A representatividade LGBTQIA+ no audiovisual vem aumentado gradativamente, embora o cinema queer exista desde o século 19 de maneira velada. Entre 1894 e 1895, William Dickson produziu o curta-metragem “The Dickson Experimental Sound Film”, que acompanhava dois homens dançando com uma música sendo tocada ao vivo por um violinista.
Com isso, várias outras obras foram surgindo, mesmo que com uma representação LGBTQI+, mais singela e comportada para o período, pois havia uma maior censura e a sociedade não estava preparada. Tanto que cenas com nudez, sexo e outras obscenidades também eram censuradas, independentemente de serem queer ou não.
Entretanto, nos anos 90, o cinema queer ganha mais força com filmes como “Paris is Burning” (1991), “Looking for Langston” (1989) e Poison (1991). No Brasil, o mesmo ocorre, o primeiro filme com a temática queer aparece em 1967 com a obra “O Menino e o Vento” e ganha força nos anos seguintes.
Todavia, a maioria das produções audiovisuais que buscam representar a comunidade LGBTQIA+ de maneira mais plural, segue presente em um contexto independente dentro do cinema. Isso porque, as produções do mainstream ainda são centradas em homens gays brancos, ou com personagens gays femininos e caricatos, servindo como alívio cômico. Já quando o foco passa para um casal lésbico, existe uma grande sexualização das protagonistas.
Há poucos que conseguem fugir dessa linha, como, por exemplo, “Moonlight” (2016) ou “Rafiki” (2018), que aborda a temática com protagonistas negros e de forma sensível. Já no Brasil há produções que seguem no mesmo ritmo como “Tatuagem” (2013) ou “Alice Júnior” (2019).
“Com relação à representatividade, eu acho que nos últimos anos demos passos significativos. A indústria está entendendo a importância da luta por representatividade e vem abraçando isso cada vez mais. Hoje em dia, principalmente no streaming, vemos mais diversidade não apenas nas narrativas, mas também nas escalações. Mas acredito que esses avanços ainda estão acontecendo a passos de formiga. É possível (e necessário) mais ousadia”, defende Lucas Drummond, ator, roteirista e dramaturgo brasileiro.
Outro debate que surge é que mesmo que o filme seja sobre pessoas LGBTQI+, não ocorre a contratação de artistas queer para a interpretação destes papéis, dando lugar a atores e atrizes héteros ou cis. Ou até mesmo no backstage.
O estudo, intitulado “Where We Are on TV”, da Aliança de Gays e Lésbicas Contra a Difamação (GLAAD) apontou que, em 2021-2022, dos 775 personagens fixos de séries, apenas 92 se identificavam como um membro da comunidade LGBT, representando 11.9%.
“Eu gostaria de ver mais atores e atrizes trans fazendo personagens cis. Gostaria de ver a diversidade étnica do povo brasileiro representada de maneira mais fiel nas telas. Um dos meus filmes favoritos dos últimos tempos, 'Fire Island' [no Brasil, 'Orgulho e Sedução'], traz dois protagonistas ásio-americanos, por exemplo. O espaço destinado a artistas indígenas e com deficiência ainda é muito restrito. Quase inexistente, na verdade. E eu acho que, com o volume de produtos que estamos produzindo hoje com a chegada dos streamings na produção audiovisual brasileira, tem (ou deveria ter) espaço para todes”, completa Drummond.
Os serviços de streaming estão mudando as temáticas de suas produções, pois estão se adaptando às demandas da geração, que estão sempre pedindo por mais representatividade. Um exemplo, é a série da Netflix que fez sucesso mundialmente, inclusive no Brasil, “Heartstopper”.
“As produções nos streaming são um reflexo do que é mais permissível socialmente para o consumo, porque há um alinhamento ideológico para aquilo que é mais palatável, de certa forma, por exemplo, os gays brancos de classe alta representados em um drama familiar é totalmente diferente de você assistir os gays negros da periferia ou países africanos. É muito mais chocante você ver dois homens trepando do que duas mulheres. A mulher trans ou o homem trans, se têm passabilidade, é mais palatável para o consumo. Os filmes e séries que passam pelos filtros dos streaming, é um jeito também de medir como um lado da sociedade que se identifica com a classe dominante, mesmo sendo pobres, estão assimilando esses novos valores, refletindo em quais produções estouram ou não”, avalia Eliane Caffé, diretora e roteirista.
Entretanto, os serviços de streaming também consolidam uma maior facilidade de acesso a filmes com essa temática, pois grande parte são distribuídos de maneira menos abrangente. Dados do levantamento “Streaming 2022”, realizado pela Hibou, evidencia que 71% dos brasileiros afirmam assinar ou já terem assinado algum serviço para assistir a filmes ou séries on-line.
Em um contexto de filmes e séries que não são distribuídos largamente, a única saída para certas produções é permanecer em nichos fechados, sobretudo pela falta de incentivo financeiro.
“A principal dificuldade de qualquer projeto independente é a viabilização, ou seja, conseguir o dinheiro para tirar o projeto do papel. E, num país como o Brasil, em que os investimentos em arte e cultura são escassos, essa dificuldade se torna 13 vezes maior”, argumenta o roteirista. "Mas uma das coisas mais surpreendentes que eu aprendi desde que filmei o 'Depois Daquela Festa', meu primeiro curta como ator, roteirista e produtor, em 2019, é que se o filme for bem feito, é possível monetizá-lo. E isso é uma coisa que ninguém te diz”, expõe o ator.
“Os streamings são pensados para gerar dinheiro e atingir o mainstream, embora você tenha um ou outro filme, ou outro caso como, por exemplo, o MUBI, mais ousado na sua programação, ele está completamente fora do mainstream”, argumenta Eliane.
“Eu pessoalmente acredito que os grandes festivais de cinema, como Cannes ou de Veneza ficaram ultrapassados. Eles não representam mais como antigamente. Quando eu estava no começo da carreira, eram incríveis esses festivais, pois eram uma lanterna do que mais de vanguarda estava rolando no cinema e, hoje, essa lanterna não está mais nesses lugares. Esses festivais viraram, na verdade, grandes balcões de negociação. Essa lanterna da vanguarda está mais dissipada, está nas redes, e muitas vezes você tem que peneirar para achar onde estão esses trabalhos”, retoma a roteirista.
“Tem gente muito boa trabalhando nessas margens, mas que não chega ao público, não chega nos streamings. Acredito cada vez mais que os streamings e os festivais estão se igualando um pouco na domesticação, daquela estética feita mais para agradar os diferentes gostos, mas nada que abale as estruturas”, completa Eliane.
Apoio à produção audiovisual no Brasil
Lucas enfatiza que o Brasil tem vivido tempos sombrios para a arte e para a cultura. Ele diz que em um país como este, que apesar de extremamente rico culturalmente, tem uma tradição de não valorizar a arte como em outros lugares e reitera que as políticas públicas de incentivo à criação artística são importantíssimas.
"São fundamentais principalmente para os produtores independentes. Infelizmente, ao invés de aumentar e fortalecer as políticas de apoio à arte e à cultura, o Governo Federal tem, cada vez mais, cortado os investimentos no setor. Durante os últimos quatro anos, o Fundo Setorial do Audiovisual ficou paralisado. Depois dos 13 anos de prosperidade que esse país viveu, é muito triste ver esse boicote à cultura e essa hostilização dos artistas”, completa.
Por outro lado, Eliane expõe que ao longo de seus mais de 20 anos de carreira no cinema brasileiro, sempre foi difícil, mas nada se compara ao governo de Bolsonaro.
“É um país que vive tutelado, que vive ainda em uma colônia em muitos sentidos, não só no sentido econômico, mas ideológico também. Portanto, um país que não consegue valorizar o que significa investir na produção do cinema, não só um cinema de entretenimento, mas um cinema que oferece referenciais e dispositivos para ajudar as pessoas a lerem à complexidade da nossa sociedade. Então, ainda temos muito o que caminhar”, finaliza a diretora.
Agora você pode acompanhar o iG Queer também no Telegram! Clique aqui para entrar no grupo. Siga também o perfil geral do Portal iG.