias pessoas que julgo que também não são representadas nas produções audiovisuais brasileiras. Então, ser um ator negro gay no Brasil é ter que se autoproduzir constantemente”.

Antes dele se tornar ator, ele já realizava computação gráfica e projetos que envolvia a produção audiovisual. Foi a partir disso que decidiu unir o útil ao agradável e preencher as lacunas que notava nas produções brasileiras.

“Quando eu fazia teatro, só tinha dois negros na turma e o professor elogiava muito nós dois e falava muito bem da gente, mas na hora de escolher os atores para os personagens, nem eu e nem a outra menina eram escolhidos para esses papéis. Foi quando eu decidi que iria usar a minha voz e o canal, que no início era só tinha conteúdo sobre cabelos”, recorda.

Assim como Romulo, ele percebe que a sua cor é sempre mais importante do que sua orientação sexual na hora de conseguir trabalhos, pois diz que ao olharem para ele, já inicia um processo de descapacitarem seu talento. “A gente tem que ficar se provando toda hora e essa coisa de ter que ficar se provando é muito chato. Temos que provar que conseguimos efetuar um trabalho que a gente sempre estudou e se dedicou muito para fazer”.

Mesmo que Victor produza suas obras, há ainda uma dificuldade de arranjar patrocinadores, mas ele continua e sempre tenta fugir dessas representações caricatas e clichês dadas para atores negros.

“A gente já consegue fazer outro recorte no canal, mas ainda nas produções grandes quando recebo testes para fazer, sempre tem aquele mesmo estereótipo de sempre e eu acabo fazendo por causa do dinheiro, pois preciso sobreviver. Mas sempre questiono essa estrutura, pois precisa entender como esse sistema funciona. Quando temos essa consciência, podemos usar essa visibilidade e produzir conteúdos mais responsáveis nas redes sociais. Você faz outro conteúdo para poder agregar as pessoas, não se limitando aos papéis clichês que conseguimos”. defende Marinho.

Além disso, em sua concepção, é preciso ter mais profissionais negros em todos as áreas da produção audiovisual, não só na frente das câmeras, mas também na direção, roteiro, maquiagem, produção, entre outros. Pois, só assim, haverá um melhor entendimento de como esse time de pessoas gostaria de ser tratado e, até mesmo, alertar sobre certas situações que poderiam ser problemáticas para a população negra.

“As pessoas brancas não têm essas informações porque não faz diferença na vida delas. Nunca tem uma pessoa preta para falar o ‘não’ nesses casos e isso evitaria muitos outros problemas, como falta de representatividade, campanhas publicitárias problemáticas e afins”.

Victor também aconselha para quem quer ser ator, primeiro estude muito e tudo que puder, desde fotografia, direção, gravação e roteiro. Além disso, tenha uma rede de apoio de pessoas parecidas com você e que te apoiam e enfatiza o conselho de não desistir: “É bem difícil, mas quando você encontra o seu público, as coisas fluem”, finaliza o artista. 

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** Julio Cesar Ferreira é estudante de Jornalismo na PUC-SP. Venceu o 13.º Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão com a pauta “Brasil sob a fumaça da desinformação”. Em seus interesses estão Diretos Humanos, Cultura, Moda, Política, Cultura Pop e Entretenimento. Enquanto estagiário no iG, já passou pelas editorias de Último Segundo/Saúde, Delas/Receitas, e atualmente está em Queer/Pet/Turismo.

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