A Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados adiou, nesta última quarta-feira (27), mais uma vez, a votação do projeto de lei (PL) que visa proibir a união civil homoafetiva no Brasil.
A votação foi adiada por decisão do relator do projeto, o deputado Pastor Eurico (PL-PE). “Gostaria de pedir que nos desse mais um tempo, em respeito aos que honrosamente falaram aqui e até aos que nos desrespeitaram, para provar que não há retaliação e não estamos aqui para impor nada”, disse Eurico na sessão.
A previsão é que o projeto torne a ser debatido no dia 10 de outubro e, enfim, votado. O iG Queer conversou com especialistas que analisaram os impactos que a aprovação do PL pode trazer para a comunidade LGBTQIAPN+.
O advogado e mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), Gabriel Araújo Oliveira, do escritório Bento Muniz Advocacia, avalia que a discussão se trada de "um tremendo regresso" e um cenário no qual "famílias constituídas por pessoas do mesmo gênero não mais serão reconhecidas como famílias legalmente."
"[Os casais] vão voltar à estaca zero de serem tratados como amigos e viver numa espécie de clandestinidade legal, à margem do ordenamento jurídico brasileiro", critica o advogado.
"Hoje a gente vive em uma sociedade que não comporta mais a ideia única de família, numa sociedade plural, com famílias plurais, e a nossa legislação precisa refletir essa realidade, embora a representação dentro do Congresso venha no sentido contrário."
Histórico de direitos conquistados a partir do STF
Bruna Andrade, CEO da startup Bicha da Justiça, explica que o projeto de lei pretende afastar "qualquer tipo de equiparação das relações entre pessoas do mesmo gênero a um casamento ou a uma entidade familiar".
"Historicamente os casais LGBTs foram conquistando direitos paulatinos", acrescenta. "Em um primeiro momento, a comunidade não tinha qualquer tipo de possibilidade de reconhecimento jurídico entre as uniões. Depois essas uniões foram compreendidas como uniões civis, algo que é muito próximo da figura do contrato de um acordo civil, e neste caso só abrangia uma proteção patrimonial."
"Dessa forma a legislação começava a nos resguardar e a permitir que houvesse uma reparação patrimonial em caso de morte de um dos parceiros, sobre o patrimônio construído em conjunto", diz.
A advogada lembra que com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2011, "que permitiu a união estável", e depois a resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), "que permitiu o casamento homoafetivo", e por último a decisão do STF, de 2015, que "permitiu a adoção por casais do mesmo gênero", houve "uma construção muito clara que não se trata de uma união patrimonial, mas que a questão está associada a uma formação familiar."
Por que isso é tão importante?
Para Bruna a importância deste entendimento do STF está no fato de a "família ser a base da sociedade."
"[A família] tem uma proteção constitucional que as relações empresariais, as de natureza comercial, e de natureza patrimonial, não têm. Dessa forma, todos os avanços conquistados têm uma proteção constitucional mais intensa, o que gera mais segurança, mais direitos e mais reconhecimento legal."
A advogada avalia que caso o PL seja aprovado, haverá um recuo àquele "estado anterior de união patrimonial, o que será, então, o primeiro grande retrocesso que é o não reconhecimento como família [de casais LGBTs]."
Impactos à comunidade LGBT+ caso ocorra a aprovação do PL
Para o advogado Gabriel Araújo Oliveira há alguns anos a comunidade queer brasileira passa por um processo de adaptação dos entendimento do STF, e já há casais homoafetivos conseguindo acessar os direitos que até então não eram possíveis, e que podem ser perdidso com a aprovação do PL, como, por exemplo, o direito à herança.
"Para que uma pessoa tenha o reconhecimento enquanto herdeiro é preciso ter o entendimento que a pessoa é companheira ou cônjuge, porque em caso contrário a única forma de ter direito a receber qualquer quantia é via testamento, algo que, inclusive, limita a distribuição da herança para herdeiros necessários [o que inclue companheiros e conjuguês] em, ao menos, 50%."
O especialista ressalta que a realidade do Brasil é de que "boa parte das pessoas ao falecerem não deixam testamento", o que então "gera toda uma situação de insegurança de casais que já têm um relacionamento estabilizado e que podem ficar completamente desamparados, inclusive para ter acessos a benefícios como pensão", complementa.
Adoção
Outro ponto crucial para a comunidade LGBTQIAP+ que pode ser interferido é a adoção. "A adoção, enquanto casal, só foi permitida pelo STF justamente por sermos considerados uma entidade familiar. Antes só era permitida a adoção por pessoas LGBTs de forma individual", explica a advogada Bruna Andrade.
"O registro duplo de paternidade e maternidade, as questões referentes à política pública do SUS (Sistema Único de Saúde), de reprodução assistida , foram instituídas justamente em razão da constituição de família, o que justifica essas políticas públicas . É a família que justifica essas decisões", acrescenta.
Gabriel corrobora com a colega de profissão e provoca: "E os casais que já adotaram filhos com base nessa decisão do STF, como é que fica? Terão que devolver essa criança? Já não serão mais reconhecidos formalmente como pais e mães? O projeto gera uma série de questionamentos e lacunas que caso não sejam eventualmente debatidos caberá certamente ao Judiciário vir a interferir neste assunto."
Vida profissional
Além dos questões legais e jurídicas, a possível aprovação do PL também pode impactar a vida profissional de casais LGBTQIAPN+ segundo a diretora institucional da Mais Diversidade e diretora executiva do Instituto Mais Diversidade, Helen Faquinetti.
"Legislações discriminatórias no geral impactam a habilidade de pessoas LGBT+ de acessar e permanecer no mercado de trabalho. Além de limitar o acesso a direitos universais, leis nesse sentido podem ser usadas para estigmatizar ou discriminar pessoas que não se encaixam nos padrões", afirma a executiva.
"A aprovação de uma legislação nesse sentido pode incentivar o aumento da discriminação, do preconceito e da exclusão, tornando os ambientes de trabalho menos acolhedores. Além disso, a incerteza sobre o futuro do casamento homoafetivo pode causar estresse emocional e ansiedade entre os colaboradores LGBTQIA+, e isso pode afetar negativamente seu bem-estar emocional e sua capacidade de desempenhar bem no trabalho", acrescenta.
A diretora ainda avalia que o PL "por ferir diretamente o direito a constituições familiares diversas, tem potencial de impactar diretamente os direitos previdenciários das pessoas LGBTQIA+". Ela exemplifica na sequência.
"Limitando o acesso a pensões e aposentadorias que podem ser acessadas por cônjuges nos mais diversos contextos. Além disso, as empresas poderão enfrentar desafios legais para a concessão de benefícios a colaboradores LGBTQIA+, como por exemplo o Plano de Saúde para cônjuges."
Hellen finaliza chamando a atenção para a importância da organização da sociedade civil e do setor privado em demonstrar apoio à comunidade queer no enfrentamento de retrocessos, como a votação do PL contra o casamento civil LGBTQIAPN+.
"É importante lembrar que no Brasil não contamos com qualquer lei aprovada pelo legislativo para garantia dos direitos dessa parcela da população. Os avanços que tivemos até aqui vieram via STF, o que faz com que essas conquistas sejam ainda mais frágeis. Por isso, é imprescindível que as empresas comuniquem claramente seu compromisso contínuo com a diversidade e a inclusão, destacando políticas e programas que ofereçam suporte aos colaboradores LGBTQIA+."
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