Um projeto de lei que institui 26 de setembro como o Dia de Conscientização Contra a Mutilação Infantil foi aprovado na Câmara Municipal de São Paulo no final de agosto. O PL 426/2022 é de autoria da Bancada Feminista (Psol) em colaboração com a Rede Brasileira de Pessoas Intersexo e a Associação Brasileira Intersexo (Abrai).
A data objetiva promover a sensibilização e treinamento nos serviços de saúde e assistência social sobre a luta de pessoas intersexo, assim como promover campanhas com a população. O texto agora aguarda a sanção do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB).
"O dia 26 de setembro é o aniversário do Jacob que é o filho da Thais Emília, presidenta da Abrai. O bebê se tornou um símbolo luta intersexo e infelizmente acabou falecendo, por conta de uma cardiopatia", conta ao iG Queer Carolina Iara, a primeira codeputada intersexo das Américas. Conheça a história de Jacob nesta reportagem.
"Nós conversamos com a Abrai, a qual ajudei a fundar, e estávamos naquele momento com o desejo de realizar uma grande ofensiva com relação a pauta intersexo e colocá-la no debate público. Fizemos na época [em 2021, no primeiro mandato como vereadora de Carolina] uma audiência pública sobre a população intersexo brasileira, a primeira que foi feita nos parlamentos, na Câmara Municipal, puxada por Erika Hilton, Eduardo Suplicy e eu."
"Em 2022, chamei a Abrai de novo para desenharmos um projeto de lei e aí nós desenhamos dois: um que era o para instituir o dia 28 de outubro como o Dia da Visibilidade Intersexo e o outro que é o Dia da Conscientização Contra a Mutilação Genital Infantil, para 26 de setembro, falando sobre a pauta intersexo no texto", continua a codeputada.
"Eu fui eleita junto com a Bancada Feminista estadual, só que o PL ficou na Câmara Municipal e tramitou. As bancadas conservadoras não quiseram o Dia da Visibilidade Intersexo por uma questão ideológica do nome, mas aceitaram a questão da contra mutilação genital infantil."
Pauta nacional
A parlamentar afirmou que a aprovação do PL levou a pauta para o debate público nacional, o que ela comemora: "Não é todo dia que uma data municipal vira nacional."
"Outros vereadores, de cidades diferentes e de outros estados, têm me ligado, para pegar o texto do projeto de lei, tal como ele está, e colocar para tramitar em suas casas legislativas", revela a codeputada, que acredita que o PL é um exemplo do que deve ser pautado nos parlamentos.
Cultura binária
De acordo com uma estimativa de 2017 do Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), entre 0,5% e 1,7% da população mundial é intersexo. No Brasil, isso significaria 3,5 milhões de pessoas, em média.
A medicina pontua mais de 40 DDS (Diferenças de Desenvolvimento do Sexo) categorizadas. Além dos casos com genitália ambígua, como o de Jacob - diagnosticado ainda na gestação -, e de Carolina, existem casos hormonais, como o da influenciadora Karen Bachini.
"Vivemos em uma cultura que privilegia e se sustenta em binômios. A elite econômica se sustenta através do binário [e se utiliza deste sistema para] sustentar o nosso sistema social, capitalista, racista, patriarcal, e justamente a intersexualidade é a prova que isso não é natural", defende Carolina Iara.
"Me parece que esconder a intersexualidade e as pessoas que nascem com aspectos biológicos dos dois sexos é uma coisa fundamental para o tal do equilíbrio que essa sociedade injusta e exploradora quer", acrescenta.
A codeputada ainda afirma que teve que passar "por três grandes cirurgias", entre 0 e 12 anos, para esconder a genitália ambígua.
"Muita gente, inclusive, descobre que é intersexo já adulta, e precisa fazer um resgate histórico, do que passou, de quais cirurgias fez ou qual o processo hormonal foi submetida, uma vez que a intersexualidade pode ser hormonal e cromossômica [como o caso de Karen Bacchini]".
Intersexualidade x Transexualidade
Outro ponto importante sobre o tema que Carolina frisa é que intersexualidade não pode ser considerada parte da transexualidade porque a primeira se trata de uma "identidade biológica, diferente [da segunda]. São populações que têm demandas específicas."
"O que incomoda muito nos conservadores é que para eles as pessoas LGBTs são antinaturais. 'Não é da natureza', eles dizem. A pauta intersexo é justamente a prova contrária", diz a codeputada. "Ela comprova que o natural comporta várias outras coisas. Então o que impede a diversidade? É a cultura, é a sociedade, é a economia. Isso faz com que a intersexualidade seja a mais encoberta, a mais perseguida das identidades."
"A sensação de ter tido a sua história roubada, de ter tido a oportunidade de escolha negada, me parece que se encontra em todas as vivências intersexos, embora sejam vivências diferentes", acrescenta Carolina.
"Eu acho importante nós da comunidade LGBTQIAP+ falarmos mais sobre o assunto. Nós só temos a ganhar. Nós não podemos enquanto comunidade achar que a autofagia vai nos levar a algum lugar. Me incomoda muito as disputas internas e vazias", finaliza.
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