Entre as demandas de pessoas transgênero na área da saúde , a falta de preparo dos profissionais pode ser destacada como um dos fatores que mais impede que essa população possa fazer a manutenção adequada do próprio bem-estar, seja com relação ao processo de transição em si ou não. Mesmo que o Ministério da Saúde tenha instituído a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, por meio da Portaria nº 2.836, de 1º de dezembro de 2011, garantindo o direito à saúde integral, humanizada e de qualidade no Sistema Único de Saúde (SUS), a precariedade destes atendimentos começa ainda durante a formação dos profissionais da saúde, que não são instruídos sobre como lidar com a população trans da forma correta.
Vera Baroli é ginecologista com experiência no atendimento a pessoas transgênero e comenta que não teve assistência por parte da instituição de ensino que frequentou para saber como suprir a demanda de pacientes trans. Ela diz que, durante a formação, não recebeu instrução específica sobre como lidar com pessoas trans e acha difícil que alguma faculdade de medicina tenha essa preocupação.
"Além da falta de apoio das universidades e faculdades, os próprios profissionais também precisam ter interesse sobre o tema. Saber que a população trans que deseja transicionar poderá precisar de fonoaudiólogo e fisioterapeuta, por exemplo, depende muito mais de um olhar integral ao paciente do que formações específicas também. O médico cuida do ser humano, um ser social, e por isso precisa estar atento às realidades, ao mundo em que está posto. Com isso, os saberes médicos consolidados se adequam para alterar e para melhorar a vida de cada pessoa”, aponta.
Patricia Marques, por sua vez, é membra da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica e trabalha com procedimentos direcionados à população trans. Ela diz que foi durante a residência que começou a ter contato com esse público, mesmo que de forma rasa, e se interessou pelo ramo.
“Na residência de cirurgia plástica tive um pouco de contato com a temática, mas de forma mais teórica, pois o meu hospital não era referência para o público trans. Infelizmente, os centros de referência ainda são poucos e essa é uma lacuna importante na formação médica”, comenta com o iG Queer.
“Eu me interessei por esse ramo, pois tenho amigos próximos que trabalham com pessoas trans. Fui conhecendo o assunto e me envolvendo, com esse ramo tão interessante da cirurgia plástica, ainda pouco explorado. Não existe uma formação médica específica, como uma residência ou especialização exclusivamente para trabalhar com pessoas trans, então, quando há interesse, o médico deve ler muitos livros e artigos científicos sobre o tema e procurar cursos a respeito”, diz.
Vera Baroli reitera a importância das instituições de ensino e comenta como é importante que eles comecem a se preocupar com demandas que fogem da cis-hétero normatividade. “Sem dúvidas, as instituições de ensino precisam preparar o profissional sem esperar que ele vá atrás do conhecimento sozinho. Era preciso explicar o que é orientação sexual e identidade de gênero (já que muitos profissionais confundem as duas coisas), o enfrentamento que pessoas trans têm na área médica desde a escolha do pronome até os desafios da transição, a junção dos saberes entre as várias áreas”, comenta.
Contudo, além de pessoas cis, também há profissionais transgênero atuando na área da saúde, como é o caso de Nathan dos Santos, homem trans e enfermeiro. Ele conta ao iG Queer que, além da formação em si, ainda falta muita humanização na abordagem a pacientes trans por parte dos profissionais.
“Falta capacitação aos profissionais para realizar o atendimento corretamente com humanização e conhecimento sobre gênero e sexualidade, além do conhecimento em saúde das necessidades exclusivas de pessoas trans”, destaca.
Patrícia Marques reforça esse aspecto, destacando também o preconceito alimentado pelos próprios médicos. “Muitos profissionais da área, inclusive médicos, não estão familiarizados com os conceitos básicos de transexualidade e, infelizmente, ainda há muito preconceito. Acho que desde o início da formação, ainda na faculdade, deveríamos aprender um pouco sobre o assunto. Isso melhoraria muito a qualidade de atendimento”, ressalta.
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Nathan acredita que o cenário está começando a mudar por iniciativa dos próprios graduandos. “Já fiquei sabendo de alguns alunos que têm levado o tema para debate em sala, porém não existe uma matéria exclusiva ou uma aula que traga assuntos de saúde da comunidade LGBTQIA+”.
O enfermeiro reconhece que ser um homem trans atuante na área da saúde, além de garantir representatividade no ambiente de trabalho, contribui para que pessoas cisgênero ganhem mais familiaridade com vivências transgênero.
“Levo representatividade para pessoas que não acreditam em uma vida profissional como qualquer outro cis nas áreas comuns. Também vejo importância das pessoas cis conviverem com uma pessoa trans em uma UBS (Unidade Básica de Saúde), pois não só a sociedade como um todo debate sobre o assunto, mas também as pessoas que moram no bairro”.
Além de enfermeiro, Nathan também é administrador do Coletivo Pajubá , um serviço de estímulo às políticas LGBTQIAP+ na região de Atibaia que também promove ações sociais para a comunidade local, junto com Ternacci Ponciano, jornalista, ativista social e pessoa não-binária. O segundo aponta que nome e pronome são dois dos pontos que mais causam problemas no que diz respeito ao atendimento médico.
“O mais engraçado é que, quando uma pessoa 'transvestinogênere' entra em um lugar assim, a atenção das pessoas se voltam para ela, já esperando a tal situação do nome da pessoa que será anunciado. As questões com os pronomes também são um fator considerável, pois ficamos à mercê de acreditar que vamos ser tratades como esperamos, mas o que acontece ainda é que, se eles não perguntam nem o nome social, imagina os pronomes de preferência”, aponta.
Enquanto paciente, Nathan também se queixa da dificuldade em ter nome e pronome respeitados, e ainda exemplifica com uma situação enfrentada quando tentou marcar uma consulta ginecológica. Ele lembra que já passou por uma situação em que não conseguia marcar um ginecologista, pois estava com o nome e gênero masculino no sistema e ele não permitia marcar.
"Foi bem engraçado, até que quando consegui marcar na ‘clínica da mulher’, onde fica o ginecologista no dia da consulta, a enfermeira veio até mim perguntar se eu tinha marcado certo porque ali eu estava para passar com o ginecologista. Respondi que sim, ela anunciou meu nome masculino no microfone e eu entrei. Quando saí da consulta, percebi muitos olhares, como sempre, mas ignorei e continuei em direção à porta já acostumado com os olhares intimidadores”, relata.
Ternacci destaca a corrente de problemáticas que o atendimento incorreto às pessoas trans no âmbito médico pode causar, desde os desconfortos momentâneos até a possibilidade do paciente negligenciar a si mesmo a fim de evitar esses conflitos.
“A sociedade cisnormativa, que trata das questões de saúde pública ou privada, precisa entender uma problemática social que acontece. Estes lugares deveriam promover o acolhimento, pois se está lidando com outros seres humanos que buscam por melhoria na sua qualidade de vida e saúde. Ao negligenciar o bem estar das pessoas transvestisnaogêneres nestes espaços, certamente ela vai acabar negligenciando sua própria saúde por conta destes traumas recorrentes. Acaba por negligenciar um direto humano próprio. A partir desse entendimento, os atendimentos às pessoas trans podem ser vistos em outra perspectiva e, quem sabe, surgir maior sensibilidade em atentar-se a como a comunidade trans é atendida”, conclui.
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