O silêncio de pré-candidatos a cargos públicos em 2022 com relação às políticas de mulheres lésbicas, bissexuais, trans, travestis e transvestigênere é notório e incômodo, apesar de não ser uma novidade. Com a falta de diálogo e insatisfação diante do governo Jair Bolsonaro (PL), o ano eleitoral gera altas expectativas para uma mudança de direção capaz de reverter desmantelamentos e alcançar novas conquistas para minorias de direitos.
Juliana Bertholdi, advogada especializada em direito público e direito eleitoral, explica que o Brasil tem caminhado para posturas mais conservadoras nos últimos anos, o que tem impactado a forma como pessoas candidatas e pré-candidatas estruturam suas agendas. “No último 29 de janeiro, Dia da Visibilidade Trans, me recordo apenas da pré-candidata Marina Silva ter se posicionado em suas mídias sociais. O silêncio das demais pré-candidaturas reverberou pouquíssimo na mídia tradicional”, lembra.
Bertholdi indica que essa é uma falha profunda, já que as pautas ligadas à comunidade LGBTQIA+ precisam estar presentes nos programas governamentais. “É preciso, mais do que nunca, que a ala política progressista como um todo se manifeste expressa e abertamente sobre as pautas LGBTQIA+, permitindo a existência de um debate transversal”, opina.
“Não basta relegar a pauta a um pequeno trecho de seu caderno de propostas, como se as pessoas LGBT não trabalhassem, comprassem, amassem, tivessem filhos, fossem também negras ou indígenas. O país que mais mata LGBTs e Defensores de Direitos Humanos na América Latina não pode se dar a este luxo”, continua.
“Precisamos de uma refundação desse país e olhar para os discursos presidenciáveis, porque aqueles que estão se candidatando também precisam trazer uma agenda de valorização de direito de vida para essa comunidade”, concorda e acrescenta a vereadora Erika Hilton (PSOL-SP).
A supervisão não significa observar apenas as propostas, mas como a participação dessas mulheres e de pessoas LGBTQIA+ em geral será realizada após a eleição. A vereadora ressalta a necessidade de ter atenção à escolha de nomes para integrar as equipes de campanhas e, no caso do candidato eleito, quais são as pessoas que devem integrar a equipe da presidência da república, por exemplo.
“Nós queremos ver mulheres trans, travestis, a comunidade LGBTQIA+ fazendo parte da construção. Nós precisamos tirar este grupo da marginalidade, do anonimato e da exclusão”, acrescenta.
Bolsonaro dificultou ascensão de políticas
Michele Seixas, pesquisadora e representante da Articulação Brasileira de Lésbicas (ABL) no Rio de Janeiro e fundadora da Diretoria Geral do Instituto Brasileiro de Lésbicas, aponta que existe a mesma expectativa para mulheres lésbicas, cuja população, segundo ela, é desprovida de conquistas políticas.
Seixas afirma que essa relação ficou ainda mais dificultada após a chegada de Bolsonaro à presidência. "É um governo em que não há uma chance de diálogo, que não nos identifica e não nos respeita como cidadãs", começa a pesquisadora.
"Desde que Bolsonaro entrou no poder, nós não fizemos nenhum avanço no que tange às políticas sociais para nossa população. Muito pelo contrário, tivemos retrocessos", acrescenta Seixas. Como exemplos, ela cita a extinção de departamentos, ministérios e conselhos dos quais mulheres LBT poderiam se beneficiar ou ter participação política, como a Secretaria de Promoção de Igualdade Racial (SNPIR), o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e o departamento de HIV e Aids do Ministério da Saúde.
O motivo pela falta de políticas voltadas para a população lésbica e bissexual, de acordo com Seixas, é que elas ainda são vistas sob uma ótica cisheteronormativa na qual essas mulheres não se encaixam.
Este fato pode ser notado com a exclusão do lesbocídio e da lesbofobia das peças de combate à violência veiculadas pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), por exemplo. A mesma omissão ocorre de acordo com ataques transfóbicos sofridos pela população trans, travestis e transvestigênere. Isto porque a abordagem a pasta chefiada por Damares Alves é de uma proteção menos ampla, ligadas à violência de gênero cometida contra mulheres cis hétero, geralmente condicionadas em relacionamentos abusivos.
No entanto, o índice de violência contra mulheres lésbicas e bissexuais, motivada tanto por orientação afetivo-sexual como expressão de gênero, é tão alta quanto às violências sofridas por mulheres héteros. Uma das poucas pesquisas que monitoram esse dado, que leva em consideração os números coletados entre 2015 e 2017 pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), aponta que 32,6% de 24.564 notificações de LGBTfobia foram feitas por mulheres lésbicas.
"Não vejo nenhuma campanha contra o feminicídio e muito menos interesse deste ministério em pautar o combate à lesbofobia. Temos que ter olhos e mente bem abertas para um pensamento firme em relação a qualquer ação que venha de cima para baixo, principalmente do governo federal", aponta Seixas.
Hilton acrescenta que, por mais que o governo Bolsonaro não seja o criador do ódio e da intolerância contra as pessoas LGBTQIA+ no Brasil, a eleição do presidente representou um cenário de legitimação de um programa e uma agenda antidireitos.
“O cenário para as pessoas LGBTs, em especial para as mulheres trans e travestis, sempre foi muito difícil, de exclusão, de marginalização, de negação de direitos. Esta realidade ficou ainda pior. Se tirarmos como parâmetro toda sociedade que não só as pessoas LGBT, nós conseguimos ter uma uma análise da importância de derrubarmos Bolsonaro”, pondera a vereadora.
Saúde sexual
A saúde sexual de qualidade e especificamente voltada para as demandas de mulheres LBT é uma demanda antiga, mas que continua pouco navegada no Brasil. Mesmo com a criação da Política Nacional de Saúde Integral de LGBTs, criada pelo Ministério da Saúde em 2011, o índice de queixas de mulheres cis e trans que recebem tratamento inadequado é alto.
Seixas fez parte da turma de formação e multiplicação desta política em 2016, durante o governo de Dilma Rousseff. "É uma política de extrema importância e, dentro dela, há um livreto específico da saúde das mulheres lésbicas e bissexuais. Como pesquisadora, tenho observado que o debate sobre a pauta de pessoas trans aumentou muito, mas, com foco na saúde das mulheres lésbicas, nada foi implementado no estado do Rio de Janeiro, por exemplo. Poucas pessoas estudam e pesquisam com foco em nós, e pouquíssimos estados têm políticas específicas para a saúde das mulheres", afirma.
A pesquisadora continua afirmando que a existência da política não garante um atendimento de qualidade, mas que prevê formação adequada de profissionais de saúde. "Médicos, enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos, qualquer profissional que trabalhe na saúde e não tenha formação antirracista ou que não seja heteronormativa vai cair no erro de um atendimento patriarcal", diz.
A jornalista Larissa Darc, autora do livro "Vem cá: vamos conversar sobre a saúde sexual de lésbicas e bissexuais", afirma que o livreto do Ministério da Saúde é "muito bem feito" e "recheado de informações importantes", mas só isso não basta.
"Se ele não for desmembrado em ações práticas, não vai trazer nenhuma mudança significativa, nenhum avanço. Precisa ser considerada a falta de educação sexual plural e diversa e a falta de preparo na formação inicial dos médicos para lidar com pessoas LGBT", pondera Darc.
Ela concorda com Seixas ao afirmar que a falta de capacitação dos profissionais, o atendimento não direcionado e até mesmo equipamentos usados para exames de rotina, por exemplo, afastam as mulheres lésbicas e bissexuais do sistema de saúde.
A jornalista cita ainda a propagação de informações falsas por médicos que podem prejudicar a saúde dessas mulheres e de homens trans. Um exemplo recorrente é a crença constante de que pessoas com vulva que não têm relações sexuais com pessoas com pênis "não precisam realizar exames de rotina" como o papanicolau ou o ultrassom transvaginal.
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“A gente começa a vida sexual sem informação nenhuma. Já temos uma educação sexual defasada que, quando existe, é heterocentrada. Não se sabe nada sobre os sexos que fogem desse padrão heteronormativo, não se sabe que precisa ir ao médico e que sexo entre vulvas pode transmitir infecções sexualmente transmissíveis”
A consequência são violências e traumas vindos de atendimentos inadequados; a dificuldade em pedir guias de encaminhamento a exames de rotina; e até mesmo diagnóstico em estágio já avançado de doenças ginecológicas e uterinas, como o câncer cervical.
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“Por isso, não adianta só ter papéis escritos. A gente precisa de ações concretas que possam ser implementadas rapidamente, que sejam fáceis e baratas. É preciso difundir informações, fazer com que as pessoas primeiro entendam que isso é um problema para termos o melhor atendimento. Também precisamos discutir formas de prevenção que não existem e disponibilizar instrumentos adequados para exames não violentos”, finaliza.
Participação política
A participação política de mulheres LBT nas instituições tem se mostrado de extrema importância para impulsionar as conquistas municipais, estaduais e federais. Bertholdi aponta que isso ocorre porque as candidatas já estão inseridas em ambientes políticos e conhecem a militância, o que ajuda na proposta de demandas eficientes e corretamente direcionadas.
A especialista afirma que a presença de lésbicas, bissexuais, travestis, transvestigêneres e mulheres trans fomenta discussões e demandas que beneficiariam não apenas as comunidades às quais pertencem, mas a sociedade em geral. Estão incluídas neste contexto pautas de inclusão, gênero e diversidade.
“Víamos em Marielle Franco a experiência da mulher negra e homossexual que conhecia por completo as comunidades cariocas e suas dores, que já havia se levantado como liderança política antes mesmo de se tornar uma liderança na política-partidária”, exemplifica. A advogada cita ainda a deputada estadual Erica Malunguinho e a vereadora Erika Hilton. “São figuras que já possuíam histórico político e de militância, o que as confere uma força, experiência e legitimidade ímpares”.
Seixas acrescenta que existem deputadas que reforçam o compromisso com a pauta de mulheres LBTs em suas candidaturas, casos como os de Luizianne Lins (PT), Renata Souza (PSOL-RJ) e Mônica Francisco (PSOL-RJ); além do deputado David Miranda (PDT). Esses são exemplos que também se alinham às demandas da população negra, ela destaca.
Por mais que as candidaturas de pessoas trans, com destaque para mulheres, travestis e transvestigêneres, tenham crescido, há ainda uma dificuldade de pontuar a presença de bissexuais e lésbicas. As respostas para isso, segundo Bertholdi, estão em dinâmicas de poder e teorias de gênero.
“Primeiro, é preciso se dizer o óbvio: a política brasileira é historicamente um espaço masculino, branco, heterossexual e relegado às classes mais altas. Assim, a cada vulnerabilidade social acumulada, a participação política decresce. É bastante lógico, ainda que lamentável, que a soma destas características importe em uma menor participação política das mulheres LBTQ, pois importa também em uma maior violência enfrentada no espaço político”, analisa a advogada.
Hilton afirma que é necessário pressionar os partidos políticos para que estes empoderem e valorizem as candidaturas de toda comunidade LGBTQIA+ e, assim, mais cadeiras sejam ocupadas por ela. “Nós não queremos apenas que haja um representante ou pessoas preocupadas com os nossos direitos. Também queremos fazer parte desta construção de um país melhor para todos, em especial para nós, mas que isso também possa partir de nós”, explica a vereadora.
Ela destaca que é imprescindível que essas pessoas candidatas tenham recursos para campanha, além de tempo na televisão e rádio. “Só a partir da nossa presença e da nossa participação no no jogo político que nós poderemos superar essas triste marcas de Brasil”, pensa.
O Brasil dispõe de algumas políticas e iniciativas para fomentar a participação política. A mais notável nesse sentido é a lei nº 12.034/2009, que obriga que 30% das candidaturas de partidos sejam destinadas a mulheres. No entanto, houve casos de partidos que aderiram às candidaturas fantasmas para burlar a determinação, algo que a jurisprudência nacional tem trabalhado para punir de maneira mais veemente.
No entanto, as mulheres LBT poderiam se beneficiar ainda mais caso o PL nº 4795/20, de autoria do deputado federal Alexandre Frota (PSDB), fosse aprovado. “O projeto pretende reservar 30% das vagas de candidaturas dos partidos e coligações, nas eleições para os Legislativos, para candidatos LGBTQIA+, sem prejuízo das candidaturas previstas para os gêneros masculino e feminino, proposta ousada para o período absolutamente conservador que vivemos”, explica a advogada.
No entanto, a especialista aponta que a proposta está há mais de um ano paralisada, o que pode indicar que a pauta não é vista como prioridade ou que a recepção na Câmara dos Deputados foi baixa. Bertholdi diz que, para reverter a situação, é preciso que haja pressão popular em prol da aprovação do projeto de lei.
“Ainda há um longo caminho para que suas chances de aprovação sejam efetivamente avaliadas, mas o período de estagnação não nos permite gerar expectativas positivas. A título de comparação, as cotas femininas como entalhadas constituem uma luta de pelo menos 30 anos, quando o primeiro modelo de cotas de gênero, de natureza voluntária, começou a tramitar”, lembra.
Pautas devem ser representadas em pré-candidaturas
Hilton afirma que as expectativas para as eleições são altas e que não se deve tolerar agendas que excluam a comunidade LGBTQIA+. A vereadora aponta que as demandas principais estão relacionadas com as conquistas de direito, empregabilidade, acesso à saúde e educação e de renda básica para garantir a sobrevivência da população trans e travestis.
“É preciso reformular a cultura que olha para esse corpo como abjeto, como um corpo passível de ser agredido, de ser violentado. Para isso é preciso que haja um compromisso de toda a sociedade”, indica Hilton.
Além do retorno do diálogo a nível federal, Seixas acrescenta ainda a necessidade do reestabelecimento do Departamento de Apoio à Gestão Participativa e ao Controle Social da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde (DAGEP), capaz de garantir essa comunicação ao pensar ações de saúde.
“Queremos uma pessoa capacitada dentro da saúde da mulher no âmbito do escopo do organograma do Ministério da Saúde, de forma que essas políticas se estendam a níveis de governo e município”, indica Seixas.
A pesquisadora também indica a importância de pessoas que atuem na defesa e garantia de direitos humanos para mulheres lésbicas nos conselhos de direito dentro do controle social em todos os âmbitos. “Isto porque sabemos que a extrema direita tomou vários espaços, não só o governo federal. Mas sabemos que é dentro de uma lógica progressista que a gente vai conseguir debater a garantia dos direitos e de construção de políticas públicas da nossa população sapatão”, justifica.
A garantia para a construção dessas políticas é a representação das pautas nas esferas de poder. “Precisamos votar em candidatos alinhados à nossa pauta, mas também que consigamos reestabelecer parcerias mínimas que tínhamos anteriormente. Outubro vai decidir o futuro do país”, afirma Seixas.
“[As eleições] São uma possibilidade de que a gente coloque um presidente que vá dialogar com a gente. Para nós do movimento de lésbicas, seria muito importante ter um presidente que não dialogue minimamente, mas dialogue conosco como cidadãs que o colocaram no poder”, acrescenta a pesquisadora.
Hilton ressalta que as necessidades da população de mulheres trans, travestis e transvestigêneres não devem permanecer no horizonte apenas em 2022. “Nossa luta é árdua e contínua. Nossos passos vêm de longe e precisamos unir essas forças para superarmos este Brasil que estamos agora, mas sem esquecer que este é o Brasil genérico da nossa realidade”, afirma a vereadora.