Há muito tempo a comunidade transgênero tem travado uma batalha constante por visibilidade e direitos em diversos espaços sociais, especialmente no campo da saúde. Nesse contexto, a MSD (Merck Sharp and Dohme) Brasil está conduzindo um estudo no país, com o objetivo de analisar a prevalência e a distribuição dos diferentes tipos do papilomavírus humano (HPV) entre os indivíduos da comunidade trans, que abrange travestis, mulheres transgênero, homens transgênero, indivíduos de gênero diverso e indivíduos não binários.
“O HPV é a infecção sexualmente transmissível (IST) mais comum do mundo, estima-se que cerca de 80% da população sexualmente ativa será infectada pelo HPV em algum momento da vida”, afirma Estevam Baldon, gerente médico da MSD Brasil.
Ele explica que em maior parte da população, o próprio sistema imunológico vai tratar a infecção e ela não evoluirá. Contudo, em alguns casos, cerca de 15% ou 20%, pode evoluir para uma doença, com a presença de verrugas nas genitais ou outras áreas do corpo.
“Apesar de o tratamento ser possível, há o impacto psicológico. E, além disso, temos pessoas que desenvolvem câncer nos casos mais sérios, como o de vagina, de pênis, de cabeça, de pescoço, e o mais estudado, o de colo do útero”, diz o especialista.
A pesquisa vai avaliar indivíduos que se autoidentificam como transgênero, maiores de 18 anos, e que já tenham tido qualquer tipo de contato sexual. O período de recrutamento total será de 12 meses, com início neste mês e finalização em setembro de 2024, e a participação de 300 voluntários. Já os resultados devem ser publicados no segundo semestre de 2025.
“Analisaremos a população mais exposta por uma influência da sociedade, de não buscar saúde pública ou de não ter o acesso à saúde. Quando a gente vê essa população, é preciso de um olhar especial para pensar em como essas pessoas vão ter acesso à saúde, à prevenção, ao diagnóstico precoce e ao tratamento.”
Estevam afirma que o estudo tenta suprir uma demanda dentro da própria comunidade trans, e espera que com os resultados, os dados possam trazer melhorias e maior entendimento para o tratamento do HPV na comunidade.
Mulheres trans com HIV têm infecção por HPV de maior risco
O médico conta que a decisão de criar o estudo clínico partiu de uma pesquisa feita por Beatriz Grinsztejn, chefe do laboratório de Pesquisa Clínica em IST e Aids do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz), que demostrou que mulheres trans com HIV têm infecção por HPV de maior risco.
“Sabendo que o HPV de alto risco está mais relacionado ao câncer de colo do útero, eu notei que os homens trans não estavam inseridos neste estudo , sendo que o câncer de colo do útero está relacionado a pessoas com útero. Agora, a gente visa inserir todas as identidades trans para analisar melhor esse cenário.”
Estevam analisa ainda a dificuldade de dados sobre a saúde da população queer: “Quando a gente olha os poucos estudos sobre a população LGBTQIAP+ , eles focam mais em pessoas que vivem com o HIV/Aids , e mesmo que os estudos mostrem que essas pessoas têm HPV concomitante com o HIV, são poucos que demonstram qual é o tipo de HPV que está nessa infecção”, diz o especialista que afirma que existe “mais de 200 tipos de HPV.”
“A maioria deles são de baixo risco oncológico, mas há 13 que são mais arriscados, relacionados a se transformarem em um câncer”, diz. Para o gerente médico, o estudo inova por estudar não só a infecção em si, mas também as diferenças entre os variados tipos e como estes estão inseridos em cada indivíduo.
Com isso, a pesquisa analisará os partes do corpo que o HPV pode estar, como boca, vagina, ânus, vulva, colo do útero, entre outros, para entender se de fato há uma maior incidência do HPV nesta população e, a partir dos resultados, criar dados que colaborem para um melhor entendimento e tratamento dentro da literatura médica para essa população que não é bem analisada, segundo o médico.
“A proposta é pegar os resultados e enviar para o Ministério da Saúde, e aos médicos membros das câmaras técnicas, para que discutam sobre como melhorar o atendimento à população trans e como garantir acesso a tratamentos, vacina e ao melhor diagnóstico sobre o câncer do colo do útero e outros tipos de câncer relacionados ao HPV.”
Empoderamento
Outro ponto importante que a pesquisa levanta é o empoderamento da população transgênero. Ao participar de estudos científicos, os indivíduos têm a oportunidade de contribuir para o avanço da ciência e melhorar a compreensão de sua própria saúde. A inclusão de pessoas trans em pesquisas ajuda a desafiar estigmas e preconceitos, promovendo uma sociedade mais justa e igualitária.
“As informações reunidas na pesquisa podem ser utilizadas para discussões de políticas públicas em saúde, que podem facilitar o acesso da população trans à vacinação”, explica Estevam. “Além de contribuir para o desenvolvimento de recomendações preventivas e de cuidado e educação em saúde contínuas, garantindo a equidade de direitos a esses grupos minorizados e aumentando sua visibilidade perante a sociedade.”
Como o estudo será feito
O estudo inicia com os voluntários respondendo perguntas pessoais e sobre a vida sexual, depois os participantes são levados para a coleta de amostras. O médico da MDS pontua que as amostras colhidas serão de genitais, colo do útero, cavidade oral e anal.
“Na construção do estudo, a gente precisou pensar também em uma linguagem inclusiva, porque já existem formulários, mas eles precisaram ser repensados para essa população.”
A MSD Brasil conta com a parceria de dois centros especializados em atender essa população, um no Rio de Janeiro e outro em São Paulo , sendo eles o Centro de Referência e Treinamento IST/Aids-SP e a Fiocruz. A escolha dos centros especializados também foi pensada para que, caso a pessoa tenha sido infectada com o HPV de alto risco, ela já saía da pesquisa com acompanhamento e tratamento.
Para participar do estudo, todas as pessoas serão perguntadas se têm interesse ou não. Após a explicação, será realizada a entrevista e preenchimentos dos questionários. No final dessa triagem, a pessoa será levada para fazer a coleta das amostras.
Com as amostras colhidas, elas serão levadas para o laboratório e com os resultados primários, serão mapeados quantas delas têm HPV, quantas não, se é de baixo ou alto risco, e se o HPV está incluído ou não na vacina do PNI (Programa Nacional de Imunizações). “Será uma parte bastante exploratória”, informa Estevam.
Para quem está fora dos centros especializados e deseja participar, o especialista conta que será divulgado, a qualquer momento pela internet, sobretudo nas redes sociais da Casa da Pesquisa, vinculada ao CRT IST/Aids de São Paulo , a forma como estas pessoas poderão contribuir com o estudo.
Com os resultados estimados para o segundo semestre de 2025, o estudo clínico buscará trazer à luz dados que são escassos sobre o HPV e sua manifestação na comunidade T, e com as informações, a MSD Brasil busca gerar uma discussão que possibilite a inclusão no PNI e o acesso à vacinação a esta população.
“Infelizmente a população LGBTQIAPN+, principalmente a transgênero, ainda é sub-representada em muitos estudos científicos, o que limita a generalização dos resultados e a aplicabilidade dos tratamentos”, argumenta Estevam, que finaliza dizendo que: “É crucial que mais pesquisas sejam realizadas com foco nessa comunidade, a fim de eliminar essa disparidade e garantir que as necessidades de saúde específicas de pessoas trans sejam devidamente atendidas.”
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