Leo Moreira Sá participou de
Reprodução/Instagram - 17.10.2023
Leo Moreira Sá participou de "Agreste" e não foi cotado para ser protagonista

O longa-metragem escrito por Newton Moreno e dirigido por Sérgio Rozenblit, lançado no início de setembro no 27º Festival Cine-PE, em Recife, chegará também a 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, que acontece de 19 de outubro a 1º de novembro. Na obra, o protagonista trans Etevaldo é interpretado por um ator cisgênero, Aury Porto, enquanto Leo Moreira Sá , ator transmasculino, vive o coadjuvante Capitão Izidoro.

O iG Queer conversou com Leo Moreira Sá, o primeiro ator a se assumir como pessoa transmasculina e também a primeira pessoa trans a ganhar um prêmio Shell no Brasil, cujo objetivo é premiar os grandes destaques do teatro. 

Em 2019, Leo aceitou fazer uma ponta no longa-metragem enquanto estava na gravação de outro filme, “Vento Seco”, em Goiás. O artista recebeu o roteiro de “Agreste”, mas devido ao envolvimento intensivo nas atividades de gravação, ele não teve a oportunidade de ler o roteiro até o final para descobrir que o personagem principal era transmasculino. 

Após enviar seu teste de atuação, ele recebeu prontamente uma resposta positiva da equipe de produção do filme. “Fiquei feliz em estar finalizando uma filmagem e já ter a confirmação de um novo trabalho porque nós artistas trans temos poucos convites e temos que pagar nossas contas”, escreveu ele nas redes sociais em uma declaração sobre o caso. 

De volta a São Paulo, o ator conseguiu concluir a leitura do roteiro e, para sua surpresa, descobriu que o personagem principal era transmasculino. Ao questionar a equipe sobre quem interpretaria, ele recebeu a notícia de que um ator cisgênero estava escalado para o papel. 

“A pessoa que me atendeu defendeu a escolha do diretor dizendo que "o personagem tem um segredo que poderia ser ter asas, chifres..., mas tem vagina". Reflitam sobre essa justificativa para terem uma dimensão da dificuldade de grande parte de pessoas cisgêneras em entenderem vivências trans quanto mais fazerem algo que represente minimamente nossas existências”, completou no texto. 

O ativista e multiartista Leo Moreira Sá com o Prêmio Shell de Teatro
O ativista e multiartista Leo Moreira Sá em cena
O ativista e multiartista Leo Moreira Sá em cena
O ativista e multiartista Leo Moreira Sá em cena
O ativista e multiartista Leo Moreira Sá
O ativista e multiartista Leo Moreira Sá

Embora a revelação da identidade transmasculina do personagem aconteça nos momentos finais do filme, Leo questionou também se as vivências trans são passíveis de uma “revelação cis apoteótica.”  

“Chamar um(a) ator/atriz trans para o elenco de apoio onde a personagem trans protagonista é interpretada por um(a) ator/atriz cis é uma prática recente na tentativa de justificar o transfake em algumas produções cisgêneras”, defende. 

A problemática do transfake no Brasil 

No Brasil, o combate ao transfake  iniciou em 2017, quando um coletivo de artistas trans, incluindo o Leo, lançaram o “Manifesto Representatividade Trans”. O manifesto surgiu no desfecho da apresentação da peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, que teve Renata Carvalho , também artista trans, no papel principal. 

“Esse momento coincidiu com o ano de estreia da telenovela ‘A Força do Querer’. Após uma série de entrevistas com membros da comunidade trans, a autora Glória Perez tomou a controversa decisão de escalar a atriz cisgênero Carol Duarte para interpretar o personagem transmasculino Ivan. A justificativa dada pela autora foi percebida como transfóbica, argumentando que: ‘não é porque é trans que tem talento para interpretar um [personagem] trans’. Esse episódio marcou o início da luta por uma representação autêntica e inclusiva das pessoas trans na indústria do entretenimento no Brasil”, relembra. 

Ao levantar o debate contra o transfake, eles começaram a conscientizar a sociedade sobre a importância da representatividade nas artes para a comunidade trans. E essa conscientização vai além da mera busca por oportunidades no mercado de trabalho, sendo essencial para consolidar a luta por uma cidadania plena, pontua Leo. 

“A representatividade trans nas artes não significa apenas sermos incluídes nas obras com pequenos papéis ou figuração. Incluir artistas trans em papéis irrelevantes onde o personagem trans protagonista é vivido por ume artista cisgênere, tem como objetivo legitimar a prática do transfake como aconteceu na minha participação no filme ‘Agreste’”, adiciona Leo, que também é cofundador do Coletivo de Artistas Transmasculines (Cats). 

E, mesmo após cinco anos, há ainda obras que realizam o transfake: “Sentimos que essa luta precisa ser constante porque lutamos contra a transfobia estrutural que permeia todas as relações culturais. A nossa guerrilha há de ir, aos poucos, derrubando esses limites transexcludentes”, argumenta sobre o caso recente. 

No Brasil, algumas  obras audiovisuais que adotam o transfake são: “Carandiru”, “A Glória e a Graça”, “A Força do Querer” e “Bate Coração”. 

Paralelamente, há também a história da performance travesti, que remonta mais de 7 décadas. “Acredito que essa trajetória criou um background que possibilitou uma inclusão maior de artistas transfemininas em projetos artísticos”, defende. 

Mesmo com forte presença de transfemininas, sobretudo no teatro. “Elas sempre foram convidadas a interpretar personagens cômicos e/ou hipersexualizados, reforçando estereótipos que alimentam os discursos de ódio, fazendo do Brasil o campeão mundial de assassinatos por transfobia pelo 14º ano consecutivo”, afirma. 

Ele também analisa que hoje é possível ver mais artistas transfemininas em lugares de destaque interpretando personagens importantes, inclusive como protagonista de uma novela como a Maria Clara Spinelli. “Sabemos que antes não era assim e considero que essa conquista é fruto da nossa luta por representatividade”, evoca. 

Invisibilidades e desigualdades 

Leo afirma que a  comunidade transmasculina enfrenta uma invisibilidade histórica influenciada por diversos fatores, incluindo as normas patriarcais da sociedade. Para ele, sob a influência da cultura patriarcal, as pessoas trans muitas vezes se sentem compelidas a permanecer nos espaços marginalizados da sociedade. 

Isso se reflete no triste fato de que as pessoas transmasculinas muitas vezes enfrentam a tragédia do suicídio, o que acaba resultando em uma subnotificação dessas mortes. Leo destacou como essa invisibilidade persiste, mesmo na morte.

Ele também fez referência a uma pesquisa conduzida pela Universidade Federal de Belo Horizonte em 2015, na qual 85% das pessoas transmasculinas entrevistadas admitiram ter experimentado pensamentos ou tentativas de suicídio.

“No semestre passado deste ano recebi vários convites para interpretar personagens sem relevância que nem nome tinham: "o careca", “o legista”, “o coveiro”. No ano passado fiz uma participação fugaz em “Manhãs de Setembro", série de protagonismo trans, onde fui “o mecânico”, conta. 

Leo destaca sobre a importância de valorizar os talentos trans e de incluí-los em posições de verdadeira relevância nos projetos artísticos. Para o ator, a representatividade não deve se limitar apenas à atuação no palco ou diante das câmeras, mas deve se estender aos bastidores e a todas as áreas artísticas. “Quando o mercado cisgênero entender que a arte trans é de fato revolucionária, saberá valorizar e legitimar nossa capacidade profissional”, finaliza. 

Posição do diretor

Em carta que pode ser lida on-line , o diretor Sergio Roizenblit compartilha o relato do que aconteceu em relação à escalação do elenco do filme, a autocritica que fez após o evento e afirma que reconhece a importância de escalar artistas e técnicos transgêneros.

Confira a carta na íntegra: 

Publico este texto para compartilhar minha posição sobre o fato de ter escalado um elenco cisgênero num projeto em que a questão de gênero e orientação sexual são determinantes para a trama baseada no aclamado texto de Newton Moreno.

Em 2018, ano da pré-produção do longa, eu não tinha a consciência que hoje tenho sobre essa pauta e, escalei um ator cisgênero para interpretar o papel de um homem trans. Escalei esse ator por conhecer seu trabalho de longa data e confiar que ele corresponderia ao que eu  pretendia do personagem na tela. Foi o que eu pude fazer naquele ano que parece próximo mas que já vai longe dado tudo que aconteceu no planeta e especialmente no Brasil nos últimos anos. 

Agradeço de coração pelas suas lutas, que tanto têm ensinado a sociedade como um todo e a mim em particular.

Hoje reconheço a importância que escalar artistas e técnicos transgêneros tem, tanto para a comunidade diretamente envolvida quanto para a diversidade e para a aplicação efetiva de valores da cidadania na produção cinematográfica brasileira. Entendo que a inclusão de atores trans em papéis trans ou cis é da maior importância para a expansão do campo de trabalho de toda a comunidade.

Nós realmente tentamos integrar profissionais desta comunidade em outras funções determinantes na equipe, além de termos feito consultorias com um grupo de artistas trans, mas hoje reconheço que deveria ter feito isso com mais determinação do que fiz naquele momento. 

Aprendi muito com estes anos de Agreste. Me proponho a participar de debates e discussões públicas que promovam um diálogo construtivo sobre o tema.

Estou iniciando novos projetos e estou determinado a me retificar nesta questão. Me comprometo a contratar profissionais trans para fazer parte deles, sejam como atores, como parte da equipe criativa ou da equipe técnica.

Reconheço que a indústria do cinema tem papel significativo sobre questões sociais, pois, por meio de seu alcance, ela pode trazer mudanças profundas na sociedade e com isso, combater a violência contra pessoas transgêneros no Brasil e no mundo, dando oportunidades para que talentos Trans ocupem seus legítimos espaços. 

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