O ator Eddie Redmayne interpretou a personagem trans Lili Elbe no filme A Garota Dinamarquesa (The Danish Girl)
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O ator Eddie Redmayne interpretou a personagem trans Lili Elbe no filme A Garota Dinamarquesa (The Danish Girl)

As causas do movimento de  pessoas trans vem, aos poucos, sendo incluídas na sociedade: as questões do nome social, da identidade de gênero, do uso dos banheiros. Em 2020, 30 homens e mulheres trans foram eleitos vereadores no Brasil, segundo informações da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Mas outro debate, voltado para o campo artístico, vem caminhando a passos ainda mais lentos: a questão do transfake , que é quando um artista cis interpreta um personagem trans em uma obra ficcional, o que ajuda a fortalecer o preconceito e a visão negativa sobre as pessoas trans na sociedade.

De acordo com a atriz e pesquisadora Renata Carvalho, que é fundadora do Movimento Nacional de Artistas Trans (Monart), o transfake nasce do “blackface”, que é uma prática racista em que atores brancos pintam o rosto de preto, fingindo ser negros, para fazer comédia sobre pessoas negras. Diferentemente do blackface, o transfake não ocorre somente na comédia, mas também no drama, quando personagens transgênero são interpretados por pessoas cisgênero, sem fidelidade à realidade e alimentando esteriótipos preconceituosos.

“Esse nome foi dado pelo movimento trans em 2017. Algumas pessoas não gostaram e tentaram mudar para ‘transface’, em referência ao blackface, mas nós não aceitamos porque não é a mesma coisa. O transfake não ocorre somente na comédia, mas também no drama. O que as duas coisas têm em comum é a prática de excluir corpos, pretos e trans, dos espaços de criação de arte”, explica Renata.

“Nós existimos nos roteiros, nas novelas, nas peças de teatro, mas não é permitido que nossos corpos estejam presentes para representar papeis, principalmente os protagonistas”, completa.

A atriz Renata Carvalho fundou em 2017 o Monart -  Movimento Nacional de Artistas Trans
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A atriz Renata Carvalho fundou em 2017 o Monart - Movimento Nacional de Artistas Trans

De acordo com a pesquisadora, o problema em pessoas cis interpretarem pessoas trans tem a ver com a falta de representatividade midiática e artística e, ao mesmo tempo, com a construção e a manutenção de estereótipos negativos sobre as pessoas trans , como a ideia de que não são pessoas de verdade, mas, como os atores e atrizes cis, que se vestem para a cena e depois voltam a ser cis na vida real.

“Estereótipos negativos nos acompanham em todos os âmbitos da nossa vida. A forma como a arte nos representa faz com que nós sejamos expulsas de casa, não tenhamos acesso a trabalho e a estudo. É o corpo-vergonha. Ninguém quer ficar perto. O corpo trans não é visto como humano. Quando buscamos representatividade nas artes – que é um espaço de prestígio social e respeitabilidade social – estamos buscando representatividade em todos os âmbitos sociais”, afirma Renata.

Para ela, a representatividade de pessoas trans nas obras de arte, principalmente no cinema, na TV e no teatro obriga as pessoas a verem e conviverem com a transexualidade, naturalizando aquelas pessoas e afastando as ideias de exotificação que ainda existem.

"Ao naturalizar nossos corpos, é possível humanizar as pessoas trans. Enquanto eu for a única travesti em qualquer espaço, serei exotificada”, opina ela, que recentemente protagonizou um curta metragem autobiográfico que também aborda o transfake (veja abaixo).


Analisando interpretações de pessoas cis para personagens trans, a pesquisadora concluiu que elas ajudam a afastar as pessoas trans da vida real de uma ideia de normalidade, contribuindo com a construir da ideia de que a identidade de gênero trans não é uma identidade, mas apenas um estado momentâneo ou algo desumano.

“Nossa existência é vista como farsa, anormal e animalesca", ressalta. "As narrativas mais comuns na arte para travestis e transexuais são a criminal, em que nós somos colocadas como perigosas; a sexual, do pornô, que eu costumo dizer que é o único lugar onde o nosso corpo é aceito completamente; a da estética, em que mulheres trans são ligadas a uma imagem muito masculina e homens trans atribuídos a imagens femininas; a da farsa, que reforça que somos uma mentira; a do segredo, que sempre tem algo a revelar e esconder, a surpresinha; a da doença, sempre nos associando a um corpo doente e causador de doença, muito pela aids; e, por fim, a narrativa do erro, que retrata um corpo errado, que precisa de ajuda médica ou divina”, enumera Renata, que, neste momento, está escrevendo um artigo científico com o compilado.

A pesquisadora ressalta que é comum que o galã e a mocinha sejam escolhidos para interpretar as pessoas trans, fomentando o esteriótipo e o preconceito. “Quando um ator como Rodrigo Santoro faz uma personagem trans e, na vida real, ele continua como Rodrigo Santoro, isso reforça a ideia de que somos homens de saia”, pontua. “Isso apaga as nossas vivências reais. Todas essas narrativas acabam reforçando a ideia de que a nossa existência não é natural”, pontua.

A atriz Anne Mota, de 22 anos, é uma das poucas exceções do cinema nacional a conseguir ser a protagonista de um filme de grande alcance midiático interpretando uma personagem trans,  Alice Jr. (Netflix) . Ela diz que muitas pessoas a confundem com a personagem, mas defende que isso precisa parar.

“Quando eu fiz Alice Jr., eu era apenas uma atriz fazendo o meu trabalho. Não é porque eu e Alice somos trans que somos iguais. É preciso desmistificar isso. Nós somos bem diferentes, inclusive”, afirma.

Segundo a pesquisadora, essa confusão entre personagem e ator ou atriz só acontece com as pessoas trans, já que as atores e atrizes cis estão sempre interpretando personagens cis, mas nunca são acusados de serem a mesma pessoa. “Ninguém diz que as mulheres cisgêneras, quando interpretam personagens de mulheres cisgêneras, estão interpretando elas mesmas e nem se imitando. A cisgeneridade é vista com diversidade, a transexualidade não. Esse é o problema”, afirma Renata.

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Na opinião de Anne, a questão do transfake é um problema também de mercado de trabalho. “Existem muitos atores e atrizes trans muito capacitados, mas as pessoas cisgêneras estão ocupando o nosso lugar, interpretando nosso papéis. Hoje, quando levantamos a nossa mão para dizer ‘opa, deixa eu pelo menos fazer esse papel aqui, para eu tentar me inserir nesse mercado’, as pessoas reclamam”, diz a atriz.

Ela também fala da importância da representatividade: “É preciso que as pessoas trans se vejam na telinha. Se você não se vê, você não existe”.

Para combater a prática do transfake, o Monart - que conta com mais de 170 artistas trans, de todo o Brasil, cadastrados em vários segmentos artísticos, performance, circo, artes plásticas, teatro - propõe que as pessoas parem de consumir as obras que praticam o transfake. Além disso, o movimento sugere um pacto nacional entre todo o setor artístico.

“Queremos fazer um grande acordo com os artistas, produtores, curadores e instituições para dar uma pausa no transfake pelos próximos 30 anos, com o objetivo de estancar a sangria. Nós queremos parar de morrer. Como transcóloga [neologismo para pesquisadora da transexualidade], eu tenho certeza que, se incluirmos os corpos trans na arte e deixarmos eles permanecerem, daqui a 30 anos esse país não será o que mais mata travestis e transexuais no mundo. Nossos corpos já vão ter sido naturalizados e, consequentemente, humanizados”, declara a fundadora do Monart.

Ela ainda afirma que não há problema em não saber ou não estar atento às pautas, lutas ou reinvidicações do movimento trans, mas salienta que é importante saber como agir diante dos peconceitos. "O que nós, artistas trans, esperamos é um comprometimento ético sobre as nossas causas... essa é uma luta artística, estética, política, mas, principalmente, uma luta humana. Estamos lutando por vidas. Estamos dando um grito de desespero para enterrar essa violência diária em cima das pessoas trans”, finaliza a pesquisadora.

Artifícios que mantêm o transfake

De acordo com a fundadora do Monart, existem alguns mitos, que ela chama de "cortinas de fumaça", que dificultam a discussão sobre o transfake. São eles: a ideia de que pessoas trans não podem interpretar personagens trans porque não estariam atuando de verdade; o mito do corpo neutro; a limitação dos atores e atrizes; uma incapacidade técnica das pessoas trans para a atuação; entre outros.

Renata Carvalho comenta um a um, destacando porque esses mitos não são verdadeiros. “No teatro, o corpo neutro é um artista sem sexo, uma tela em branco que pode ser pintada a partir de qualquer coisa. Mas qual o artista que pode tudo? O meu corpo é marcado. O fato de ser travesti me tira a possibilidade de interpretar qualquer papel”, argumenta.

“Eu atuei no filme 'Vento Seco' (veja o trailer abaixo), que não fala sobre transexualidade e travestilidade, e a minha personagem é cisgênero. Mesmo assim, a maioria das reportagens no Brasil saiu dizendo que a personagem era trans, pelo fato de eu interpretar ela. Esse mito do corpo neutro não chega aos corpos trans, negros e periféricos. Quem pode começar do zero, sem sexo, é o homem branco, cisgênero e publicamente heterossexual. O teatro foi feito para ele”, defende.




Sobre as limitações dos atores e atrizes, supostamente reduzidos a interpretar papéis unicamente cis e trans, de acordo com as identidades de gênero de cada um, Renata cita grandes nomes do teatro e cinema nacional, mostrando que ninguém os enxerga como limitados.

“A Fernanda Montenegro é limitada? O Antônio Fagundes é limitado? Eles interpretaram personagens cisgêneros a vida inteira, mas eles não são limitados. As pessoas não veem a transexualidade e a travestilidade com diversidade, como pessoas diversas. Acham que nós somos singular. Você conhece uma pessoa trans e acha que conheceu todas as vivências trans”, afirma a pesquisadora.

Já sobre o boato de que não há artistas trans capacitados, ela diz que prefere dar uma resposta certeira, que faz as pessoas refletirem: “Acho irônico. Os personagens trans geralmente são cheios de aptidões, mas nós artistas trans nunca temos capacidade de interpretá-los”.

Além das cortinas de fumaça, Renata ainda observa que uma prática comum ligada ao transfake, numa espécie de tentativa de legitimá-lo, é a inserção de atores e atrizes trans para atuar em papeis sem importância. “Coloca-se o ator principal, cis, fazendo uma personagem trans e vai ter uma pessoa trans atuando, com um personagem de segundo plano, para validar o outro, que está em primeiro plano. Isso é muito comum, principalmente no cinema”, diz.

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